Almada era machista, racista e
fascista? Ramada Curto sobre a exposição na Gulbenkian
DIOGO RAMADA CURTO
06.05.2017 às 16h54
Almada total. Trabalhos do artista na exposição “José de
Almada Negreiros: Uma Maneira de Ser Moderno”, que reúne mais de quatrocentas
obras, muitas delas inéditas e abrangendo todas as disciplinas artísticas a que
se dedicou
A exposição patente na Fundação Calouste Gulbenkian levanta
quatro questões sobre Almada e o modernismo
Com a centelha que se lhe reconhece, António Valdemar
contou, há poucos meses, algumas pequenas histórias sobre Almada Negreiros e
Paris (Expresso, 4-2-2017). Em "Paris Sempre", a narrativa de uma
série de episódios permite esclarecer algumas das relações familiares, de
amizade ou de ódio mantidas por Almada, bem como perceber, a uma nova luz, os
compromissos ideológicos assumidos pelo mesmo. Um saber vasto, baseado na
acumulação de memórias pessoais, como sucede com Valdemar, tem a vantagem de
tornar concreto aquilo que, à primeira vista, parece abstrato. Historietas e
anedotas permitem, pois, uma espécie de descida à terra, acabando por pôr o
dedo na ferida. Tudo para salutarmente profanar domínios, constituídos pelas
esferas do que é considerado estético e literário, as quais aspiram a ser
colocadas num plano intocável da transcendência.
Ao inspirar-me no artigo de Valdemar, a minha intenção não é
a de louvar ninguém. Nem Almada nem o próprio. Apenas pretendo aproveitar-me
das historietas contadas por aquele, para refletir sobre quatro questões. E,
neste exercício, não escondo ser o louvor o pior modo de prestar homenagem a
alguém (Jorge de Sena dixit, segundo Onésimo Teotónio de Almeida,
"Despenteando Parágrafos", Quetzal, 2015). A este respeito, sigo
também o que disse Juan Goytisolo sobre Antonio Machado: não só o empenho em elevar
o poeta aos cumes da perfeição não corresponde à realidade como querer estender
o manto da sua grandeza, às suas muito discutíveis opiniões sobre vida e
literatura, apenas serve para prolongar "a reverência beata e
acrítica" dos seus admiradores ("Obras Completas", vol. VI).
1. Que relação teve Almada com África? Trata-se de uma
questão básica, uma vez que Almada era meio-africano.
A sua formulação implica, também, perguntar, em termos mais
genéricos: onde é que está a influência do "primitivismo" africano no
modernismo português? Nascido numa roça em São Tomé de pai branco administrador
colonial, escritor e jornalistae de mãe mulata nascida em São Tomé, mas de
família roceira vinda de Benguela, Almada veio para Portugal com dois anos.
Através de diversos episódios contados por Valdemar, ficamos
a saber que, em adulto, manteve sempre com o seu pai uma distância propositada,
apesar de terem coincidido em Paris.
Numa outra situação, também são referidos os comentários
racistas que Almada proferiu em relação a um dos seus inimigos, nascido em Cabo
Verde, e a quem chamou "cor de café com leite" - Martinho Nobre de
Melo, professor de Direito, ministro durante o Estado Novo e que veio a ser
diretor do "Diário Popular". Sem querer entrar nas razões
psicanalíticas que explicarão uma certa recusa das origens africanas de Almada,
o que se afigura importante é discutir se a sua obra manteve com África uma
relação de desinteresse. Um desinteresse de Almada, como já foi notado,
extensivo aos artistas africanos e são-tomenses: Costa Alegre, poeta, Viana da
Mota, músico, e Pascoal Viegas Vilhete, mais conhecido como
"Canarim", pintor (António Ambrósio, "Almada Negreiros,
Africano", Estampa, 1979).
