É
crucial um registo europeu de cidadãos indocumentados
Acácio Pereira
03/09/2016 –
PÚBLICO
O
conceito de liberdade de circulação não pode em circunstância
alguma ser confundido com a mera movimentação desregulada de
cidadãos entre os estados .
O conceito de
liberdade de circulação, hoje tão enraizado na maioria dos
europeus, não pode em circunstância alguma ser confundido com a
mera movimentação desregulada de cidadãos entre os estados
soberanos que compõem um espaço comum, no caso o espaço Schengen.
A garantia da
segurança comum impõe que um número significativo de regras
básicas sejam criadas pelo legislador, implementadas pelas
autoridades e cumpridas pelos cidadãos. Daqui resultaria que todos
os cidadãos, nacionais ou estrangeiros, teriam de atestar de forma
clara e inequívoca a sua identidade. Coisa lógica, mas pouco certa:
um dos principais crimes verificados nas fronteiras é precisamente o
da falsificação e contrafacção de documentos de viagem,
imediatamente seguido pelo crime de uso de identificação alheia, o
que obriga os serviços de imigração e fronteiras – no caso
português, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras – SEF – a
investirem fortemente no combate a estes crimes (com considerável
sucesso, diga-se em abono da verdade).
Quando surgem
dúvidas sobre a verdadeira identidade e nacionalidade do jovem que
atacou num comboio na Alemanha, a questão não é saber se a notícia
é verdadeira, mas saber quantos mais cidadãos cuja identidade
levantam dúvidas haverá por esta europa fora! Há em Portugal – e
em toda a Europa Schengen – uma realidade que não tem sido
devidamente avaliada nem tratada: os cidadãos indocumentados, os
falsamente documentados e os falsamente indocumentados. Esta
realidade, até há pouco tempo marginal, assume hoje proporções
graves com os movimentos migratórios dos últimos anos e a vaga de
refugiados que tomou a Europa como destino.
Na realidade, hoje
existem nos centros de acolhimento de imigrantes e refugiados
milhares de pessoas sobre as quais não existe qualquer capacidade de
identificar correctamente e proceder a uma triagem adequada. Sendo
certo que uma larga maioria não constitui uma ameaça, há os que
utilizam este meio como forma de se furtar à vigilância dos
serviços de segurança e infiltrarem-se nas redes terroristas e
criminosas que operam na Europa.
As dificuldades de
controlo são acrescidas pelo facto de muitos dos países de origem
se encontrarem em situações de duvidosa estabilidade política ou
em estado de conflito, em que os serviços públicos são muito
permeáveis à corrupção ou atuam em conivência com grupos
marginais. Acresce que há representações consulares que atuam à
margem da lei recusando documentar os próprios cidadãos nacionais.
Há ainda, para
complicar, regulamentos nacionais que pioram as situações. Em
Portugal e em muitos países comunitários, as autoridades judiciais,
quando confrontadas com cidadãos indocumentados, não têm muitas
alternativas legais quando o que está em causa supostamente é
apenas a situação de irregularidade da permanência em território
nacional. Das duas, uma: ou as polícias (quase sempre o SEF)
conseguem documentar com fiabilidade os cidadãos, ou, então, estes
são libertados sem qualquer documentação (e já agora, sem
residência conhecida ou qualquer outra referência). Esta é uma
realidade permanente que a maioria dos inspectores do SEF enfrenta
quando apresentam diariamente aos tribunais cidadãos indocumentados,
dos quais dificilmente voltam a ter notícia, a não ser pelas piores
razões.
Há ainda o perigo
de o mesmo individuo poder repetir o feito, assumindo tantas
identidades diferentes, quantos os estados por onde for passando.
Naturalmente que os
direitos humanos devem ser intransigentemente garantidos a todos,
nacionais ou estrangeiros, documentados ou indocumentados, mas urge
equilibrar esse princípio humanista com uma evolução nos
mecanismos de segurança. Não se trata de criar um “Big Brother”
policial, mas de permitir que a sociedade europeia seja mais segura.
Da mesma forma que
a directiva “Passenger Name Record (PNR) do Parlamento Europeu
obriga as companhias aéreas ao registo e fornecimento de dados dos
passageiros que viajam de avião, com o objectivo de identificar
potenciais terroristas e também de facilitar investigações futuras
a suspeitos de actos terroristas (numa base de dados partilhada que
respeita as regras internacionais da protecção de dados pessoais),
importa que seja criado um sistema Europeu de registo de cidadãos
indocumentados partilhado pelas autoridades nacionais. Este deve
garantir que um cidadão registado, por exemplo, em Lesbos ou em
Lampedusa, possa ser identificado em Portugal ou em França. A
evolução tecnológica permite hoje o recurso a dados biométricos
não intrusivos, cuja recolha permite estabelecer, se não uma
identificação originária, pelo menos uma identificação
permanente e válida para efeitos de análise e acompanhamento de um
processo de fixação de residência ou de protecção internacional.
Não deixa de ser
curioso que, num mundo cada vez mais globalizado – em que as
questões económicas e financeiras são alvo de uma particular
acuidade legal e onde, do ponto de vista da tributação fiscal, os
cidadãos são cada vez mais escrutinados e registados em bases de
dados complexas –, não haja coragem política para enfrentar o
“politicamente correto” e garantir às polícias as ferramentas
necessárias para exercer de forma adequada a sua missão: manter a
segurança de todos.
Presidente do
sindicato dos inspectores do SEF – Sindicato da Carreira de
Investigação e Fiscalização do Serviço de Estrangeiros e
Fronteiras (SCIF-SEF)
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