“António Vitorino é o [Daniel] Proença de Carvalho do PS”
José Manuel Barroso
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CORRUPÇÃO
António Vitorino:
advogado, político e lobbyista
Ministro,
comissário europeu, advogado, comentador, consultor e analista. António
Vitorino, 63 anos, conhece bem os corredores do poder. E, por isso, é chamado a
fazer pontes para fazer as coisas acontecerem. No período em que era sócio do
escritório de advogados Cuatrecasas, não recebeu apenas de empresas da órbita
do ex-embaixador de Espanha, Raul Morodo, visado em processos por fraude fiscal
e branqueamento de capitais. Foi remunerado por serviços a firmas de
consultoria portuguesas, uma delas com extensões a África. O P2 investigou os
bastidores e encontrou histórias por contar.
Cristina Ferreira
15 de Março de 2020, 6:41
A associação de
António Vitorino, actual responsável pela Organização Internacional para as
Migrações, instituição das Nações Unidas (ONU), a episódios polémicos e a
empresas instrumentais não é nova e já lhe valeram a alcunha de “lobbyista”.
Apontado nas últimas décadas ao epicentro de operações controversas, algumas
mais mediáticas do que outras, e muitas a dependerem de aprovações
governamentais, o ex-ministro, ex-deputado e ex-comissário europeu interveio,
enquanto advogado da espanhola Telefónica, na estratégia que ajudou a derrubar
as barreiras levantadas por José Sócrates à venda da posição da Portugal
Telecom na brasileira Vivo. Em 1999, já em Bruxelas, posicionou-se ao lado do
banco espanhol Santander, a cujos órgãos sociais pertencera (e que vai reocupar
de volta a Lisboa), contra o Estado português, na venda da Mundial Confiança,
vetada pelo ex-ministro das Finanças António de Sousa Franco.
Até aqui, António
Vitorino tem sido um nome incontornável no meio político, social e económico, o
que levou, em 2018, o actual primeiro-ministro António Costa a empenhar-se na
sua nomeação para chefiar a Organização Internacional para as Migrações,
instituição das Nações Unidas (ONU), presidida por António Guterres, a cujo
governo ambos pertenceram na década de 1990.
Mas há cerca de
um mês a imagem do ex-ministro da Presidência e da Defesa Nacional de Guterres foi
abalada quando se soube que a Fiscalia Anticorrupção de Madrid, o visava no
inquérito a Raul Morodo, o ex-embaixador de Espanha em Portugal (1995-1999) e
na Venezuela (2004-2008), e ao seu filho Alejo, ambos advogados. Os dois são
suspeitos de corrupção, de fraude fiscal e de branqueamento de capitais, por
alegado desvio, entre 2008 e 2013, de 4,4 milhões de euros da petrolífera
estatal venezuelana PDVSA.
Movimentos que
Raul Morodo justificou como pagamentos por “serviços de assessoria jurídica e
gestão legal de documentação em matéria de direito mercantil, fiscal e
contabilístico no Reino de Espanha e Portugal à Petróleos da Venezuela e ao
Ministério da Energia e Petróleos”, explicações que as autoridades espanholas
interpretaram como a “tentativa de dar uma aparência legal” ao dinheiro e de o
“desvincular a sua origem ilícita”.
O tema,
evidentemente, explodiu na comunicação social portuguesa, onde o ex-embaixador
espanhol tem uma rede de contactos ao mais alto nível, além de Alejo Morodo ser
genro de Manuel Dias Loureiro, ex-ministro social-democrata e ex-conselheiro de
Estado de Cavaco Silva.
Mas o que
projectou o assunto na arena mediática foi o conteúdo do relatório da Fiscalia:
“É necessário investigar se os serviços de consultoria prestados pela Emab
Consultores Lda. e António Manuel Carvalho Ferreira Vitorino que deram lugar a
transferências são reais e se existe documentação que comprove os serviços”.
Isto, ao relacionarem que, entre 2011 e 2016, a Emab (de Vitorino e da sua
mulher Beatriz Demony de Carneiro Pacheco) recebeu 325 mil euros da Morodo
Abogados e da Aequitas Abogados, ambas da órbita da família Morodo.
