sábado, 10 de setembro de 2016

Países do Sul reforçam cooperação perante desconfiança da Alemanha / A primeira cimeira que pode ser a última. Ou não / Dos suaves ventos do Sul às ameaças reais

Dos suaves ventos do Sul às ameaças reais
DIRECÇÃO EDITORIAL 10/09/2016 – PÚBLICO

O entendimento balbuciado a Sul, em Atenas, surgiu num dia em que o mundo enfrentou novas ameaças

Tendo por anfitrião Alexis Tsipras, a cimeira de sete governantes de países do Sul em Atenas não foi conclusiva mas exploratória. Avançou com algumas reivindicações, é certo (como mais investimento para combater a estagnação da economia) e terminou com promessas de continuidade: os países que ali se reuniram (Grécia, França, Itália, Portugal, Espanha, Chipre e Malta) voltarão a encontrar-se em Lisboa, numa data a definir. Mas foi o simples facto de existir que deu importância a tal cimeira. O Sul pode reunir esforços, como aliás o fazem o Norte europeu, ou os países mais fortes da União, para debater interesses e concertar estratégias. França, ao jogar neste tabuleiro, tenta uma habilidade equilibrista no tumulto de uma União sem grande norte (mas com Norte e Sul cada vez mais afastados), antecipando dificuldades futuras. Hollande falou, por isso, numa “mensagem de unidade, de coesão”, saída de Atenas rumo a Bruxelas. Mas provavelmente nem mesmo ele acreditará que essa unidade ou coesão são dados adquiridos, pelo contrário. Renzi apontou o dedo à austeridade, dizendo que a Europa não pode mais continuar a ser governada por ela; e António Costa disse que os países com excedentes têm “o dever de investir mais.” Mas a antecipar o que se ouvirá por certo na reunião informal de líderes europeus em Bratislava, na próxima semana (onde estarão todos menos o Reino Unido, já num lento processo de saída), a reacção de Schäuble foi trocista (“Quando líderes de partidos socialistas se encontram, não sai, na maioria das vezes, nada de muito inteligente”) e a de Jeroen Dijsselbloem pouco polida e nada educada, ao dizer, referindo-se aos gregos, que “o Verão acabou, precisamos de progresso e é altura de arrumar o material de campismo.” Em suma: gregos, paguem o que devem; portugueses e espanhóis, verão congelados os vossos fundos europeus.

Numa perspectiva muito optimista, estas concertações de interesses podem contribuir para o reforço da União (clarificando divergências e permitindo acordos mais firmes) ou, pelo contrário, suscitar um esboroamento maior daquilo que se pretende unir. Não tardaremos a saber, até porque estes grupos (Sul, Norte e os “três grandes”, onde a Itália substituiu o Reino Unido ao lado da Alemanha e da França) tenderão a digladiar-se nos problemas mais sensíveis, como o dos refugiados ou o futuro da própria União.

Enquanto isto se discutia, o déspota Kim Jong-un fazia o seu quinto e mais potente ensaio nuclear na Coreia do Norte, pondo o mundo de novo em alerta; e em Paris, por investigação da polícia local, eram presas três mulheres alegadamente ligadas a um comando bombista que estaria a preparar um atentado na gare de Lyon – um carro com botijas de gás denunciou-as. Foram descritas como “jovens radicalizadas, fanatizadas”, com ligações à Síria e um ímpeto destruidor que foi, felizmente, travado. Perante isto, os grupismos europeus chegam a parecer irrisórios. Mas também eles, tal como a vaga dos terrorismos, nascem de uma instabilidade geral que tarda a encontrar regeneração.

Países do Sul reforçam cooperação perante desconfiança da Alemanha
MARIA JOÃO GUIMARÃES 09/09/2016 – 20:19

Quando líderes de partidos socialistas se encontram não sai, na maioria das vezes, nada de muito inteligente”, disse Schäuble.

É preciso mais investimento para combater a estagnação da economia, repetiram os líderes dos países do Sul da União Europeia no final de uma reunião de sete governantes esta sexta-feira em Atenas. A cimeira terminou com a promessa de continuar a “iniciativa de diálogo e coesão”, como lhe chamou o anfitrião, o primeiro-ministro grego Alexis Tsipras, numa data a definir em Lisboa.

O chefe de Governo de Itália, Matteo Renzi, declarou que “a Europa não pode ser mais governada pela austeridade, detalhes e considerações fiscais”, enquanto o português António Costa repetiu que o reforço do investimento é necessário acrescentando que há diferenças entre os países. Aqueles que têm largos excedentes têm “o dever de investir mais”, cita a agência portuguesa Lusa.

