Acordo com a família de Rui Moreira
teve por base compromisso inexistente
Ao contrário do que consta do acordo
judicial que firmou com a Selminho, a Câmara do Porto nunca declarou, antes da
posse de Moreira, que a pretensão da empresa “podia ser atendida“ na revisão do
PDM em curso.
JOSÉ ANTÓNIO CEREJO
29 de Maio de 2017, 6:29
O acordo firmado em 2014 entre a Câmara do Porto e a
Selminho, imobiliária da família de Rui Moreira, teve por base um compromisso
camarário de rever duas normas do Plano Director Municipal (PDM), alegadamente
assumido pelo município em 2012, no mandato de Rui Rio, mas que nunca existiu.
Este facto reforça as teses dos que afirmam ter havido, após a posse do
presidente da câmara, uma alteração favorável à Selminho na posição do
município sobre o litígio que mantinha com aquela empresa. Mas há quem aponte em
sentido diverso.
Com uma origem semelhante a muitos outros que se arrastam
nas câmaras e nos tribunais, o conflito que opõe, desde 2005, aquela
imobiliária ao município do Porto prende-se com divergências sobre o que pode
ou não ser construído num terreno da primeira. Em causa estão interpretações
distintas do PDM. Neste caso, o diferendo nasceu do facto de a Selminho
considerar que tem direito a construir o que era permitido quando comprou o
terreno, em Julho de 2001. A autarquia, por seu lado, sempre entendeu que à
data em que a empresa formalizou a intenção de construir, Novembro de 2005, o
local já estava vedado à construção.
Adquirida por 30 mil contos (cerca de 150 mil euros) a um
casal que lá residia há dezenas de anos e a registara por usucapião um mês
antes, a propriedade, com 2260 m2, situa-se num terreno fortemente inclinado,
sobranceiro ao Douro, mesmo ao lado da ponte da Arrábida e junto à Via
Panorâmica Edgar Cardoso. Por baixo, em plena escarpa, encontra-se o condomínio
Douro Foz, um empreendimento habitacional erguido em socalcos pela empresa
Contacto [então pertencente ao grupo Sonae, proprietário do PUBLICO] numa
altura em que PDM de 1993 não proibia a construção nas escarpas do Douro.
Um anúncio no JN
No caso da empresa que Moreira partilha com os seus sete
irmãos, a decisão de compra foi tomada face a uma informação camarária segundo
a qual se podiam ali construir quatro pisos. Mas ao contrário do PIP (Pedido de
Informação Prévia) que a câmara aprovara à Contacto em 1996, o documento
exibido pelo proprietário aos vários compradores que lhe bateram à porta,
depois da publicação de um anúncio no Jornal de Notícias, não era susceptível
de gerar quaisquer direitos de construção. Tratava-se de um mero Pedido de
Informação Urbana (PIU), emitido pela câmara no início de 2001 e do qual apenas
constavam as condicionantes urbanísticas genéricas da zona.
Nessa altura, o PDM de 1993 estava a ser revisto, pelo que
se encontrava suspenso, vigorando normas provisórias que, segundo a Selminho,
lhe permitiam construir perto de 4700 m2. Para o fazer, teria contudo de obter
a aprovação de um PIP, ou uma licença de obras até Setembro de 2002, ocasião em
que as normas provisórias caducaram. O PDM de 1993, que também permitia
construir no local, voltou então a vigorar. Só que foi automaticamente suspenso
com a publicação das medidas preventivas que substituíram as normas provisórias
e também caducaram três anos depois. Por esse motivo, alega a Selminho numa das
acções que intentou contra o município, a empresa acabou por avançar só em 23
de Setembro de 2005 com um PIP destinado a avaliar a viabilidade de construção
de um edifício a projectar pelo arquitecto Alcino Soutinho. O imóvel teria 12
apartamentos T4 e quatro pisos, um dos quais acima da cota da via panorâmica,
uma área de construção de 5314 m2 e 1100 m2 de implantação.