O ex-ministro
português já veio sustentar que a sua inclusão nas investigações a Morodo é
“totalmente infundada e difamatória” e que nunca teve “envolvimento com
empresas venezuelanas, incluindo a PDVSA”, a que apenas esteve ligado
indirectamente através do escritório de advogados Cuatrecasas. Aclarou, porém,
que os 325 mil euros recebidos resultaram de “serviços em assuntos referentes à
União Europeia e às relações entre Portugal e Espanha”. Verba que representa
quase 30% da facturação da sociedade do político e advogado português.
Pela sua
sensibilidade, o assunto foi percepcionado com preocupação por António
Vitorino, que recorreu à receita habitual: a ameaça de “correspondente reacção
pelas vias judiciárias apropriadas”. Mas se a intenção era a de travar a
propagação de notícias, o que se verifica é que as suas intervenções do passado
permanecem debaixo de escrutínio.
Ao P2, via sms,
António Vitorino afirmou que as explicações anteriores “mantêm toda a
actualidade”, sem clarificar se “foi chamado ou se tomou a iniciativa de ir
prestar declarações no âmbito do inquérito” ou dar detalhes sobre a relação com
Raul Morodo, que conhece desde que o espanhol esteve em Lisboa como embaixador.
A unir alguns dos
protagonistas do processo da Fiscalia estão ligações maçónicas em Espanha
(Morodo) e em Portugal (Dias Loureiro e António Vitorino), o que explica a
proximidade.
Política e
dinheiro
Depois de figurar
no inquérito da Fiscalia, ficou claro que ao lado do exercício de advocacia no
Cuatrecasas, para onde entrou no início de 2005 (e saiu em 2018), António
Vitorino desenvolvia outras actividades.
O P2 foi atrás de
episódios em que interveio e recuperou temas antigos e recolheu testemunhos
orais e escritos. E não foi por acaso que nos últimos 20 anos o ex-ministro de
Guterres consolidou uma reputação como mediador de negócios e consultor de
empresas reservadas a circuitos paralelos.
De acordo com
depoimentos recolhidos pelo P2, António Vitorino manteve uma relação de
prestação de serviços com a Domínio Capital (DC), presidida por Carlos Pinto
Ferreira, com actividade e negócios em Angola, em Moçambique, na Guiné-Bissau,
no Brasil e em Timor-Leste, ainda que o seu nome não conste de nenhuma
“publicação oficial” editada.
Ao P2, por
escrito, o filho de Carlos Pinto Ferreira, Pedro, confirmou que Vitorino
colaborou com a Domínio Capital, ligação que decorreu “a título privado” e em
“alguns projectos desenvolvidos” e “sempre num regime de caso a caso”.
Sublinhou que “nunca assumiu qualquer posição accionista ou de membro do
conselho de administração” ou “em qualquer uma das suas subsidiárias”.
Diferentemente, à
pergunta do P2 sobre a sua associação à Domínio Capital, Vitorino respondeu:
“Conheço o CEO da Domínio Capital [Carlos Pinto Ferreira] há 30 anos” e “não
tive qualquer relação contratual com a empresa”.
A meio de Janeiro
deste ano, no programa Grande Entrevista da RTP, Isabel dos Santos considerou
que “os sócios” da Domínio Capital, Carlos Pinto Ferreira e o filho, Pedro
Pinto Ferreira, “são conhecidos testas-de-ferro do engenheiro Manuel Vicente”,
o ex-vice-presidente de Angola, ex-presidente da Sonangol e ex-administrador do
BCP. Estando no centro do escândalo Luanda Leaks, aproveitou para disparar: em
articulação com o actual Presidente de Angola, João Lourenço, montaram nos EUA
uma campanha para a difamar.
As acusações
foram rebatidas por Carlos Pinto Ferreira: “São falsas e infundadas” e “não
existe qualquer relação accionista” ou “de prestação de serviço” com Manuel
Vicente.
O próprio gestor
da Domínio Capital avançou ao P2 que “tem sido consultor sénior e parceiro
local para o mercado angolano da empresa Squire Patton Boggs, no seu contrato
como advisor da Presidência da República de Angola para vários temas
estratégicos que dizem estritamente respeito à relação entre os EUA e Angola”.
