São lojas históricas, mas não são
museus
Lisboa está finalmente a tentar proteger
o seu comércio mais emblemático. O desafio, explicam os designers que pensaram
o projecto lisboeta, é que as lojas não parem no tempo e sejam relevantes na
actualidade.
JOÃO PEDRO PINCHA 28 de Maio de 2017, 8:09
Certo dia, ainda o trabalho estava a meio, Frederico Duarte
e os colegas chegaram ao pé dos técnicos da Câmara Municipal de Lisboa e
falaram na possibilidade de certo espaço comercial entrar para a lista de Lojas
com História. A reacção dos interlocutores foi de algum espanto. “Mas só tem 18
anos”, disseram-lhes. “E então?”
Aquele espaço acabou por não entrar no primeiro lote de 81
lojas a que foi atribuída a distinção, mas Frederico Duarte, Álbio Nascimento,
Isabel Lopes de Castro e Guilherme Sousa deixaram uma posição vincada. Quem
disse que só as lojas velhas podem ser consideradas históricas? Foi este o
pensamento que norteou o trabalho do grupo de designers ligado à Faculdade de
Belas Artes da Universidade de Lisboa, a quem a autarquia encomendou a
definição de critérios para a escolha das lojas.
“Antes de começar a fazer pesquisa não tínhamos ideia
nenhuma de como se definiam esses critérios”, diz Álbio Nascimento, que mais à
frente na conversa reforçará que a equipa estava “completamente no vazio”.
Então porque foram escolhidos para a missão? Frederico Duarte acredita que isso
se deveu muito a Graça Fonseca, vereadora da Economia até Novembro de 2015
(altura em que foi para o Governo), que terá percebido que não se podia abordar
as Lojas com História com uma perspectiva meramente patrimonial e que descobriu
no design uma “abordagem multidisciplinar”. Isabel Lopes de Castro concretiza:
“Havia uma grande tónica no património edificado. O design serviu para trazer
outros aspectos fundamentais, como o mobiliário e o desenho de produto”.
Se por um lado decidiram, desde o início, “encontrar um
modelo em que a idade não fosse um critério de exclusão”, como explica Álbio,
também se viram confrontados com a “urgência” de definir regras. “Enquanto
estávamos a fazer este trabalho, já havia lojas a fechar”, diz Frederico, o que
irremediavelmente obrigou a que tivessem de escolher a antiguidade como
primeiro critério.
Mas isso foi apenas o ponto de partida. Neste momento, em
que a plataforma das Lojas com História já aceita candidaturas espontâneas,
estão definidos quase vinte critérios, enquadrados em três grandes chapéus: a
actividade, o património material e o património cultural e histórico – que é
sobretudo imaterial e que contribuiu para a criação de um “imaginário” em redor
de certas lojas ou zonas. Guilherme Sousa destaca, por exemplo, a Pérola de São
Mamede, uma das últimas mercearias daquele bairro. Sim, tem os armários
originais em madeira, o balcão em mármore, os preços escritos à mão e aquele
caos organizado de produtos amontoados que lhe dá o atestado de antiguidade.
Mas, também por ser uma das últimas do género numa zona da cidade que está na
moda e crescentemente ocupada por novos espaços comerciais, cumpre “um papel
social importantíssimo” que importava relevar.
Até porque, esclarece Isabel, “não nos interessa nada museificar
estas lojas”. O grande objectivo, dizem os membros da equipa, é que todos estes
sítios sejam descobertos ou redescobertos não só porque têm um ar very typical,
mas sobretudo porque são… lojas. Que vendem… produtos. “Houve uma grande
negligência destes negócios”, diz Álbio. A típica pescadinha de rabo na boca.
Pelo aparecimento de mais e melhor oferta, “os lisboetas viraram as costas” a
este comércio tradicional nas últimas décadas. Em consequência disso, muitos
empresários deixaram de investir. E aí os lisboetas deixaram mesmo de aparecer.
Hoje há lojas que funcionam sem motivo aparente, uma vez que se passam dias
inteiros sem que entre um único cliente, mas não é a caturrice de quem mantém a
porta aberta que o programa quer premiar. O Lojas com História é “uma
oportunidade de voltar a valorizar estes negócios sem nostalgia”, explica
Álbio.
Isso faz-se com base no que eles podem oferecer à cidade,
mesmo que por vezes isso não seja imediatamente evidente ou não haja um produto
que se destaque. As tabacarias, como a Martins e a Mónaco incluídas na lista,
são para o dia-a-dia, locais onde se pode comprar o jornal diário, o maço de
cigarros ou a lotaria. Os cafés e pastelarias, como A Brasileira, o Galeto, o
Nicola, a Mexicana ou a Bénard, podem ser frequentados diariamente ou quando
apeteça mesmo aquele croissant ou uma bica bem tirada. Outras lojas, como a
sementeira Soares e Rebelo, a Primeira Casa das Bandeiras, a Luvaria Ulisses, a
Chapelaria Azevedo Rua ou a Casa das Velas do Loreto, serão mais para ocasiões
especiais. Seja qual for o caso, o importante é que as pessoas saibam que elas
existem. “Há um espectro muito grande do público-alvo destas lojas”, diz
Guilherme.
O desafio é, também e acima de tudo, para os lojistas. “Um
bocado por saturação, as pessoas tendem a valorizar o que é particular e há um
olhar novo para o que é identitário e característico”, afirma Isabel. Ora, por
vezes, é preciso “ajudar os empresários a reconhecer o que têm”, acrescenta.
Quem disse que, só porque é mais recente, um toldo de plástico atrai mais
clientela? Por que motivo se deitam fora os velhinhos cartões de visita com
letra gótica? “Muitos destes critérios servem como incentivo”, diz Álbio, que
tem a esperança de que a ficha de candidatura funcione quase como “um processo
de revisão da loja”.
Trata-se, no fundo, de pôr os lojistas a pensar “eu até
posso fazer isto”. Uma semente que começou a ser largada logo nos trabalhos
preparatórios do programa. Na fase de levantamento, esta equipa calcorreou as
ruas de Lisboa em busca de potenciais lojas históricas. Foi mais do que “uma
fiscalização de património”, nas palavras de Guilherme, ou “uma recolha
insensível de dados”, como diz Álbio. Foram, isso sim, longas interacções com
resultados práticos. “No fim de uma conversa de duas horas, era o próprio
lojista que dizia ‘Então mas vocês não me podem ajudar? Tenho aqui uma ideia…’”.
Ideias que não são necessariamente uma adaptação radical a
um certo conceito de “moderno” nem um abrupto regresso ao passado. “Há um
grande risco de pensar que antigamente é que era bom”, alerta Frederico. “As
Lojas com História nunca podem ser abordadas do ponto de vista da autenticidade
ou da identidade”, defende Guilherme, explicando que são conceitos voláteis e
que seria sempre difícil (e polémico) escolher, na história de um espaço
comercial, o seu momento “mais autêntico”. Com mais ou menos evoluções, estas
81 lojas são para conhecer com todas as suas virtudes e imperfeições – não é
disso que é feita a História?
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