“O meu Partido é o Porto”
Rui Moreira
OVOODOCORVO
Os desafios do burgomestre Moreira
Rui Moreira deve estar agora a
recordar-se que o Porto é uma cidade que detesta comportamentos imperiais. Uma
leitura atenta da luta entre Rui Rio e Fernando Gomes, em 2001, pode adverti-lo
que, na cidade, as autárquicas são sempre uma fantástica caixinha de surpresas.
Manuel Carvalho
10 de Maio de 2017, 6:38
E de repente, o que se julgava ser uma viagem triunfal para
a recondução de Rui Moreira na presidência da Câmara do Porto tornou-se um saco
de gatos onde reina a incerteza, a dúvida, a suspeita e um travo de azedume. No
meio da barafunda causada pela inesperada e bizarra ressurreição do PS na
corrida autárquica, só o PSD de Álvaro Moreira, o Bloco de João Semedo e o PCP
de Ilda Figueiredo têm razões para rir. O presidente Rui Moreira abdicou de um
passeio triunfal por uma aventura incerta e Manuel Pizarro aparece na contenda
com o ar do rapaz aturdido após um ataque de bullying no recreio da escola. O
Porto autárquico é uma inesgotável fonte de surpresas.
No epicentro do terramoto está sem dúvida Rui Moreira. Por
muito que culpe o Secretariado do PS, ele é o autor material da mais exemplar
defenestração política dos últimos tempos em Portugal. Para percebermos melhor
o que se passou, temos de fazer uma pergunta prévia: será que ele queria mesmo
deitar o PS borda fora? Ou o abandono surpreendente do PS do seu barco resulta
apenas de um erro de cálculo? Como na política o que conta em última instância
são os votos, custa a acreditar que tenha havido um esforço consciente de
Moreira para recusar a quota eleitoral de 23% captada pelo PS nas últimas eleições.
O que deixa margem para a segunda opção: a manobra correu mal. Não era para ser
assim.
Rui Moreira tem todos os motivos para se sentir uma estrela
no firmamento da política. Para dizer o que quer e não quer. Conquistou o Porto
partindo de uma base muito pequena, suscitou o interesse da imprensa
internacional, geriu a cidade num dos seus momentos mais auspiciosos,
projectou-se como figura de indiscutível relevância nacional e, corolário
lógico, tinha razões reclamar o crédito de todas as vénias da partidocracia
nacional. Recusar um envolvimento directo do PS, ou do CDS, na constituição da
sua lista era uma forma de manter a coerência do seu programa. E de conservar o
estatuto incontestado de primus inter pares na política portuense.
Mas, nada do que disse Ana Catarina Mendes podia justificar
a sua intransigência e até agressividade para com o PS, porque, como não há
almoços grátis, também não há dádiva de votos a custo zero. A secretária-geral
adjunta falou de mais, mas não disse vez alguma que ou Moreira dava ao PS dois
lugares e uma empresa municipal, ou correria sozinho. O PS Porto profundo,
velhaco e conspirador, mexeu-se, mas para lá de uma ou outra alfinetada
insidiosa, estava domado na sua irrelevância. O PS não tinha o direito de
exigir em público condições para apoiar Moreira, mas o céu não cairia em cima
da cabeça do presidente se aceitasse a procura de protagonismo do PS como algo
natural. Foi aliás o que fez Paulo Portas nas últimas autárquicas, sem que isso
tenha gerado problemas por aí além.
A questão de Moreira é que ele quer sair das autárquicas com
poder acrescido, como uma força política emergente e transversal aos partidos,
com uma aura que confirmasse a sua entrada na História como uma absoluta
excepção num sistema partidário apesar de tudo resistente e estável no quadro
europeu. E para o conseguir, tinha de remeter o PS à condição de mendigo que só
por especial deferência poderia entrar na corte do burgomestre. O povo ainda
gosta de quem mete os políticos profissionais na linha.