Uma ligação que, em todo o caso, recua à presidência de José Eduardo dos
Santos.
A firma
portuguesa considera-se uma “boutique” financeira. Tradução: uma empresa
discreta. Em Moçambique, mediou negócios na área do Gás Natural, no Porto da
Beira, em que Vitorino é mencionado como tendo desempenhado um papel.
A família Pinto
Ferreira representa, no espaço África subsariana, a AtlasMara, do ex-CEO do
Barclays, Robert Diamond, e do empresário do Ruanda Ashish Thakka. No seu leque
de clientes, figuram as grandes petrolíferas mundiais Exxon, Riverstone, BP,
Soco, Falcon Oil (associada ao empresário António Mosquito) e a Total, bem como
o Carlyle Group, plataforma de lobbying, que teve como principal rosto Frank
Carlucci, o ex-embaixador dos EUA em Portugal e ex-director da CIA.
A esta lista somam-se
outros clientes importantes: o Banco Nacional de Angola, o supervisor bancário
e a petrolífera Sonangol, de que Manuel Vicente e Isabel dos Santos foram
presidentes. E duas instituições portuguesas, a Caixa Geral de Depósitos e a
Galp, detida por Américo Amorim e Isabel dos Santos e onde o Estado português
possui 7%.
Pouca gente sabe
que Vitorino prestou serviços, na década passada, à Domínio Capital. Mas também
foi assessor do conselho de administração da firma norte-americana AT Kearney,
o que a própria entidade confirmou ao P2.
Nos eventos que,
por vezes, decorriam no topo do edifício Heron Castilho, na Rua Braamcamp, em
Lisboa, onde a sociedade está instalada, o então advogado do Cuatrecasas era o
orador-estrela dos encontros que a AT Kearney oferecia aos seus clientes e em
que discursava sobre estratégia e geopolítica.
O que houve para
que de repente a paixão que Vitorino sempre disse ter pela política fosse
substituída, ou mesmo superada, por outras actividades paralelas? Talvez o
dinheiro. É o que se depreende da resposta dada, em 2011, ao Jornal de
Negócios, em entrevista a Anabela Mota Ribeiro, às críticas de que só queria
“ganhar dinheiro”: “Em Portugal, as pessoas acham que ganhar dinheiro é pecado,
há ainda uma costela judaico-cristã muito forte.”
Mexidas na banca
Todos sabemos que
um político, um advogado e um consultor têm latitude de movimentos. Distante
dos corredores de Bruxelas, o ex-presidente da Comissão Europeia, o
social-democrata José Manuel Durão Barroso tornou-se administrador da Goldman
Sachs, o banco norte-americano apanhado em casos de corrupção e de fraude. E
acabou acusado por organizações não governamentais de “fazer lobby” em Bruxelas
(uma actividade ilegal em Portugal), o que teve como efeito que uma “fonte
próxima” do ex-primeiro-ministro se fosse queixar ao jornal online Observador:
“O [António] Vitorino faz lobby pelo Santander junto de comissários europeus e
nunca ninguém disse nada.” Vitorino contrapôs que não perdia tempo com
comentários anónimos.
A acção de lobby
a que alude a tal “fonte próxima” de Barroso remonta a 1999, dois anos depois
de se ter demitido do Governo de Guterres, na sequência de uma investigação do
PÚBLICO que revelou que não cumprira com as suas obrigações fiscais. Nessa
fase, Vitorino foi assumir, em Lisboa, a presidência da mesa da assembleia
geral da filial do grupo Santander, então designado Banco Santander Central
Hispano.
Possuindo à época
uma pequena operação em Portugal, encabeçada por António Horta Osório, e
insuficiente para as suas aspirações, a família Botín projectou aquisições.
No caminho
encontrava-se o grupo de António Champalimaud, a Mundial Confiança, com o
Totta, o Crédito Predial Português (CPP), o Banco Pinto & Sotto Mayor
(BPSM), alvos de privatizações. Tratando-se de uma holding seguradora, cujo
controlo fora igualmente adquirido ao Estado, qualquer mexida no capital
obrigava a autorizações públicas.