O Presidente francês, François Hollande, afirmou ter esperança de que “quando os populistas e extremistas esperam que a Europa se disperse, possamos enviar uma mensagem de unidade, de coesão e possamos trazer a contribuição do Sul à União Europeia”. Além de Tsipras, Renzi, Hollande e Costa estiveram presentes Nicos Anastasiades, de Chipre, Joseph Muscat, de Malta, enquanto Espanha foi representada pelo secretário de Estado dos Assuntos Europeus, Fernando Eguidazu.

Mesmo que tenham sido repetidas declarações de que o que se quer não é uma divisão – esta reunião serve para mais união na Europa e não mais divisão, repetiu Tsipras –, e que logo no segundo parágrafo da declaração final os governantes sublinhem o seu forte empenho na Europa, as reacções vindas da Alemanha foram de desconfiança e desagrado. O ministro das Finanças, Wolfgang Schäuble, comentou mesmo a propósito da reunião que “quando líderes de partidos socialistas se encontram não sai, na maioria das vezes, nada de muito inteligente”.

Este encontro precede uma reunião informal de líderes europeus em Bratislava (Eslováquia) na próxima semana, com a participação de todos excepto do Reino Unido, já que o objectivo é a antecipação das consequências da saída do país após o referendo.

Schäuble não foi a única voz alemã a fazer-se ouvir. Já antes, o eurodeputado Markus Ferber, da CSU (União Social-Cristã, o partido-gémeo da CDU de Merkel na Baviera) partilhou com o jornal conservador Die Welt a sua preocupação de que os países do Sul pudessem formar uma “coligação de redistribuidores” que ameaçasse “a estabilidade financeira da Europa”: “Depois da saída da Grã-Bretanha, o ‘Clube Med’ [o grupo dos países do Sul] terá uma minoria suficiente para bloqueio que poderá impedir em Bruxelas [a aprovação de] todo o tipo de leis de que não goste”, disse.

Curiosamente, observadores da cimeira comentavam na direcção oposta, questionando-se sobre quão unificada seria esta posição do Sul em Bratislava e que continuidade poderia ter a plataforma. Afinal, a tentativa anterior de formação de uma frente anti-austeridade do Governo grego falhou quando o país tentou, no ano passado, evitar um penalizador memorando (que foi rejeitado em referendo e depois aprovado pelo Executivo), e não encontrou então aliados entre outros países do Sul.

Outro responsável alemão, Manfred Weber, do Grupo Popular Europeu (democratas-cristãos) no Parlamento Europeu, reagiu acusando Tsipras de uma “tentativa de divisão” na Europa e de uma manobra de diversão quando Atenas está sob pressão para cumprir objectivos do terceiro acordo com os credores. “A pressão está de volta”, disse em Bruxelas o chefe do Eurogrupo, Jeroen Dijsselbloem, em relação à Grécia. “O Verão acabou. Precisamos de progresso. É altura de arrumar o material de campismo”, disse o holandês.

Em relação ao investimento, os líderes propõem na declaração final medidas concretas como a duplicação da capacidade financeira do Fundo Europeu para Investimento Estratégico (“Plano Juncker”) e destacam em particular a necessidade de “fortalecer programas para os jovens”.

Outra questão importante foi a das migrações. “Estamos na linha da frente de crises paralelas que testaram a Europa”, disse Tsipras no início da discussão, referindo-se ao facto de os países que “têm sido desproporcionalmente afectados pela crise económica nos últimos anos” estejam também “na linha da frente dos fluxos migratórios”.


Tsipras apresentou aliás este grupo como uma espécie de contra-peso a outro grupo informal dentro da UE, o de Visegrado, na questão da imigração – o grupo que inclui a Hungria, Polónia, República Checa e Eslováquia formou-se na sequência do apelo da Alemanha aos países para redistribuir os refugiados que o Verão passado chegaram à Europa e num encontro esta semana também de preparação para Bratislava disseram querer uma “revolução cultural na Europa”.  


A primeira cimeira que pode ser a última. Ou não
TERESA DE SOUSA 09/09/2016 – 07:20

O que leva os líderes dos países do Sul a reunirem-se em Atenas para debater o futuro da Europa? Talvez o simples facto de ninguém saber que Europa emergirá da crise. A grande novidade é a França. Rajoy acabou por recuar.

Pode ser a primeira mas também a última. Há meia dúzia de meses ainda parecia impossível. É uma novidade em relação às estratégias europeias da maioria dos países que estarão em Atenas. A iniciativa partiu de Alexis Tsipras, que se ofereceu para anfitrião, depois de ter participado como observador nas reuniões dos líderes socialistas europeus no Palácio do Eliseu para articularem ideias sobre o futuro da Europa. O primeiro-ministro grego quer mostrar que a Grécia, ainda sob resgate, pode contar com amigos importantes, depois de ter sido tratada como “pestífera”. O momento é oportuno. A troika inicia uma nova vistoria às contas e às reformas de Atenas e já adiantou que não está satisfeita. Quanto aos outros protagonistas do encontro, a sua lógica só é perceptível à luz desta longa crise existencial que pôs em causa muitas das certezas anteriores sobre a integração europeia.

