O Correio da Manhã ou o jornalismo
como álibi do crime
É a própria direção do CM, ao
defender a publicação do vídeo como "jornalismo do melhor, sem medo,
livre", a autoacusar-se de total desrespeito pelas regras, alardeando o
seu sentimento de impunidade. Alegar que esta mesma direção é responsável por
"um historial importantíssimo" é dizer "rouba mas faz". Por
outras palavras, o CM pode ser corrupto e corromper tudo, desde que faça o
trabalhinho.
22 DE MAIO DE 2017
Fernanda Câncio
Não: publicar um vídeo que circulava nas redes sociais, de
um rapaz a meter a mão nos jeans de uma rapariga enquanto à volta, num
autocarro, outros rapazes e raparigas incitam e aplaudem, não é jornalismo. Um
vídeo não é uma notícia. Notícia - porque tem interesse público - é informar
sobre existência do vídeo, perguntar às autoridades se estão a investigar,
procurar saber que autocarro era aquele, se o motorista sabia, tentar falar com
alguns dos presentes ou até com os protagonistas, enquadrar o ocorrido em
termos legais - pode ser crime? Se sim, qual? No caso de a jovem ser menor,
quais as implicações? Filmar aquilo é lícito? E difundir?
Tentar responder a estas perguntas básicas seria jornalismo.
Mas acarretaria trabalho e tempo. E desde logo tornaria evidente que filmar sem
autorização dos filmados e difundir sem ela é crime (artigo 199.º do Código
Penal, eventualmente associado ao 192.º, devassa da vida privada), agravado
(197.º) se ocorrer por meio de comunicação social, visar o enriquecimento do
agente ou causar prejuízo a outra pessoa. Mais: que no caso de a jovem ser
menor o filme entraria na categoria pornografia de menores (176.º). Ou seja:
fazer jornalismo implicaria tornar claro que ao publicar o vídeo o CM estaria a
incorrer em vários crimes. Informar não seria compatível com publicar. Portanto
publicou-se. E publicou-se aquilo que o CM, apesar de nada ter feito para se
inteirar sobre o sucedido, apresentou como sendo o filme de um crime:
"Rapariga filmada e abusada no Porto e ninguém fez nada."
Publicitou-se o vídeo de um crime sexual, revitimizando sem piedade aquela que
se apresenta como vítima, obrigada a rever o ocorrido e a confrontar-se com os
comentários do público. Difícil encontrar adjetivos para tanta crueldade, para
a perversidade de, ao mesmo tempo, escrever "e ninguém fez nada".
Acresce que, ao contrário do que a direção do CM pretende na
resposta às críticas, quando o vídeo foi colocado no site todos os rostos
estavam nítidos à exceção do da rapariga em causa - e mesmo essa seria
identificada por quem a conhecesse. Só mais tarde as imagens foram tratadas,
desfocando por completo os intervenientes.
Óbvio que, para além de incorrer nos vários crimes
enunciados, o CM violou praticamente todas as regras jornalísticas. Inundada de
queixas, a Entidade Reguladora para a Comunicação Social instaurou um
procedimento; o Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas censurou o
CM e apelou a que retire o vídeo do site (ainda lá está, contabilizando 15 889
partilhas - um êxito). Mas a Comissão da Carteira de Jornalistas, que tem o
poder de zelar pelo cumprimento da lei que rege a profissão e cujo presidente
foi tão lesto a gritar crime quando Ronaldo mandou o micro da CMTV ao lago,
está como morta. E da PGR nem um pio. O facto de ninguém lhes ter perguntado
nada ajuda: não houve um único artigo noticioso nos media portugueses - um
único - sobre o assunto. Deve ser porque não tem importância nenhuma, não é?
Mesmo na opinião publicada impera o silêncio. Cinco dias
depois (escrevo no domingo) contei apenas duas de jornalistas no ativo. Destas,
a mais assertiva é a de Diogo Queiroz de Andrade, no Público: "Aquilo não
é jornalismo", diz, afirmando que o desrespeito pelas regras evidenciado
pelo CM na publicação do vídeo é, não uma exceção, mas o método do projeto. No
mesmo sentido vão os colunistas Daniel Oliveira, no Expresso, e Pedro Marques
Lopes, no DN: verberam a conivência silenciosa que tem, dos jornalistas à
justiça e políticos (incluindo os que escrevem e colaboram com CM e CMTV),
passando pela regulação, permitido, credibilizado e abençoado os desmandos do
CM. E, notável, no próprio CM, Ricardo Valadas, presidente da Associação
Sindical dos Funcionários de Investigação Criminal da PJ, repudia a publicação
do vídeo, caracterizando-a como "violência gratuita", "exploração
comercial" e "venda de conteúdo a todo e qualquer preço".