Havia outra
barreira: o Banesto, do espanhol Mario Conde, tomara em 1993 o controlo do
Banco Totta por vias irregulares. E quando, no ano seguinte, o Banesto foi
intervencionado pelo Banco de Espanha, após acção das autoridades
norte-americanas por outras ilicitudes, Madrid entregou-o ao Santander. Na
sequência de acções diplomáticas, Emilio Botín concordou em entregar ao grupo
Champalimaud as acções do Banesto no Totta, e que ali permanecerão estacionadas
até 1999.
Ao anteciparem
problemas, Botín e Horta Osório (agora CFO da Fundação Champalimaud), de um
lado, e o industrial português, do outro, fecharam-se numa sala do Hotel Ritz,
em Lisboa, até assinarem novo pacto.
Se a prioridade
era dar o negócio por consumado, o plano revelou-se ousado. Logo que os factos
se tornaram públicos, o então ministro das Finanças de Guterres, António de
Sousa Franco, atravessou-se em contramão: “Se querem guerra, vão tê-la”;
“Portugal não é uma república das bananas”.
Veio então
sustentar que as duas partes ignoraram a exigência de comunicação prévia à
tutela, como requerido pelo decreto-lei 94-B/98, que a estrutura da operação,
de tão complexa que era, poderia afectar a supervisão da gestão sã e prudente
do grupo e que o negócio interferia “com sectores estratégicos vitais” da
economia.
O resultado do
veto de Sousa Franco foi uma guerra jurídica levada pelo Santander até a
Bruxelas, onde apresentou queixa contra o Estado português.
Dava-se o acaso
de, nesse ano de 1999, António Vitorino estar em Bruxelas a desempenhar o cargo
de comissário europeu com o pelouro da Justiça e Assuntos Internos, onde se
movimentou, surgindo mesmo a defender as teses do banco espanhol e a considerar
ilegal o veto de Sousa Franco. O então ministro acusou Vitorino de actuar em
conflito de interesse, ao defender a entidade para quem trabalhara antes de
assumir a função de comissário e de fazer tábua rasa do que considerou ser a
violação da lei nacional.
Para acabar com a
discórdia, António Guterres afastou Sousa Franco e delegou a pasta das Finanças
no seu ministro da Economia, Joaquim Pina Moura. E Pina Moura actuou de forma
salomónica: deu ao Santander o Totta e o CPP, e deixou para o Banco Comercial
Português (que lançara, entretanto, uma OPA sobre a Mundial Confiança e não
podia ser ignorado) o BPSM.
Meses depois,
Guterres demitiu-se e Pina Moura foi presidir a uma empresa espanhola, a
Iberdrola, o que foi considerado um prémio pela entrega do Totta e do CPP ao
Santander.
Não existem
tronos vazios. De regresso a Lisboa, em 2004, António Vitorino foi reocupar o
lugar nos órgãos sociais do Santander Portugal, grupo a que se manterá ligado
até 2018 — e onde esteve a partir de 2016 como administrador “independente”,
com responsabilidade num departamento crítico, o Comité de Remunerações.
No Verão de 2004,
enquanto o PS discutia a sucessão de Ferro Rodrigues como secretário-geral,
José Sócrates fez saber que só oficializava uma candidatura, em caso de
indisponibilidade de António Vitorino. Ao saber que o ex-ministro não
concorria, avançou. E uma das primeiras medidas como líder do PS foi encarregar
Vitorino de coordenar o programa eleitoral para as eleições legislativas
agendadas para o ano seguinte. A 12 de Março de 2005, Sócrates tomou posse com
maioria absoluta.
Ao Jornal de
Negócios, em 2011, Vitorino confessou que nunca o motivou particularmente “a
ideia de exercer o poder”. “Conhecer, perceber as regras, a vários níveis,
nacional e europeu, é um factor de motivação.” Talvez esteja aqui a explicação
porque ficou de fora do primeiro Governo de José Sócrates (a quem irá visitar
em 2015 ao Estabelecimento Prisional de Évora).
Cuatrecasas e
Galp: caminhos cruzados
O PS ainda não
tinha entrada em São Bento, quando, em Fevereiro de 2005, Emilio
Cuatrecasas, presidente e fundador do gabinete
espanhol Cuatrecasas (que absorvera o escritório Gonçalves Pereira, Castelo
Branco & Associados), requisitou Vitorino para ser sócio de capital, com
delegação em Lisboa.