A corda rompeu porque Rui Moreira não acreditava que os
socialistas pudessem ter um derradeiro assomo de dignidade e bater com a porta.
O PS tinha-se tornado num saco de boxe e os sacos de boxe não se queixam da
pancada. Quando, em Abril, o porta-voz de Rui Moreira veio a terreiro dizer que
“não vamos ter jobs for the boys na Câmara do Porto”, deixou passar uma
mensagem subliminar devastadora - toda e qualquer pretensão do PS para integrar
as suas listas seria uma espécie de favor concedida a um vassalo político.
Houvesse um pouco mais de dignidade do PS Porto e a conversa tinha acabado ali.
Manuel Pizarro encaixou a ofensa e agora paga a factura da
irrelevância a que se votou. A forma como afastou a vereadora Carla Miranda do
Executivo apenas para acomodar a rejeição de Rui Moreira a esta socialista
inconformada mostrou a sua propensão para a subalternidade. Pizarro chegou a
dizer que “ninguém entenderia” que concorresse contra Rui Moreira – uma forma
inocente de colocar o interlocutor numa posição de força. No auge da crise na
semana passada, terá tentado salvar o apoio a Moreira até à última. Até que
António Costa decidiu recordar a velha expressão de Jorge Coelho e pôr termo à
brincadeira: quem se mete com o PS leva.
Rui Moreira vai ter agora de lutar para ganhar. Numa cidade
como o Porto, bater o pé aos grandes partidos é uma estratégia que deu frutos
em 2013 e dará seguramente frutos em 2017. A “singularidade tripeira” baseia-se
afinal na afirmação de uma identidade distintiva baseada nos valores liberais (ou
burgueses), nas contas “à moda do Porto”, e na desconfiança face aos poderes
dos nobres, da capital ou do Secretariado do PS – aquilo que configura o
demónio do centralismo.
No combate para ser reeleito, o presidente tem a seu favor o
cosmopolitismo e uma inegável ligação ao sentir popular do Porto. Mas terá de
vencer constrangimentos. Não tem obras para mostrar. O impacte do Turismo leva
um número crescente de eleitores, principalmente jovens, a recusar o seu
discurso liberal e condescendente (embora correcto) quanto aos seus custos. A
proliferação de parcómetros sem uma conveniente estratégia para o trânsito
levou muitos a olhá-lo como um gestor insensível aos problemas quotidianos. Um
discurso ríspido e, por vezes, vagamente intolerante para com a imprensa
surpreendeu os que julgavam a agenda persecutória de Rui Rio contra os jornais
um anacronismo irrepetível no Porto. E, mais grave de tudo, o caso Selminho,
que envolve a possibilidade de construção em terrenos da família Moreira
através de uma transacção judicial com a Câmara, pode tornar-se um factor de
desgaste de consequências imprevisíveis.
Entre todas os trunfos e vulnerabilidades, Rui Moreira
continua a ser o candidato com mais possibilidades de vencer. Os bairros estão
bem à custa do trabalho de Pizarro, a Baixa vive uma dinâmica fulgurante, as
contas estão melhor do que nunca, o Porto voltou a ser uma cidade de Cultura, a
economia respira saúde e em planos de obras como o do Bolhão, Rui Moreira soube
usar o trunfo da identidade, fazendo bem a ponte entre a Nevogilde fina e a
Ribeira popular. É essa a sua força: para ambos os eleitorados, o Porto é
sempre o melhor partido. Mas ao deitar o PS borda fora tornou as autárquicas
numa equação de resultado incerto.
Rui Moreira deve estar agora a recordar-se que o Porto é uma
cidade que detesta comportamentos imperiais. Uma leitura atenta da luta entre
Rui Rio e Fernando Gomes, em 2001, pode adverti-lo que, na cidade, as
autárquicas são sempre uma fantástica caixinha de surpresas.
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