Numa altura em que o primitivismo de matriz africana serviu
de inspiração ao modernismo de Picasso e Modigliani, será que o fantasma
africano de Fernando Pessoa, educado na África do Sul, foi simplesmente
recusado por Almada? Ou poder--se-á dizer que a relação inexistente com o seu
pai chega para explicar a quase ausência de África da obra do artista dobrado
de escritor? De notar que o seu pai - estabelecido em Paris como jornalista e
correspondente de "O Século", após a grande Exposição Universal de
1900, se casou com uma francesa, pois enviuvara da mãe dos seus filhos em 1896
- era autor de uma "Historia Ethnographica da Ilha de S. Thomé"
(Lisboa, 1895) e de outros trabalhos sobre as ilhas e as colónias portuguesas.
Os seus livros e artigos corresponderam ao início e estão bem no âmbito de uma
das grandes discussões de âmbito internacional sobre as plantações de cacau e a
mobilização de contingentes de mão de obra, em regime de trabalho forçado ou
daquilo que era tido como escravatura moderna.
Ou seja, os anos que precederam o Orpheu (1915) foram de
constante discussão em torno do projeto colonial português, muito em especial
de São Tomé e de Angola, envolvendo sobretudo os modos de exploração das
populações africanas. Conforme bem notou Rámon Gómez de la Serna, quando
visitou Lisboa em 1915, em cartas para a sua tertúlia madrilena do Café Pombo:
Portugal olhava para o mar e estava impregnado da riqueza das suas colónias.
Aliás, quem tinha compreendido bem esta mesma situação teria sido o poeta
Antonio Machado, ao escrever "Portugal es solo un pretexto para tener un
pie en Europa" ("Obras Completas", vol. XX - Escritos
Autobiográficos, Círculo de Lectores - Galaxia Gutenberg, 1998).
Há alguns, poucos, traços da presença ou da valorização de
África, na obra de Almada que impõem um estudo sistemático sobre o tema
(autorretrato parisiense, de 1919, na coleção de Amaral Cabral; capa satírica
de Almada para o livro de Cunha Leal de ataque a Norton de Matos, desenhos da
mãe sem data e de uma mulher num bar, números 385-387 da exposição da
Gulbenkian). Porém, um dos principais contributos de Almada para a valorização
da arte africana foi tardio e surgiu como resposta a uma iniciativa oficial.
Data de 1934, na altura em que um dos intelectuais mais orgânicos do Estado
Novo, António Mendes Correia, organizou no Porto uma Exposição Colonial, acompanhada
de um colóquio sobre antropologia colonial. Neste mesmo ano, Diogo de Macedo
editou um livro de algum aparato gráfico intitulado "A Arte Indígena
Portuguesa", com capa de Almada, fotografias de Mário Novais, San Payo e
Alvão.
As suas ideias acerca dos artistas e da arte indígena só são
compreensíveis no interior de um projeto colonial português, racista, não
podendo ser confundidas com uma orientação minimamente autónoma ou emancipada
da cultura africana. Mesmo na década de 1930, Almada não saiu de perspetivas
bem eurocêntricas e que endossam "como boa a lógica do imperialismo
colonial" (como bem notou Gustavo Rubim, "A Promessa da Europa",
in "José de Almada Negreiros: Uma Maneira de Ser Moderno", Museu
Calouste Gulbenkian, 2017). Talvez, por isso mesmo, ou seja, reproduzindo a
omissão de escritores e artistas da época em estudo, José-Augusto França, em
"Os Anos Vinte" (1992), quase não aborda temas relacionados com o
império colonial, África e o racismo.
Conforme escreveu Macedo, no referido livro de 1934, depois
de contar o modo como Picasso e Modigliani impulsionaram o gosto pelo
colecionismo da arte africana: "Deixemos os pretos cultivar a sua arte com
a sua especial significação social, étnica e até estética, para não lhes
estragarmos a sua verdadeira razão de ser." O apelo à preservação de
culturas tribais, diferentes, mas inferiores, afigurava-se bem diverso do que
tinha sido assumido um quarto de século antes por Picasso, que se aproximou da
retórica anticolonial usada por anarquistas e socialistas nos debates acerca da
África francesa (Patricia Leighten, "The White Peril and L'Art Ne`gre:
Picasso, Primitivism, and Anticolonialism", The Art Bulletin, 1990).