Entretanto, é a própria Europa que está, também ela, a mudar. A Grécia já saiu dos cabeçalhos, dando lugar à crise dos refugiados, ao "Brexit", ao terrorismo e, também, à relativa estagnação da economia europeia, que ainda não se libertou do risco de deflação, obrigando o BCE a manter as máquinas a funcionar. As coisas mudaram também entre os países do Sul e a sua forma de olharem uns para os outros. Basta recuar alguns anos para verificar que a solidariedade entre eles era pura e simplesmente uma miragem. Madrid tratou de cancelar as habituais cimeiras luso-espanholas, porque não queria confundir-se na fotografia com um país “resgatado” (incluindo no tempo do socialista Rodriguez Zapatero). Portugal passou os anos do resgate a distanciar-se da Grécia publicamente (“Portugal não é a Grécia”) e a comportar-se nos Conselhos Europeus como um dos mais duros críticos dos incumprimentos de Atenas. A Itália, numa sucessão de governos politicamente instáveis, teve de esperar pela entrada em cena de Matteo Renzi para iniciar um caminho reformista e, ao mesmo tempo, tentado reocupar o seu velho lugar de “grande país fundador”. A própria Grécia já não corre o risco de ver o seu Governo “despachado” por uma ordem de Merkel, como aconteceu com o governo de George Papandreau em 2012. A Irlanda e Portugal tiveram “saídas limpas” em 2014, mesmo que o Eurogrupo mantenha o chicote na mão para obviar a qualquer desvio.

Mas a clivagem Norte-Sul que se acentuou durante a crise também deixou marcas profundas, feitas de preconceitos e de desconfianças, que hoje tornam mais fácil um entendimento como o de Atenas.

Merkel à procura de um consenso
Nos últimos dias, a chanceler tem-se multiplicado em encontros com os seus parceiros europeus para avaliar o que pode ou não pode ser feito para evitar a desagregação europeia. A própria Merkel também mudou muito. Foi obrigada a fazer um curso acelerado sobre os custos da liderança nos últimos anos. A crise ucraniana alterou a percepção de Berlim sobre a segurança europeia. Em 2012, a chanceler dizia que não ia pagar as “aventuras militares” da França (no Mali). Participa hoje militarmente na coligação que combate o Estados Islâmico. A crise dos refugiados, que continua à espera de soluções comuns mais eficazes, mudou o centro de gravidade das suas preocupações. O crescimento das forças nacionalistas e populistas (agora também na Alemanha, transformando em realidade o seu maior pesadelo) começa a ser um poderoso factor de desagregação que as lideranças europeias não podem ignorar. Finalmente, o "Brexit" fez soar todos os alarmes.

A chanceler ouviu quase toda a gente antes da cimeira de Bratislava, no dia 16, sobre o futuro da Europa. Encontrou-se com Renzi e Hollande (o novo grupo dos “três grandes” que irrita particularmente Madrid). Reuniu-se com os países de Visegrado em Varsóvia, tomando consciência da perigosa deriva nacionalista e antieuropeia em que se envolveram. Budapeste e Varsóvia, com dois governos nacionalistas, propõem-se "revolucionar" a Europa. Recebeu os Nórdicos em Berlim. Janta com António Costa (e mais os líderes da Lituânia, Letónia, Malta e Chipre) no próximo domingo (uma companhia na qual é possível, talvez, ler algum desagrado alemão com o Governo português). É neste quadro volátil que podemos olhar para a cimeira de Atenas. O que tem de novo e o que representa para os seus protagonistas.

Inflexão francesa?
A França é, certamente, a grande novidade. François Hollande entrou em modo eleitoral que passa por um distanciamento em relação a Berlim, afastando-se da regra de ouro da política europeia da França: manter a liderança franco-alemã (ou a sua ilusão) num quadro em que o desequilíbrio de poder é cada vez maior. Sem criticar abertamente a chanceler, Paris multiplicou-se em sinais de que o “unilateralismo” de Merkel em relação aos refugiados (“Vamos conseguir”) ignorou a opinião dos vizinhos. Apadrinhou algumas iniciativas comuns com o SPD (parceiro júnior da grande coligação alemã), destinadas a minar a liderança da chanceler (as eleições alemãs também se aproximam). A última foi a simultaneidade do anúncio da “morte” do TTIP entre o vice-chanceler Sigmar Gabriel e o próprio Presidente francês. A novidade está em que a França foi sempre o país charneira da construção europeia, a ponte entre o Norte e o Sul (é, simultaneamente, Norte e Sul) e o seu pivô político. Esta viragem para Sul representa uma mudança que pode perdurar ou não.