O momento inaugural do litígio ocorreu então, uma vez que
dez dias antes, a 13 de Setembro, a câmara presidida por Rui Rio aprovara uma
deliberação que suspendia, a partir da data da caducidade das medidas
preventivas, todos os PIP desconformes com o novo PDM, em fase de ratificação
governamental. Quer isto dizer que a análise e decisão sobre o PIP da Selminho
ficou suspensa, atendendo a que o pedido entrara depois de 13 de Setembro e que
o regulamento do PDM – então a aguardar ratificação -, proibia a construção em
áreas classificadas como escarpas.
Deferimento tácito
Reagindo à suspensão do PIP, a empresa interpôs uma acção
judicial com vista à declaração de nulidade da deliberação camarária que o
suspendeu, dando início a uma batalha legal que só terminou com o acordo de
2014. Passados dois anos, no fim de 2007, e com o processo judicial ainda
pendente, os serviços camarários deram-se conta de que o prazo para apreciação
do PIP, que começou a contar após a publicação do PDM revisto, em Fevereiro de
2006, já expirara sem que a câmara se tivesse pronunciado.
Em consequência, o pedido da Selminho foi considerado
tacitamente deferido. O departamento jurídico do município entendeu, todavia,
que o caso devia ser objecto de parecer do Urbanismo, por forma a aferir a
validade do deferimento tácito à luz das normas em vigor aquando da sua
formação. A conclusão, corroborada pela hierarquia da Direcção Municipal de
Urbanismo, foi a de que o PIP era “manifestamente contrário” aos artigos 42 e
43 do PDM.
Reapreciado o assunto a pedido do director municipal de
Urbanismo, o entendimento manteve-se, sendo a requerente notificada, no
princípio de 2009 e por proposta do departamento jurídico, para que se
pronunciasse sobre a intenção camarária de declarar a nulidade do deferimento
tácito do PIP. Em resposta, a família Moreira desencadeou em Dezembro de 2010
uma nova acção judicial - aquela que foi declarada extinta pelo tribunal com o
acordo de 2014 – na qual pediu que fossem declarados ilegais os artigos 42 e 43
do PDM. Se isso não acontecesse, o município deveria ser condenado a pagar-lhe 1.520.000
euros mais juros.
Um mês depois, a câmara e a empresa pediram a suspensão do
processo por cinco meses, afirmando que se “vislumbra” a possibilidade de um
acordo entre as partes. Deferido o pedido e passados oito meses sem haver
acordo, requereram nova suspensão, “considerando (…) a séria possibilidade de
eventual transacção sobre o objecto da presente lide”. O juiz acedeu novamente,
ordenando o prolongamento da suspensão até à entrada em vigor da alteração do
PDM que estava a ser preparada.
Reclamações rejeitadas
Em paralelo, no âmbito da discussão pública da alteração em
causa, a Selminho apresentara uma reclamação, em finais de 2010, para conseguir
a mudança da classificação do seu terreno, sustentando que tecnicamente ele não
se situava numa escarpa e que a proibição total de ali construir era
“desproporcionada”. A possibilidade de entendimento ficou assim a depender do
resultado dessa reclamação, mas os sucessivos pareceres camarários eram
unânimes em a rejeitar. No entanto, logo em Maio, prosseguindo uma estratégia
que já então se caracterizava pela tentativa de evitar o julgamento da acção, a
autarquia respondeu a mais uma interpelação do juiz, informando que “está a ser
preparado o relatório da discussão pública e a proposta final da alteração do
PDM (…)”.
Ainda assim, registou-se na fase final da análise das
reclamações e exposições da Selminho, em 2011, uma visível tensão e divergência
de pontos de vista entre os técnicos e dirigentes das direcções municipais da
área do Urbanismo, de um lado, e do Ambiente, do outro, quanto às pretensões da
empresa. Em Julho de 2012, finalmente, a câmara aprovou a alteração do PDM sem
autorizar a construção na escarpa da Arrábida e recusando a reclamação da
imobiliária. Face a esse desfecho, a Selminho pediu ao tribunal o fim da
suspensão do processo, de modo a que o caso fosse a julgamento.