Que diferença, pois, entre a expressão tardia de Almada e o
interesse, bem mais precoce, de Ramón de la Serna quando, em Lisboa,
colecionava estatuária africana na Feira da Ladra e não só! Claro que tal
interesse se conjugava no espanhol com várias considerações acerca das crianças
negras de pé descalço que abundavam em Lisboa. Bem como de uma espécie de
satisfação racista, ao constatar que Espanha era um país com poucos negros:
"Não que os negros sejam maus, nem depreciáveis, de modo algum, mas é
melhor assim, brancos, pobres e sós, e a cidade toma um aspeto mais puro."
Coisa que, no seu entender, não sucedia em Lisboa ("Cartas desde Portugal
Crónicas de El Día. Dos Viajes a Portugal" (1917-1918), ed. Maria Balmori,
Madrid: Albert Editor, 2013).
Acrescente-se, ainda, que Macedo tinha andado por Paris,
antes da Grande Guerra, onde conhecera Amadeu e Modigliani. E, numas memórias
desses mesmos anos, que andam esquecidas, contou, sem pudor, a história dos
bacanais, a que não terá só assistido, nesse mundo dos ateliês parisienses
("14, Cité Falguie`re", Seara Nova, 1930). Mas o certo é que Macedo estava,
na altura da publicação do referido livro, numa trajetória que iria terminar no
compromisso que assumiu com o Estado Novo. Dez anos depois, foi nomeado diretor
do Museu de Arte Contemporânea.
2. No caso de Almada Negreiros, como pensar a relação entre
a sua obra artística e as relações entre géneros? Uma das histórias contadas
por Valdemar envolve a deslocação a Portugal, entre 1917 e 1918, da companhia
dos Bailados Russos de Serguei Diaghilev e o impacto que tiveram em Almada os
seus espetáculos em Lisboa. O mesmo impacto não poderá ser dissociado do
contexto social lisboeta, em que se assistia a duas grandes discussões. Por um
lado, tratava-se de um debate recorrente de carácter moral que atravessou toda
a República e entrou pelo Estado Novo relativamente à vida depravada, à boémia
e às relações dos patriarcas ou chefes de família com as suas respetivas
amásias. De António Sérgio, nas páginas da revista "Águia" (1915), a
Raul Brandão em "Vale de Josafat" (1933, mas revisto em 1928),
encontram-se ecos de tal indignação moralizante, frente a uma espécie de
dissolução dos costumes a que era urgente pôr cobro. Por outro lado, colocou-se
o caso da homossexualidade de António Botto, defendida por Fernando Pessoa e
Raul Leal, em "Sodoma Divinizada" (ed. Aníbal Fernandes, Babel,
2010), que foi objeto de um ataque feroz por parte de meios católicos,
encabeçados pelos jovens Marcello Caetano e Pedro Teotónio Pereira (Zetho Cunha
Gonçalves, "Notícia do Maior Escândalo Erótico-Social do Século XX em
Portugal", Letra Livre, 2014).
Nesse mesmo contexto, interessaria perceber melhor a posição
de Almada, que, em 1917, escreveu: "É preciso educar a mulher portuguesa
na sua verdadeira missão de fêmea para fazer homens" ("Manifesto
Futurista").
Que se veio a casar, em 1934, quando contava 41 anos de
idade, com a grande pintora que foi Sarah Affonso, é um dado que interessará
ter em linha de conta. Não só para perceber o que ficou para trás, enquanto
experiências de uma juventude prolongada, como também para compreender as
desigualdades que, de modo mais ou menos involuntário, acabaram por se impor na
relação com a sua mulher.
Esta, depois de duas experiências de vida e de trabalho em
Paris, na década de 1920, reconheceu não ter sido fácil continuar a pintar,
dadas as obrigações que assumiu de dedicação à família e ao marido (Maria José
Almada Negreiros, "Conversas com Sarah Affonso", Arcádia, 1982).