Escreve o site do Stratfor, num texto sobre “os limites de uma aliança da Europa do Sul”, que o "Brexit" levou os Estados-membros "a procurar soluções regionais para problemas continentais, uma abordagem que tornará ainda mais difícil um consenso sobre o futuro”. O site debruça-se sobretudo sobre ocaso francês. Por causa do seu duplo estatuto de “país Mediterrânico e do Norte”, a França “corre o risco de cair na armadilha de um conflito Norte-Sul, aumentando a tensão entre Paris e Berlim”. Lembra que a economia às vezes não encaixa na geopolítica. Paris pode defender uma estratégia mais expansionista para a zona euro, juntando-se ao Sul, “mas não pode abdicar do seu papel central na geopolítica europeia”. E avisa ainda: “Usar os países do Sul para torcer o braço a Berlim pode alimentar as facções alemãs mais isolacionistas, que defendem uma zona euro apenas em volta da Alemanha ou o “cenário dos dois euros” (apenas tratado nas academias): um forte para a Alemanha e o Norte; outro fraco para os países do Sul, que seria o toque de finados da integração europeia. Neste quadro de mudança, o encontro de Atenas pode significar alguma coisa mas também absolutamente nada.

Rajoy e as vantagens do não governo
A segunda novidade chegou a ser a participação de Mariano Rajoy, só possível num quadro eleitoral a todos os títulos excepcional. Rajoy fez saber à última hora que vai fazer-se representar por um secretário de Estado, demarcando-se da reunião. A Espanha não tem governo há quase um ano e arrisca-se a realizar terceiras eleições em Dezembro. O líder do PP safou-se das sanções (com Portugal) e espera que Berlim tenha paciência quanto ao cumprimento do défice. Hesitou entre ir e não ir porque está em modo eleitoral e porque não quer deixar a França e a Itália a liderarem um bloco de que faz parte. Uma pequena notícia no El País de segunda-feira, com um título sugestivo – “Porque se cresce mais sem governo” –, assinada pelo colunista Joaquim Estefania, lembrava que, no mesmo dia em que falhava a segunda investidura de Rajoy nas Cortes, foram divulgados os números da evolução do défice nos primeiros sete meses, revelando um aumento de 20% em relação ao mesmo período do ano passado. Estefania admite que pode estar aqui parte da explicação para o crescimento da economia espanhola. “Espanha é o país do euro que mais cresce e, a seguir à Grécia, o que tem o défice maior”. Com o impasse político, o Governo vai esperando mais compreensão de Bruxelas e de Berlim.

Renzi dispara em todas as direcções
Matteo Renzi também não tem a vida facilitada, pelo menos enquanto não conseguir tirar a economia da estagnação prolongada em que tem vivido. Joga o seu futuro num referendo em Outubro sobre a reforma constitucional que aprovou no Parlamento e que visa acabar com a lentidão de um sistema decisório incompatível com qualquer reforma. As suas iniciativas europeias multiplicam-se sem se vislumbrar um rumo específico, a não ser encontrar espaço para flexibilizar as metas macroeconómicas e dinamizar o consumo. Preserva a relação com Berlim, mesmo criticando duramente as políticas de austeridade. Pode apresentar o seu comportamento exemplar em matéria de refugiados. Já disparou noutros sentidos como, por exemplo, num regresso aos “fundadores”, que é hoje praticamente impossível por causa do euro. Joga com o facto de a alternativa ao seu Governo estar nas mãos do Movimento Cinco Estrelas, uma amálgama de populismo e antieuropeísmo, que se soma ao nacionalismo da Liga Norte.

Costa rompe com a tradição
Finalmente, que razões levaram António Costa a alterar a tradicional orientação europeia de Lisboa de não privilegiar grupos regionais, mas antes manter uma relação forte com o centro político? Foi esta, aliás, a razão pela qual o euro foi visto como um passo fundamental para combater a periferia geográfica e económica do país. Uma das razões é comum aos seus parceiros. Tudo mudou na Europa, outros grupos têm-se constituído para impor a “austeridade” às economias do Sul, a fractura económica e social entre o Norte e o Sul é, do seu ponto de vista, o maior problema que a Europa enfrenta e aquele que mais a corrói. Sem hostilizar Berlim (apoia a visão de Merkel sobre os refugiados), reaproximou-se de Paris. Acresce que o Sul que vai a Atenas é constituído por países genuinamente pró-europeus, que querem continuar a sê-lo mas que precisam de argumentos nesse sentido, que não sejam apenas as contas públicas.

Com a baixa de Rajoy e a desordem com que a Europa enfrenta a sua prova de vida, a reunião de Atenas é mais uma para evitar a desagregação europeia. Espera-se que não tenha o efeito contrário.

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