O convite chegou
de Espanha e não se discutiu. Era natural, um passo necessário: mais do que
“perito em Direito europeu”, o que sempre dá jeito quando estão em causa
operações transnacionais, Vitorino era próximo do novo primeiro-ministro.
A contratação de
António Vitorino pela Cuatrecasas deu motivo ao El País para uma entrevista,
onde foi apresentado como um “homem com excelentes relações com Espanha” e que
“preside à assembleia geral do Santander Totta em Portugal” e “um especialista de
excepção em relações jurídicas e empresariais entre” os dois países.
Não havia muita
gente que conhecesse tão bem os corredores do Governo como o novo sócio do
Cuatrecasas. A 14 de Setembro de 2015, soube-se que Vitorino tinha estado no
Ministério da Economia, chefiado por Manuel Pinho, a tratar de um assunto
relacionado com a Galp. E o Governo adjudicara ao Cuatrecasas a assessoria na
recomposição accionista da petrolífera nacional. O caso chegou à Assembleia da
República, onde os deputados da Comissão de Ética concluíram que o trabalho de
António Vitorino na petrolífera nacional não lhes merecia reparo.
Passados 15 anos,
o episódio atingiu-o em cheio. A
sinalizou que a Morodo Abogados, de quem Vitorino recebeu honorários,
prestara, por sua vez, serviços à Galp, entre 2009 e 2011. E que desde 2004, na
sua lista de pagamentos, constava como “assalariado ou profissional” Alejo
Morodo, filho do ex-embaixador de Espanha em Portugal e na Venezuela.
A 5 de Fevereiro
de 2020, ao Observador, a Galp reconheceu que, entre 2008 e 2013, contratou, em
Espanha, em regime de avença mensal, as firmas dos Morodo, para onde transferiu
317.240 euros. Os pagamentos resultavam de um acordo entre a PDVSA e a Galp
para instalar quatro parques eólicos na Venezuela e para aquisição de
combustível. A petrolífera nacional negou, em todo o caso, que os valores
tivessem por destino a Emab, o que Vitorino também refutou.
Um imbróglio na
PT
A discrição é um
traço comum dos negócios privados a necessitarem de autorizações políticas, de
que são exemplo as grandes operações de telecomunicações.
Desde 2003 que a
Telefónica estava de olho nas acções da PT na Vivo, a operadora brasileira onde
detinha idêntica posição. Mas, por acordo, quem mandava na Vivo eram os
gestores portugueses. E um mercado de 200 milhões de consumidores é sempre
disputado.
Na lista de
avenças da Telefónica e da PT constavam sociedades de advocacia cuja
especialidade ia para além da advocacia (ver PÚBLICO de 19/2/2012, de 2/11/2015
e de 16/8/2017): a JD Consultores, de José Dirceu, articulava-se em Lisboa com
o escritório português Lima, Serra, Fernandes & Associados, chefiado por
Fernando Lima, à época o grão-mestre do Grande Oriente Lusitano.
Não era sem razão
que Dirceu tinha créditos de lobbyista. A sua influência chegava ao Palácio do
Planalto, onde tinha sido chefe da casa civil de Lula da Silva, antes de ter
entrado na cadeia, em 2005, acusado de ser a cabeça do Mensalão (referência a
pagamentos indevidos a deputados).
Em 2010, a
Telefónica entendeu que chegara o momento de terminar a fase do namoro à volta
da Vivo. E mudou de táctica, envolvendo um gabinete de advogados tradicionais,
a Uría e Menendez (ligada a Daniel Proença de Carvalho), e delegando no Cuatrecasas
a assessoria jurídica da operação. O comando foi entregue a Manuel Castelo
Branco, o managing partner em Portugal.
No dia da
assembleia geral, a 30 de Junho de 2010, onde, por fim, a PT iria aprovar a
venda as suas acções da Vivo, a expectativa era de uma votação pacífica. As
cartas tinham ficado marcadas na véspera, 29 de Junho. Enquanto na África do
Sul decorria o Mundial de Futebol, com as selecções de Portugal e de Espanha a
defrontarem-se, a Telefónica entendeu-se com a PT, subindo o preço.