Mais do que um simples caso individual, determinado por um
casamento ou uma relação a dois, não se constituirá Sarah Affonso em mais um
exemplo de uma longa série, em que as mulheres são pura e simplesmente
excluídas do campo artístico? Mais: até que ponto os movimentos ditos de
vanguarda, do modernismo ao surrealismo, se caracterizaram por um recorrente
modo de exclusão das mulheres do campo artístico.
Compreender esta mesma operação é tanto mais urgente quanto
o panorama da pintura portuguesa do século XX veio a alcançar com Vieira da
Silva e Paula Rego o máximo do nosso cânone. As referidas vanguardas parece que
se configuraram como um modo de continuar a hegemonia dos homens, excluindo as
mulheres, a ponto de se poder dizer que o modernismo continuou a impor as suas
práticas bem patriarcais, não se tendo constituído numa rutura, pelo menos, em
relação ao reconhecimento das mulheres artistas.
Atenção: ao procurar insinuar que existiu uma exclusão das
mulheres do campo artístico, não adoto a corriqueira e sexista afirmação de
que, na literatura portuguesa, de Eça ao neorrealismo, a mulher parece ter sido
excluída. Foi o que defendeu Alçada Baptista, quando sustentou que "a
mulher atingiu em Eça de Queirós o seu ponto mais baixo" e considerou que,
no neorrealismo, a luta antifascista não concedia à mulher sequer o direito à
pulsão sexual; rematando com uma bizarra formulação: "As letras
portuguesas têm-se recusado a entrar no cerne do enigma da situação amorosa e
têm-se limitado, nos seus melhores textos, a denunciar a sua incomodidade sem
qualquer inovação (...), indesculpavelmente, a criação literária portuguesa
parece ter-se limitado a glosar a cultura do sistema sem a pôr minimamente em
questão" (Alçada Baptista, introdução a Almada Negreiros, "Nome de
Guerra, Obras Completas, vol. II", Imprensa Nacional, 2ª ed., 1992).
3. Qual a relação entre o modernismo e a oposição à
república ou a adesão ao fascismo? Eduardo Lourenço defendeu que Almada, apesar
de tudo e a começar pelo ensaio "Direção Única" (1932), se afastou da
"tentação fascista em que soçobrou o seu primeiro ídolo Marinetti";
porém, não deixou de limitar as excentricidades de Almada a um contexto bem
preciso, quando escreveu "ele foi o escândalo que a época pedia e
merecia" ("Almada, Ensaísta?", in "Obras Completas, vol.
V", Imprensa Nacional, 1992). Também Gustavo Rubim vem agora sublinhar que
Almada procurou a sua autonomia, teorizando em 1935 que "a primeira meta
da Arte é a sua autonomia" (Gustavo Rubim, in "José de Almada
Negreiros: Uma Maneira de Ser Moderno", Museu Calouste Gulbenkian, 2017).
Numa perspetiva diferente, Alfredo Margarido e Manuel
Villaverde Cabral vincaram que, no período entre as duas guerras, existiu uma
correlação entre o modernismo literário-artístico e a formação de uma ideologia
autoritária. E Valdemar veio, agora, insistir em elementos novos acerca da
relação de Almada com Homem Cristo Filho, desde 1915, e da sua colaboração na
revista "Ideia Nacional" (Miguel Castelo-Branco, "Homem Cristo
Filho: Do Anarquismo ao Fascismo", Nova Arrancada, 2001).
Também no caso de Almada, existem ambiguidades a ter em
conta que atenuam ou até contrariam a referida correlação. Eduardo Lourenço
percebeu-as bem. Mas, é claro, não serão as mesmas ambiguidades extensivas ao
caso de Ezra Pound, também ele uma personalidade excêntrica e fazendo
constantes provocações? O certo é que, em Portugal, a partir de 1926, a
tendência da ditadura e, depois, do Estado Novo para gerar consensos artísticos
e intelectuais levou a uma espécie de absorção dos modernistas pelo regime.