Contestação fora de prazo
Só então é que a câmara contestou a acção, mantendo a sua
posição de sempre e defendendo que a imobiliária “não era detentora de qualquer
direito edificatório”, pelo que não lhe poderia ter causado prejuízo. Mas de
nada serviram estes argumentos, posto que, a pedido da empresa, o juiz
considerou a contestação “extemporânea”, ordenando a sua retirada dos autos por
não ter sido entregue nos 15 dias que se seguiram ao termo da sua primeira
suspensão. Daqui resultou uma clara fragilização da posição do município, que
ficou sem defesa e cujos advogados entendiam, segundo os actuais responsáveis
camarários, que a possibilidade de o município ganhar a causa era reduzida.
Já em Novembro de 2013, pouco depois de Moreira ter tomado
posse na câmara, o juiz decidiu marcar uma audiência prévia do julgamento, para
Janeiro, destinada a uma tentativa de conciliação. Logo a seguir, sem
previamente se declarar impedido de intervir no caso por ser sócio da Selminho,
o autarca passou uma procuração em nome do advogado da câmara que acompanhava o
assunto desde o início.
Ainda que não haja nos documentos disponíveis indícios de
qualquer outra intervenção de Moreira no caso, a circunstância de ter assinado
tal procuração é uma das que levaram os eleitos da CDU a pedir à
Procuradoria-geral da República a averiguação da existência de ilegalidades na
sua actuação. Numa declaração feita no ano passado, o autarca afirmou que
assinou a procuração por indicação do seu chefe de gabinete à época, o
professor Azeredo Lopes, “ilustre jurista” [e actual ministro da Defesa que
confirmou essa afirmação], para que o município não ficasse sem representação
na audiência de Janeiro.
Daí para cá o que sucedeu foi aquilo que a CDU diz ser a
mudança de posição do município, que passou a “reconhecer formalmente à
Selminho ‘direitos’ que antes nunca reconhecera”. Para sustentar esta acusação,
os comunistas apontam o acordo judicial que, à imagem do que já acontecera
muitas vezes, as partes admitiram na audiência prévia que poderia vir a ser
estabelecido para pôr termo ao litígio. A novidade é que desta vez houve mesmo
um acordo em que o município “se compromete”, no decurso do novo processo
revisão do PDM, ainda em curso, “a diligenciar” para que as pretensões de
construção da empresa sejam satisfeitas.
A justificação do acordo
Na óptica dos colaboradores mais próximos de Rui Moreira,
este acordo, assinado pelos advogados em Agosto de 2014, poupa o município ao
risco, alegadamente elevado, de ser condenado a pagar a indemnização pedida
pela outra parte. Além disso, sustentam, a câmara evitou deste modo um risco
ainda maior: o de ser condenada a pagar essa indemnização e depois ter de
autorizar a Selminho a construir, se o PDM viesse a permiti-lo.
O ponto mais fraco desta argumentação reside na justificação
do acordo, constante de um dos seus considerandos, em que se afirma que
“durante o processo de alteração do PDM que ocorreu em 2012, o réu município
declarou que a pretensão da autora (…) podia ser atendida nesse processo de
revisão”. Numa informação solicitada pelo departamento jurídico aos serviços de
Urbanismo para fundamentar aquele acordo lê-se mesmo: “O compromisso da câmara
em rever a questão das áreas de protecção a recursos naturais sobre escarpas,
nomeadamente no que diz respeito ao disposto nos artigos 41 e 42 do PDM,
encontra-se assumido na aprovação da 1.ª alteração ao PDM, mais concretamente
no seu relatório de ponderação da discussão pública (…)”.
Acontece que no relatório nada consta nesse sentido, apenas
num anexo - numa resposta à reclamação da Selminho subscrita pela mesma chefe
de divisão que garantiu a existência de tal compromisso - que “só no âmbito de
uma revisão do PDM, e tendo por base estudos específicos que forneçam dados
capazes de determinar os diferentes graus de susceptibilidade destas áreas, é
que se poderá reavaliar o estatuto de edificabilidade adoptado nas áreas de
protecção de recursos naturais e em particular qual o estatuto de protecção a
atribuir às escarpas”.