O negócio estava
fechado. Aparentemente. O desfecho da AG acabou por não ser o
esperado.
Ao início da
manhã de 30 de Junho de 2010, o presidente do BES, Ricardo Salgado, que
encabeçava o núcleo de accionistas portugueses da PT, foi a São Bento reunir-se
com José Sócrates, para abordar o que se decidira na véspera. As versões do que
ali se passou não coincidem. Há quem diga que os dois se articularam, outros
que Salgado saiu de São Bento sem saber da intenção do primeiro-ministro.
Apesar dos
esforços da Telefónica e de 73,91% dos accionistas da PT terem dado luz verde
para vender a Vivo, o delegado do Estado, por razões de interesse nacional,
accionou a golden share (500 acções com direito de veto).
Uma das
repercussões da reviravolta foi a de adiar o acordo luso-espanhol alinhavado em
torno da Vivo. A outra foi a de fazer mexer os peões no tabuleiro.
Diante das
dificuldades, Emílio Cuatrecasas apareceu de armas e bagagens no escritório de
Lisboa, onde permaneceu vários dias, 24h por 24h.
E como um
advogado defende os interesses do cliente, apoiou-se em Vitorino, para afinar a
estratégia destinada a reverter as consequências do veto de José Sócrates e
repor o resultado do jogo. Era a lógica a funcionar.
Afinal, o sócio
português de Emilio Cuatrecasas faz pontes. Numa entrevista que dará dali a
meses, Vitorino descreveu a sua ideia de advocacia: “Tem muito a ver com ‘ser
um negociador’, com a necessidade de encontrar plataformas”, o que, “do ponto
de vista intelectual, é bastante estimulante”; e aquilo de que “gosto na
advocacia” é “o que encontro na política”.
“Como sou do
Porto, não estive envolvido no dossier Vivo”, antecipou ao P2 o eurodeputado
social-democrata Paulo Rangel, que deixou, entretanto, o Cuatrecasas. Disse
ainda desconhecer se “Vitorino participou ou não”. Concede, todavia, que
Vitorino “estava muito ligado à própria presidência da sociedade em Espanha,
sobretudo a Emilio Cuatrecasas”. “Era, com toda a certeza, o português mais
destacado, com um estatuto que mais nenhum possuía junto do conselho de
administração do Cuatrecasas, de que era conselheiro. Era sempre convidado para
intervir nas reuniões anuais da sociedade espanhola, onde discursava não sobre
temas jurídicos, mas dando a sua visão sobre África e a América Latina.”
Ora, as grandes
estratégias estão cheias de coincidências e, por aquela altura, nos corredores
do Cuatrecasas, no Marquês de Pombal, foi detectada uma ausência de Manuel
Castelo Branco.
Um advogado que
ali trabalha evoca: “Dizíamos: o ‘Manel’ [Castelo Branco] está em parte
incerta, pois deixou de repente de aparecer no escritório e estranhámos,
especialmente, por ser a operação mais importante [naquele momento] e por ele
ser o líder da equipa.”
O jornal espanhol
Cinco Dias (7/9/2010) pôs em evidência os interesses a funcionar: “O sócio do
Cuatrecasas Manuel Castelo Branco liderou a equipa que deu assessoria jurídica
em Direito português, enquanto Emilio Cuatrecasas se centrou no tema da golden
share usada pelo Governo português para vetar a venda da Vivo à Telefónica.”
“António Vitorino é o [Daniel] Proença de Carvalho do PS”
José Manuel Barroso
Entretanto, nos
círculos políticos, fez-se saber que São Bento exigia à PT uma alternativa à
Vivo para se manter viva no Brasil, um mercado gigante. Enquanto era cozinhado
o novo entendimento, o lobbyista José Dirceu, colunista do Brasil Econômico, da
Ongoing (testa-de-ferro do BES na PT), despontou em Madrid e em Lisboa a dar
entrevistas. Uma delas foi ao Diário Notícias (8/7/2010): “Sempre defendi a
fusão da Oi com uma empresa como a PT.”