Resta saber até onde foi a cumplicidade ou colaboração dos próprios artistas e
escritores. Muitos deles, por necessidade ou opção, não se fizeram nada
rogados. António Ferro e, talvez ainda mais, os filhos da Ana de Castro Osório
souberam bem gerir esse mesmo consenso, servindo-se das suas afinidades com o
movimento modernista e exacerbando nele a dimensão do nacionalismo lusitano de
que os ensaios de Almada estão pejados. Porém, poder-se-á sempre objetar que,
na base de tal consenso, estava o simples facto de os artistas que não
colaborassem com o Estado Novo ficarem sem ter de comer. Foi o que, em boa
medida, sucedeu com Almada.
A propósito da receção do modernismo pelo Estado Novo, abro,
aqui, um parênteses para contar uma pequena mas bem verídica história, ocorrida
no início da década de 1960. Quem ma contou era, então, um menino que vivia em
Arganil, no seio de uma família muito culta. Pelos meses de verão, era costume
receberem a visita de monsenhor Moreira das Neves, que vinha na companhia de
Eurico Dias Nogueira, primo da sua avó, uma espécie de delfim da nova geração eclesiástica.
As visitas ocorriam quando os últimos se inteiravam que o pai, um grande
latinista, leitor de português em várias universidades espanholas, vinha de
férias. Moreira das Neves considerava-se, então, o grande divulgador de
Fernando Pessoa e, de certo modo, do modernismo.
Eram horas e horas, a debitar e a declamar. Fazia sempre
questão de ler o "Manifesto Anti-Dantas" de Almada, numa espécie de
consagração dos seus dotes histriónicos. Tudo isto até era engraçado. Mas o
menino, que tinha então nove, dez, onze, até talvez aos quinze anos, percebia
muito bem o que ele queria dizer. Um belo dia, o pai esgotou a paciência. Nunca
apreciara Fernando Pessoa. E, não se sabe bem a que propósito, atirou à queima
roupa: - "Monsenhor, as ciências filológicas regem-se por outros
critérios. Não são teologia e muito menos liturgia". A relação esfriou a
partir dali e as visitas foram sendo cada vez mais espaçadas. Porém, no final
daquele serão, sempre presidido pela avó, quando os eclesiásticos se retiraram,
o menino comentou para o pai: - "Era escusado." Ao que o pai
respondeu: - "Ó Maria de Lurdes, entrega o rapaz ao tio, que ainda chega a
cardeal!"
4. Última questão: entre a circulação de estrangeiros por
Portugal ou a simples importação de modelos estéticos e literários, qual a
verdadeira experiência internacional de Almada? Valdemar refere a sua curta
estada de um ano em Paris, entre 1919 e 1920, onde teve de trabalhar como
bailarino, insistindo também no facto de que, até ao final da sua vida, se
manteve a par do que por lá sucedia, nem que fosse com base na leitura da
revista "Paris-Match". Almada representaria então uma espécie de
Paris em Lisboa, ou seja, uma espécie de internacionalização por
correspondência, superficial. Claro que se poderá sempre objetar que o próprio
tinha consciência da estreiteza do terrunho.
Conforme declarou, numa conferência de 1926, intitulada
Modernismo: "É viver o que é impossível em Portugal." Neste sentido,
se deverá entender a experiência de Paris - onde o seu pai viveu e voltou a
casar, mas onde pai e filho não se encontraram - e os cinco anos de vida e
trabalho em Madrid, entre 1927 e 1932. Uma intenção de viver fora que Gómez de
la Serna antecipou, em carta de Lisboa de 1915, quando se referiu aos jovens
literatos, denominados "novos", como desejosos de se juntar à
tertúlia do Pombo em Madrid ("O.C.", vol. XX).
