As palavras de Merkel e o pragmatismo
de Macron
Teresa de Sousa
29 de Maio de 2017, 20:10 actualizado a 29 de Maio às 22:09
1. Angela Merkel mede sempre as palavras. Aquelas que
proferiu no domingo, em Munique, não foram excepção. Chegaram, no entanto, para
provocar uma pequena tempestade. Quando disse que a Europa não pode continuar a
depender dos EUA, acrescentou um “completamente”. Vinha de uma cimeira da NATO
e outra do G7 que foram a estreia de Donald Trump na casa dos seus aliados
europeus e que correram bastante mal. Ficar em silêncio não era uma opção. Está
em campanha eleitoral. Mas a conclusão do seu raciocínio não podia ser mais
clara: “A Europa tem de tomar o seu destino nas próprias mãos”. Para quem
tivesse dúvidas, Donald Trump encarregou-se de demonstrar em Bruxelas e em
Taormina que há, de facto, uma ruptura na sua política externa em relação à
aliança transatlântica e à integração europeia. Não vale a pena ficar à espera
que venha a evoluir para posições mais consensuais. Se quisesse, tê-lo-ia feito
em Bruxelas e fez precisamente o contrário.
Segunda-feira, o porta-voz da chanceler tratou de fazer
alguns esclarecimentos sobre as suas palavras em Munique, lembrando que ela
continua a ser uma “atlantista profundamente convicta”. Merkel sempre valorizou
a relação transatlântica, que é um pilar da política externa alemã desde o
pós-guerra, mas também porque vinha do Leste e sabia por experiência própria o
papel dos EUA na libertação do domínio soviético. Mesmo assim, os seus
primeiros anos de mandato não foram propriamente exemplares no que diz respeito
à segurança europeia e às suas relações com o mundo. Viu o poder da Alemanha
como decorrente da sua força económica e levou tempo demais a compreender que a
falência da Grécia e a crise da dívida ameaçavam directamente o euro. Quando,
em 2011, o Conselho de Segurança votou a intervenção na Líbia, absteve-se ao
lado da China e da Rússia. Quando Hollande interveio no Mali, deixou entender
que não estava disponível para financiar as guerras da França. Mudou
radicalmente com a crise ucraniana. Percebeu que o terrorismo e a Síria diziam
respeito à Europa. Hoje, dá apoio logístico às operações militares dos EUA e
dos aliados europeus contra o Daesh. A referência que Merkel fez ao Reino Unido
no mesmo discurso quis dizer apenas que o "Brexit" terá
consequências. Londres já veio dizer que a Europa pode contar com o Reino Unido
em matéria de defesa. A primeira-ministra britânica está na posição
insustentável de querer utilizar a América como uma alternativa à Europa e, ao
mesmo tempo, mostrar aos europeus que precisam do seu país para uma defesa
credível. Arrisca-se a perder nos dois tabuleiros.
2.A defesa europeia já subiu na lista de prioridades da
União. A Alemanha e a França querem um comando operacional em Bruxelas para
operações apenas europeias e tudo indica que vão lançar uma “cooperação
estruturada” (prevista no Tratado de Lisboa) para a segurança e defesa com os
países que quiserem avançar neste sentido. Já têm o aval da Espanha e da Itália
e dos países de tradição atlântica, como Portugal ou a Holanda. Mas é apenas o
início de um caminho que será muito longo e que não depende apenas do dinheiro
investido. Já não se trata do soft-power, que a Europa pratica em larga escala,
desde a ajuda humanitária e ao desenvolvimento às missões de peacekeeping ao
serviço da ONU. O problema é outro. A Europa tem sensivelmente o mesmo número
de soldados que a América, mas apenas uma pequena parte está em condições
operacionais. Apenas a França e o Reino Unido têm capacidade de projecção de
forças. E, mesmo assim, dificilmente dispensam o apoio norte-americano. Um
exemplo: na Líbia, os navios americanos dispararam centenas de tomahawks para
neutralizar a aviação de Kadhafi, antes dos bombardeamentos britânicos e
franceses. A questão é saber até que ponto os europeus conseguem definir a sua
própria estratégia. Olivier de France (do IRIS de Paris) e Sophia Besh (do
Centre for European Reform de Londres) resumiram no site euObserver o que está
em causa: os europeus têm de começar por um exercício de auto-avaliação (que
nunca fizeram) sobre as suas capacidades efectivas, que inclua “a utilização e
a projecção de forças, a sustentabilidade, um gasto devidamente planeado, a
prontidão e a definição dos sectores onde têm de aumentar o seu hard power.” Os
dois autores lembraram também que a Europa precisa de salvar a NATO do
Presidente americano.
3. A eleição de Emmanuel Macron pode ajudar a fazer a
diferença. O Presidente francês já começou a provar que a França está de
regresso à cena internacional, orquestrando aquilo a que Pierre Haski chama de
“momento Macron”, com um timing e um simbolismo perfeitos. Almoçou com Trump em
Bruxelas, para receber ontem o Presidente russo no Palácio de Versalhes, a
pretexto de uma exposição sobre Pedro o Grande, “o czar reformador que há três
séculos veio procurar a França a via e os meios da modernidade”, lembra o mesmo
analista francês. O tom não foi de cedência mas de pragmatismo. Antes do
encontro, Macron tratou de esclarecer que nada ainda mudou para levantar as
sanções e resolver a “intervenção” russa na Ucrânia. Depois de almoçar com
Trump, disse que se tratou de “uma primeira experiência para ambos e [o
Presidente americano] compreendeu o interesse de uma discussão multilateral”.
Recusou-se a entrar na lógica dos “seis contra um” no G7. “Não é do nosso
interesse”. Com ambos, sublinhou que a sua prioridade é combater o terrorismo.
Trump acabou por funcionar como um sinal de alarme para a
Europa, que ninguém pode dizer que não ouviu. Basta que Macron e Merkel estejam
à altura do que se espera deles.
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