Era um sinal de
que nos corredores as movimentações avançavam e um indício de que na engrenagem
estava metida a Oi, das construtoras Andrade Gutierrez e a La Fonte
(Jereissati), promotoras do esquema de corrupção Lava-Jato.
A interferência
de Emilio Cuatrecasas para amenizar a oposição de José Sócrates surtiu efeito.
Para um advogado do Cuatrecasas, Vitorino também “desempenhou um papel
importante como elo de ligação a São Bento” e “muito discreto”.
Finalmente, a 28
de Julho de 2010, três semanas depois do veto, a Telefónica subiu o preço em
mais 350 milhões, para 7,5 mil milhões de euros, com o diferencial a ser pago
em três tranches, até Outubro de 2011. E desembaraçou-se da PT, que veio
informar que iria adquirir 23% da Oi (que ficava com 10% da PT) por 3,75 mil
milhões. Mais: apenas dois terços do que recebia se destinava a reforçar o
capital da operadora brasileira, pois 1,3 mil milhões de euros seriam enviados
directamente, e em partes iguais, para as contas das construtoras Andrade
Gutierrez e La Fonte.
O resto da
história é conhecido: o negócio foi um sucesso para a Telefónica; foi excelente
para as construtoras Andrade Gutierrez e La Fonte, insolventes; rebentou com a
maior empresa portuguesa, capturada pela agenda política e por accionistas
endividados.
Alguma coisa
falhou mais na mecânica. Dos dois lados do Atlântico, os vínculos que se
estabeleceram conduziram as autoridades a recolher depoimentos, a vasculhar nos
computadores apreendidos. O final é conhecido: José Sócrates, Lula da Silva,
José Dirceu, Octávio Azevedo (Oi e Andrade Gutierrez), Ricardo Salgado, Amílcar
Morais Pires (CFO do BES e administrador da PT), Zeinal Bava, Henrique
Granadeiro, assim como as empresas de telecomunicação, Telefónica, PT, Vivo e
Oi, foram anexados a processos de corrupção e um deles abarca o dossier Vivo.
Entre os réus do
processo, estão os sócios da Ongoing que viviam no reino da fantasia. E abriram
buracos no BCP e no Novo Banco, onde se contabilizam perdas de 700 milhões.
Vasconcelos e Mora arrogam-se maçons da polémica loja Mozart n.º 49, da Grande
Loja Regular de Portugal, onde se misturaram maçons, espiões e políticos de
carreira.
Formalmente, era
Nuno Vasconcelos que se exibia como o chefe da Ongoing, mas era a Rafael Mora
(presença assídua na embaixada de Espanha no tempo de Morodo e no período
seguinte) que se atribuía o petit nom de “o cérebro”. Não é por acaso. Apesar
de ambos serem réus no inquérito judicial à venda da Vivo, Vasconcelos saiu-se
pior do que Mora, cuja assinatura é pouco vista em documentos.
Em Portugal, o
Ministério Público não terá apenas apurado que o negócio de telecomunicações
luso-brasileiro dispersou bónus pelos gestores e dividendos extraordinários
pelos accionistas. O Observador narrou suspeitas de que o negócio possa ter
rendido ao ex-primeiro-ministro José Sócrates um bónus de oito milhões de
euros.
No Brasil, as
investigações policiais sobre este negócio têm sido a rotina. No final do ano
passado, a 10 de Dezembro de 2019 (Globo), as autoridades estiveram nas
instalações da Oi, da Telefónica e da Vivo, por actos ilícitos associados a
“contratos celebrados entre 2004 e 2016” que “geraram repasses milionários”
para terceiros, nomeadamente, para o filho de Lula da Silva, para o próprio
ex-Presidente e para José Dirceu.
Num processo
independente, em 2011, Emilio Cuatrecasas, com vínculos à Universidade de
Navarra, associada à Opus Dei, foi citado por oito delitos, entre eles, o de
burla, fraude fiscal e simulação de negócios. Em 2015, o advogado espanhol
assinou um acordo com as autoridades espanholas que possibilitou uma diminuição
da pena de prisão para dois anos e evitou a entrada na cadeia.
