Contra
burkas e burkinis, pela liberdade e igualdade de género
ANDRÉ FREIRE e
LILIANA REIS 06/09/2016 – 07:30
Somos
não só frontalmente contra o uso da burka e do burkini (e símbolos
equivalentes), como achamos que pode haver fundamentos para tal
proibição.
A discussão sobre a
proibição do uso do burkini por algumas autarquias francesas levou
a um aceso debate, algo enviesado por ambas as partes. Se o argumento
securitário subjacente ao medo do terrorismo pode não se aplicar ao
burkini, pelo menos do ponto de vista objetivo (algo que pode ser
diferente do ponto de vista subjetivo…), também a liberdade da
mulher de vestir o que bem lhe aprouver não é o cerne da questão.
Para nós, é irrelevante que se trate de burka, burkini, niqab ou
chador porque o que nos move não é o temor de possíveis atentados
islâmicos, nem tão pouco a suposta castração da liberdade
(religiosa) das mulheres de se vestirem como desejarem. Com efeito, o
que pretendemos defender, assertivamente, é a liberdade e a
igualdade de género; e, por essa via, defender um dos
elementos-chave do núcleo duro das nossas sociedades liberais e
democráticas: os direitos humanos fundamentais, nomeadamente o
direito à igualdade (e à liberdade) de género. E, por isso, somos
não só frontalmente contra o uso da burka e do burkini (e símbolos
equivalentes), em espaços públicos das nossas sociedades
democráticas, como achamos que pode haver fundamentos
histórico-políticos e, acessoriamente, jurídico-constitucionais
para tal proibição, mesma que fira a liberdade religiosa.
A nossa perspetiva
contra o uso da burka e do burkini assenta em três eixos
fundamentais. Primeiro, na necessidade de defendermos os direitos
humanos fundamentais, nomeadamente o direito à igualdade de género,
como núcleo duro das nossas sociedades liberais e democráticas
desde o alvor do liberalismo político (Revoluções Americana, 1776,
e Francesa, 1789), mais tarde atualizado pelo democratismo, pelo
republicanismo e pela social democracia. O mínimo ético
irredutível estabelecido pela Declaração Universal dos Direitos do
Homem postula no seu artigo 1º que “Todos os seres humanos nascem
livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de
consciência”, confirmando a ideia de que os direitos humanos
decorrem da dignidade humana, como um valor ínsito ao homem,
exatamente por esta sua condição de racionalidade. Os direitos
humanos nas sociedades liberais e democráticas são direitos
inalienáveis dos indivíduos, ou seja, tem uma raiz individualista e
não coletivista (como nas visões marxistas de tipo soviético) ou
comunitarista (como nas visões multiculturalistas). Portanto, sendo
nas nossas sociedades liberais e democráticas os direitos humanos
uma proteção dos indivíduos contra a arbitrariedade do poder, não
podem os mesmos ser usurpados nem pelo governo do dia, nem pela
pertença a determinadas comunidades: às mulheres muçulmanas não
pode ser subtraído o direito à liberdade e à igualdade de género
só porque pertencerem a uma comunidade étnico-religiosa que não se
revê nesse axioma.
Em segundo lugar, do
nosso ponto de vista o que está aqui em causa não é a suposta
liberdade da mulher de vestir o que bem lhe aprouver. Achamos aliás
que seriam patéticas, se não fossem trágicas, as comparações
(que por aí pululam, nas redes sociais, na imprensa, etc.)
comparando a proibição do burkini com uma eventual proibição da
utilização de leggies, fatos de mergulhador, de motard,
indumentárias de freira, etc. Por um lado, porque não estamos a
falar de membros do clero muçulmano, mas sim de cidadãs em geral.