Enfim, o ponto de vista defendido por Valdemar, com o qual
concordo, corresponde bem às relações entre centros e periferias de produção
artística e intelectual, nas quais Portugal e os seus agentes parecem ocupar
posições de dependência. Ramón de la Serna que citou Blaise Cendrars para dizer
que "a crítica de arte é tão imbecil como o esperanto" - , malgrado a
consideração que tinha pelo "clarividente artista português Almada",
só o referiu, a propósito de Picasso e da sua estilização de Pierrot, para
falar da "sua obsessão de capricho frente à obsessão arlequinesca de
Picasso" ("Obras Completas, vol. XVII Retratos Completos"
(1941-1961), Círculo de Lectores Galaxia de Gutenberg, 2004).
De igual modo, no prefácio à "Leviana" (1929) de
António Ferro, o escritor espanhol notou que as ruturas ocorridas no meio
literário de Lisboa dependiam do que se passava fora de Portugal: "É
importante perceber este apagar da memória na vida de Lisboa, por parte dos que
têm a ambição de grandes talentos, dos grandes representantes das literaturas
estrangeiras, dos emissários magistrais de alguma parte, para compreender o
sentido da figura de Ferro, de uma persistência indutora, capaz de estabelecer
uma rutura" ("Obras Completas, vol. XVI - Ensaios", Círculo de
Lectores, 2005).
É evidente que a genialidade de Fernando Pessoa determinou a
partir da sua descoberta pelo modernismo brasileiro, cuja importância foi, por
sua vez, percebida a partir de 1920 por Cendrars e Marinetti - uma
reversibilidade da geografia e de tais relações de dependência. Porém, no caso
de Almada, por maior que seja o interesse que tenhamos na sua obra - incluindo
o "polimorfismo" que lhe atribuía Pessoa em 1913 -, será sempre
difícil apelar à mesma reversibilidade. Ou seja, com base em Almada, será
difícil argumentar que o modernismo português não tenha sido marcado pela
"dicotomia centro-periferia". E que seja, em alternativa, concebido
em termos policêntricos, por fazer parte de uma "rede transnacional".
Mais: Almada - tal como Pessoa, Ferro e muitos outros do modernismo -
incorporaram bem tais dependências e, cada um à sua maneira, procurou
ultrapassá-las, procurando contactos internacionais e alcançar perspetivas cosmopolitas.
Por isso, discordo do argumento principal que foi
corajosamente proposto por Mariana Pinto dos Santos, curadora da grande
exposição sobre Almada Negreiros, a decorrer na Fundação Calouste Gulbenkian
("José de Almada Negreiros: Uma Maneira de Ser Moderno", Museu
Calouste Gulbenkian, 2017). Não ponho em causa que se trata de um argumento
sedutor, por contrariar a ideia de um único centro de produção artística e
literária, localizado em Paris, e procurar seguir vários modernismos.
Artistas e escritores, como Picasso e o próprio Blaise
Cendrars, investiram na ideia de policentrismo. Este último fê-lo, por exemplo,
publicando a "Anthologie du Nègre" (1921) e passando grandes
temporadas no Brasil.
Porém, nem Amadeu nem muito menos Almada conseguiram escapar
à ideia de um modernismo português periférico (Ellen Sapega, in "The
Cambridge Companion to European Modernism", ed. Pericles Lewis, 2011).
Considerar que eles alimentaram e participaram de relações em rede - que não
correspondem às estabelecidas entre centros e periferias - é forçar a
realidade, a bem da aplicação de uma teoria. Que só pode ser validada se se
descontextualizar a produção artística da criação literária coeva e se esquecer
o contexto social e político, do qual dependiam as possibilidades de existência
de um público e de um mercado autónomos.
Tudo a bem da aplicação de uma teoria e de um conflito de
gerações que abra espaço para a afirmação dos mais jovens.
A minha discordância em relação a um conceito e a uma
teoria, porém, não afeta o que me parece mais importante. Ou seja, trata-se de
uma exposição a não perder, acompanhada de um catálogo, cujos estudos são
exemplo de uma bem organizada colaboração interdisciplinar, que nos ajuda a
compreender melhor os pontos que aqui procurei formular.
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