A líder da
Cuatrecasas em Lisboa, Maria João Ricou, instada pelo P2 a comentar a
intervenção do gabinete na Operação Vivo indicou apenas que “uma equipa de
diversos advogados coordenada pelo então managing partner da sociedade, Manuel
Castelo Branco” trabalhou no dossier Vivo, mas não esclareceu se Vitorino
interveio.
“Por envolver
matéria sujeita a sigilo profissional, sugiro que contacte directamente a
Cuatrecasas”, foi a resposta de António Vitorino.
E Castelo Branco
esclareceu que tinha sido advogado do grupo, com mandato desde o início e que
esteve a representar a operadora na contestada assembleia geral da PT de 30 de
Junho de 2010. E recusou-se a falar da execução do seu mandato ou a precisar se
foi ou não afastado do dossier no período entre o veto de Sócrates e a sua
anulação.
O distanciamento
de Castelo Branco do Cuatrecasas foi temporário. Mal o Governo levantou as
barreiras, voltou ao Marquês de Pombal, onde se manteve como managing partner,
até 14 de Janeiro de 2011, altura em que deixou o gabinete espanhol.
Por sua vez,
Diogo Horta Osório, à época sócio do Cuatrecasas, disse ao P2 que esteve a
representar o cliente na AG de 30 de Junho de 2010 e garantiu que “Castelo
Branco esteve sempre envolvido no dossier e Vitorino nunca esteve ligado à
equipa destacada para assessorar a Telefónica”. E que Castelo Branco “só saiu
do escritório anos depois do negócio Vivo”. O que não é verdade.
Um peixe de águas
profundas
O ex-sócio do
Cuatrecasas José Freitas relatou: “Todos sabíamos que o Vitorino tinha outras
actividades para além de ser advogado, o que não é crime.” E notou que “um
advogado pode prestar serviços jurídicos a outra sociedade de advogados, sempre
no âmbito da sociedade de que é sócio ou trabalha”. “Não só pode, como é
normal.” De seguida, José Freitas produziu uma “aclaração teórica”: “O que não
é natural é que um advogado em exercício, e seja ele quem for, preste serviços
jurídicos a outra sociedade de advogados através de uma empresa que lhe
pertença. Isso não pode.” E realça que os serviços que Vitorino prestou à
Morodo Abogados “foi em assuntos europeus”. Em linguagem de advogado, a
ausência do termos “assessoria jurídica” faz toda a diferença.
Quando, em 2015,
uma ala influente do PS, onde estava Ferro Rodrigues, patrocinou a candidatura
de Vitorino, à Presidência de República, o primeiro-ministro António Costa
defendeu: “Vitorino reúne todas as qualidades para ser Presidente da
República.”
Mas o roteiro de
“interesses” do actual responsável das Nações Unidas abrira brechas na família
socialista, onde a voz mais estridente foi a do ex-chefe da Casa Civil de Mário
Soares, José Manuel Barroso, que escreveu no Facebook: “Vitorino será um
facilitador de negócios em Belém.” Em depoimentos ao jornal i, equiparou-o a
outro advogado português (este de José Sócrates): “É o [Daniel] Proença de
Carvalho do PS.” E destacava que em 2018 António Vitorino não estava só no
Cuatrecasas, sendo também “administrador do Santander, da Siemens Portugal,
presidente das assembleias gerais da Brisa, da Finipro, da Novabase e do banco
da Caixa Geral e do BPI em Moçambique, e presidente da Fundação Res Pública [do
PS].” E até “é administrador dos CTT, cuja privatização o PS condenou”. Um
amigo do actual responsável da ONU comentou, sem ironia: “O Vitorino é um
espírito livre.”
António Vitorino
é um peixe de águas profundas, com um historial de êxitos que lhe deram grande
notoriedade e justificaram o convite para ser comentador semanal da SIC. Em
2011, contestou os que o condenavam por se ter virado para os negócios: “Quem
deu 25 anos da sua vida à causa pública tem alguma autoridade para perguntar o
que fizeram pelo país os que atiram essa pedra.” Nada mais.
O tempo dirá se
as notícias que têm chegado de Madrid não passarão apenas de uma dor de cabeça
para o responsável pela Organização Internacional para as Migrações da ONU ou
se as repercussões das investigações a Morodo vão para além disso.
tp.ocilbup@arierrefc
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