Favorável aos que garantem que a Selminho não foi
beneficiada pela câmara com o acordo em questão mostra-se pelo menos a
negociação do respectivo texto. A minuta inicial, redigida pelo advogado da
empresa, estabelecia que, se a revisão do PDM não satisfizesse os seus
clientes, as partes comprometiam-se a constituir um tribunal arbitral “com
vista à fixação da justa indemnização devida”. Em resposta, o mandatário da
câmara contrapôs uma versão em que se dizia que o tribunal arbitral seria
constituído “com vista ao apuramento da existência de um eventual direito a indemnização”.
Já a directora municipal responsável pelos serviços
jurídicos, Raquel Maia, que na primeira fase do mandato de Rui Moreira se
manteve nessas funções, acumulando com as de directora municipal da
presidência, reescreveu a proposta municipal, propondo que o tribunal tivesse
em vista “o apuramento da eventual indemnização devida”. A versão que acabou
por ser assinada pela partes foi, no entanto, a do advogado do município.
Rui Moreira: “Eu e a minha família
estamos prejudicados”
Presidente da Câmara do Porto lembra
que nunca participou em qualquer decisão sobre o terreno da Selminho, uma
empresa de que é sócio com outros familiares, e que o lote em causa, ao
contrário do que sucedia quando foi comprado, não tem capacidade construtiva.
JOSÉ ANTÓNIO CEREJO
29 de Maio de 2017, 6:29
“Desligar-me da Selminho, onde tenho e sempre tive apenas
uma pequena participação indirecta e onde nunca participei nem na gerência nem
na decisão da compra do terreno em causa, não faria qualquer sentido”, disse
Rui Moreira, por escrito, em resposta ao PÚBLICO. “Desde logo porque a empresa
permaneceria no domínio da minha família, o que resultaria nos mesmos
impedimentos. Se o fizesse, teria sido o primeiro candidato autárquico em
Portugal a desfazer-me de bens para poder assumir um cargo” acrescentou - esquecendo-se
do polémico caso de Manuel Salgado, o vereador da Câmara de Lisboa que vendeu
aos filhos e à ex-mulher as participações que tinha num gabinete de
arquitectura.
O autarca do Porto notou também que, mesmo que a empresa
tivesse pensado em vender o terreno, ninguém quereria comprá-lo, já que,
“contrariamente ao momento em que foi adquirido, ele não tem valor agora, sem
capacidade construtiva”. A ser seguido este princípio, “nenhum autarca poderia
possuir uma residência no concelho onde exerce, pois existiria sempre um
potencial conflito”. De qualquer modo, frisou, “nem a lei nem a ética a isso
obrigam e, pelo contrário, definem os procedimentos a assumir nesses casos”,
que, garante, sempre cumpriu.
“Tive sempre o cuidado de não participar em nenhuma decisão
relacionada com os meus interesses. Nenhuma decisão foi tomada ou influenciada
por minha indicação ou ordem. Quando o assunto, no concreto, foi abordado em
reunião de executivo, ausentei-me. Se, por indicação do meu chefe de Gabinete,
que é um reputado Professor de Direito, tomei algum acto administrativo, sem
efeitos em qualquer decisão prática, foi no sentido de garantir a representação
da autarquia em juízo.”
Quanto ao resto, o que lhe parece mais relevante “é nunca
ter sido beneficiado em nada”. Antes pelo contrário, conclui: “O terreno não
tinha capacidade construtiva quando tomei posse e continua a não ter, nem
qualquer garantia de vir a ter. Ninguém pode ser acusado de se ter beneficiado
quando está prejudicado. E eu e a minha família estamos e continuamos
prejudicados.”
O assunto vai ser debatido esta noite numa sessão
extraordinária da Assembleia Municipal do Porto, por iniciativa do Bloco de
Esquerda, secundada pelo movimento independente liderado por Rui Moreira. Em
destaque deverá estar o facto, revelado pelo PÚBLICO há uma semana, de os
serviços camarários terem descoberto no Verão passado que o terreno comprado em
2001 pela Selminho, a um casal que acabara de o registar, por usucapião, está
em grande parte igualmente registado a favor do município desde 1950.
Entretanto, o candidato do PSD à liderança do município nas eleições de
Outubro, Álvaro Almeida, afirmou neste domingo que a actuação de Rui Moreira
neste caso revela “um conflito de interesses chocante” e propôs que a câmara
“exija imediatamente” o terreno que também está em seu nome.
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