EDITORIAL
O azar de ter
escolhido Azeredo
A prerrogativa de
um primeiro-ministro depor por escrito diante de um juiz é precisamente a mesma
à qual os titulares dos órgãos de soberania podem recorrer perante as comissões
de inquérito parlamentar.
AMÍLCAR CORREIA
10 de Janeiro de
2020, 6:47
Muito está ainda
por desvendar no patético caso de Tancos. O ex-ministro da Defesa é arguido
neste processo por alegadamente ter encoberto a encenada devolução das armas e
não ter denunciado a farsa e subsiste a dúvida quanto ao eventual conhecimento
que o primeiro-ministro tinha desta cómica teatralização. O que o advogado do
principal responsável do assalto jura é que a entrega do material roubado foi
feita ao “mais alto nível”, a troco de promessas de imunidade e com a intenção
de limpar a imagem do Exército, embora ainda ninguém saiba ao certo quem na
hierarquia castrense ou na tutela tinha conhecimento prévio da recuperação do
armamento.
A insistência do
juiz Carlos Alexandre no depoimento presencial de António Costa, indicado como
testemunha por Azeredo Lopes, está conforme a lei e poderá ser mais útil, por razões
óbvias, do que um depoimento escrito para o esclarecimento do obscuro assalto
ao paiol de Tancos. Mesmo que o ex-ministro Azeredo Lopes venha a prescindir,
como tudo indica, do testemunho do primeiro-ministro, nada obsta a que o juiz
requeira de novo a audição presencial de António Costa. Como nada na lei também
obsta a que o juiz ouça os titulares de qualquer outro órgão de soberania.
António Costa
beneficiou da possibilidade de optar pelo depoimento por escrito por pertencer
ao Conselho de Estado, resguardando-se, certamente, da inevitável exposição que
o poroso sistema judicial português está longe de impedir ao depoimento seja de
quem for. As rápidas e cirúrgicas fugas ao segredo de justiça não abonam a
favor da confiança no sistema e contribuem mais para gerar confusão do que para
o seu entendimento, como tem sido prática frequente, nomeadamente nos
megaprocessos em curso.
O depoimento oral
ou por escrito de um primeiro-ministro não pode é transformar-se num
desnecessário braço-de-ferro para apurar quem é mais soberano do que o outro,
sob pena de roçarmos um judicialismo boçal. Afinal, a prerrogativa de um
primeiro-ministro depor por escrito diante de um juiz é equivalente à que os
titulares dos órgãos de soberania têm nas comissões de inquérito parlamentar,
que gozam dos mesmos “poderes de investigação das autoridades judiciais que a
estas não estejam constitucionalmente reservados”. No mínimo, há aqui um
paradoxo. Mas se Costa se pode queixar de algo é mesmo do azar da sua escolha
para ministro da Defesa.
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