É tudo. E é normal. Porque quem ataca o CM sabe o que o
espera. Veja-se a tese de João Miguel Tavares: sim, o CM "errou" ao
publicar o vídeo mas é "abusivo" caracterizar o projeto a partir
deste e outros "erros". Porquê? Porque, diz JMT, tem "um
historial importantíssimo no escrutínio do poder político e na denúncia da
corrupção". Sucede que é a própria direção do CM, ao defender a publicação
do vídeo como "jornalismo do melhor, sem medo, livre", a caracterizar
o seu entendimento e prática e autoacusar-se de total desrespeito pelas regras,
alardeando o seu sentimento de impunidade. Alegar que esta mesma direção é
responsável por "um historial importantíssimo" é dizer "rouba
mas faz". Ou seja, não interessam os meios, quantos atropelos comete,
crimes, atentados éticos, vidas destruídas. Por outras palavras, o CM pode ser
corrupto e corromper tudo, desde que faça o trabalhinho. Pode até financiar-se
à custa de vídeos de miúdas a ser abusadas, e ai de quem o atacar por isso: JMT
e o CM cá estão para nos acusar de conluio com corruptos e "ódio".
Perguntou Bruno Nogueira, no Mata-Bicho da RDP: se não se
reage a sério, com consequências, a isto, vai-se reagir a quê? Vamos esperar
que o CM mate e viole para pôr os vídeos no site?" Boa pergunta. E a
resposta é: sim, vamos.
Nota: Tenho, a correr nos tribunais, processos contra a
Cofina, empresa proprietária do Correio da Manhã e da CMTV.
Fernanda
Câncio está zangada
Sócrates
é a prova viva de que é tão estúpido defender de forma acéfala o
Correio da Manhã como criticá-lo cegamente. Fernanda Câncio, mais
do que ninguém, deveria saber isso.
João Miguel Tavares
23 de Maio de 2017,
6:29
Fernanda Câncio
está zangada com o Correio da Manhã e, de caminho, zangou-se
comigo. Num texto ontem publicado no DN – “O Correio da Manhã ou
o jornalismo como álibi do crime” – ela atribui-me a seguinte
opinião: “O CM pode ser corrupto e corromper tudo, desde que faça
o trabalhinho. Pode até financiar-se à custa de vídeos de miúdas
a ser abusadas, e ai de quem o atacar por isso: JMT e o CM cá estão
para nos acusar de conluio com corruptos e ‘ódio’.”
Aquilo que eu
escrevi a este propósito, e que a Fernanda se entreteve a
caricaturar no seu artigo, está disponível e pode ser facilmente
verificado. Não vou repetir-me. É certo que me espanta que uma
jornalista tão boa como ela seja tão pouco rigorosa como o Correio
da Manhã, afirmando que a rapariga do vídeo foi “abusada”
quando as imagens disponíveis estão longe de permitir tal
conclusão. Mas isso apenas demonstra, como j�� referi inúmeras
vezes, que a presunção de inocência só é um princípio
absolutamente sagrado quando dá jeito a quem o invoca.
O que eu disse, e
repito, é que o caso só adquiriu esta dimensão – chamemos-lhe um
ataque sensacionalista ao sensacionalismo – por ter ocorrido no
Correio da Manhã, jornal tão odiado por uma certa elite como odiado
era o Jornal de Sexta de Manuela Moura Guedes. A certas pessoas mais
entusiasmadas apenas faltou exigir que todos os colaboradores do
diário da Cofina passassem a usar na rua uma estrela vermelha. Claro
que a Fernanda tem queixas justíssimas em relação ao jornal, por
causa de José Sócrates e da Operação Marquês. Para além de
todas as asneiras, no início do ano passado o Correio da Manhã
tomou uma decisão inconcebível – mil vezes mais grave do que a
exibição do vídeo –, quando resolveu passar de assistente a
acusador e propor que Fernanda Câncio fosse constituída arguida no
processo. Foi uma vingança reles e sem desculpa.
Mas há outra razão
para a zanga entre ela e o Correio da Manhã, muito anterior à
prisão de Sócrates. A sua indignação recua pelo menos até 2009,
quando apresentou queixa na Comissão da Carteira por ter sido
tratada em certas notícias como “namorada do primeiro-ministro”.
A Comissão não lhe deu razão, porque reconheceu a existência de
um potencial conflito de interesses nas suas tomadas de posição
públicas. A Fernanda, contudo, nunca aceitou tal decisão – em
primeiro lugar, defendia ela, estava o seu direito à privacidade.
Afinal, dizia-se ontem como hoje, qualquer pessoa de bons modos deve
considerar abjecto um jornal andar a meter o nariz na intimidade do
primeiro-ministro.
Azar dos Távoras:
foi através dos gastos injustificáveis na vida privada de Sócrates
que o Ministério Público chegou aos alegados crimes da sua vida
pública. Ora, da mesma forma que Fernanda Câncio merece reparação
pelos erros que o Correio da Manhã tem cometido, eu ainda estou à
espera que ela admita este seu erro fundamental, que tanto a viria a
afectar no futuro – a vida privada de José Sócrates, e a dela por
acréscimo, eram efectivamente notícia. E aquelas coisas odiosas que
só o Correio da Manhã costuma revelar acerca da vida privada dos
poderosos – férias opulentas, jantares opíparos, compras luxuosas
– são, afinal, um dos pilares fundamentais da Operação Marquês.
O público e o privado não se separam com a ponta de um bisturi.
Sócrates é a prova viva de que é tão estúpido defender de forma
acéfala o Correio da Manhã como criticá-lo cegamente. Fernanda
Câncio, mais do que ninguém, deveria saber isso.
Sem comentários:
Enviar um comentário