Por outro lado, porque o burkini é um símbolo de menorização e
subalternização das mulheres que fere ostensivamente os nossos
princípios da liberdade e igualdade de género. Alguém já viu
algum homem muçulmano com esta indumentária? Sobre este assunto
vale a pena citar as palavras de uma voz dissonante na comunidade
muçulmana, Kamel Daoud, que escreveu em 14/2/2016 um
interessantíssimo artigo para o New York Times sobre “A miséria
sexual no mundo árabe”: “O sexo é um completo tabu em países
como a Argélia, a Tunísia, a Síria ou o Iémen, devido a um
ambiente conservador associado a uma cultura patriarcal (…). Em
alguns países é-lhes (às mulheres, leia-se) permitido o acesso ao
espaço público apenas se renunciarem aos seus corpos pois deixá-las
ir descobertas seria revelar o desejo que o islamita, o conservador e
o jovem fanatizado querem negar. As mulheres são vistas como uma
fonte de destabilização”. Também a organização de mulheres
muçulmanas "Women Without Veils” publicou uma declaração,
no Dia Internacional da Mulher, intitulada “O véu negador da
liberdade e da igualdade" na qual declarava que "Nós nos
recusamos a usar o véu, pois representa uma violência simbólica
visível num espaço público... os islamitas estão formalizando a
desigualdade entre os sexos no contexto familiar e social em
detrimento dos valores fundamentais da República”. Por isso as
comparações citadas são perversamente míopes porque enformadas
por uma visão assente numa (suposta) liberdade ahistórica e
apolítica das mulheres muçulmanas.
Claro que as
comunidades muçulmanas não são homogéneas e mesmo do ponto de
vista do grau de conservadorismo e patriarcalismo há uma
significativa diversidade. Basta pensar, do lado mais liberal e
secularizado, na comunidade ismaelita, onde as mulheres andam
geralmente sem quaisquer véus. Todavia, também sabemos que o
recrudescimento do uso destes símbolos ultraconservadores e das
orientações e práticas que lhes estão associadas, nos tempos mais
recentes, está ligado à crescente influência de duas das mais
conservadoras correntes do islamismo, o wahbismo e o salafismo (ver
Yasmin Alibhai-Brown, Refusing the Veil, Biteback, 2014).
Relativamente ao
pressuposto de que há uma decisão livre e autónoma destas mulheres
no uso destes símbolos, gostaríamos de sublinhar que tal é algo
que está por demonstrar (e que será, tendo em conta os dados que
conhecemos sobre esses grupos sociais, algo residual, na melhor das
hipóteses). Com efeito, o exercício da plena liberdade pressupõe
autonomia no processo de deliberação face às escolhas individuais,
mas os últimos dados referentes à liberdade das mulheres e o
“Global Gender Gap Index 2015” revelam um recuo, nos últimos 10
anos, das liberdades das mulheres e um agravamento do hiato entre
homens e mulheres nos países muçulmanos, encontrando-se a Arábia
Saudita, Oman, Egipto, Mali, Líbano, Marrocos, Jordânia, Irão,
Chad, Síria, Paquistão e Iémen no fundo da tabela.
É verdade que pode
haver aqui um conflito entre valores fundamentais das nossas
sociedades demoliberais, nomeadamente entre o direito à liberdade
religiosa, por um lado, e os direitos à liberdade e igualdade de
género, por outro. Logo, impõe-se uma escolha que é sobretudo do
domínio da política e não tanto do foro jurídico. Do nosso ponto
de vista, do que se trata é, num contexto em que é preciso optar e
afirmar como queremos viver nas nossas sociedades democráticas e
liberais, de defender os nossos valores matriciais da liberdade e da
igualdade de género mesmo que tal implique comprimir a liberdade de
uma determinada religião que, pelo menos em determinadas leituras,
os põe claramente em causa. E estão enganados aqueles que acham não
se podem produzir determinadas normas que visam apenas certas
comunidades: basta pensar que, num contexto de plena liberdade e
pluralismo partidários, determinadas sociedades proíbem os partidos
fascistas e/ou nazis. É que acima do direito está a história e a
política, ou seja, a consolidação do direito à liberdade e
igualdade de género traduz um conjunto de lutas sociais e políticas,
nas nossas sociedades, que urge defender assertivamente, para não as
defraudarmos.
Professor de Ciência
Política do ISCTE-IUL
Professora de
Relações Internacionais da UBI
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