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OVOODOCORVO
Será
que alguém em Portugal faz ideia do pandemónio que por aqui vai com
os refugiados?
Helena Araújo
31/1/2016, OBSERVADOR
As
críticas que tenho ouvido em Portugal sobre as medidas tomadas por
alguns governos para tentarem reduzir o fluxo de refugiados para o
seu país tornam evidente o desconhecimento da realidade.
As críticas que
tenho ouvido recentemente em Portugal, sobre as medidas tomadas por
alguns governos para tentarem reduzir o fluxo de refugiados para o
seu país, tornam bastante evidente o desconhecimento de partes
importantes da realidade. Aqui deixo alguns apontamentos sobre mais
alguns lados desta questão, a partir do que observo aqui em Berlim.
Todos os dias chegam
à capital alemã centenas de refugiados. Os serviços estatais
responsáveis pelos refugiados já estavam a trabalhar no limite das
suas possibilidades antes de ter começado esta onda imparável de
pessoas em terrível estado de necessidade. Centenas de pessoas
diariamente, que é preciso registar, que é preciso controlar
cuidadosamente (depois do 13 de Novembro em Paris foi imperativo
aumentar as medidas de segurança; depois de Colónia acresceram as
preocupações de identificar potenciais delinquentes misturados com
o grupo), para as quais há que arranjar alojamento, comida, cuidados
médicos (acrescidos para quem fez milhares de quilómetros em
terríveis condições), e apoio psicológico (muitos estão
profundamente traumatizados). É preciso arranjar tradutores de
árabe.
Há um batalhão de
voluntários a ajudar imenso. Alguns envolvem-se em disputas com os
funcionários, há azedumes e críticas de parte a parte. Os media
dão uma e outra vez notícias de situações de grande desumanidade,
por falta de organização dos serviços. As queixas nos tribunais
multiplicam-se, e são sempre casos de muita urgência (geralmente
pessoas que esperam semanas e meses para se registarem, porque só
depois disso recebem ajuda do Estado), o que significa que se atrasam
ainda mais os casos de alemães à espera de uma decisão sobre
apoios da Segurança Social.
Esta semana um
voluntário inventou a morte de um refugiado de 24 anos em Berlim. As
redes sociais incendiaram-se em desabafos muito emocionais e em
críticas duríssimas aos serviços (“quantos mais terão de morrer
até eles começarem a fazer o que devem?”, “mais valia acabar
com o LaGeSo!”), até que se descobriu que era tudo mentira. Um
ministro do governo regional berlinense criticou a chefe desse grupo
de voluntários, e esta respondeu que se está nas tintas para a
opinião do ministro.
Na semana passada os
media russos divulgaram o caso de uma menina russa de 13 anos, vítima
de rapto e violação colectiva por refugiados em Berlim. Um
escândalo, acusações gravíssimas de a polícia estar a encobrir o
caso para proteger a fama dos refugiados – e afinal tinha sido tudo
invenção. Possivelmente haverá um grupo de extrema-direita por
trás deste incidente, com o intuito de aumentar o medo e o
sentimento de insegurança. E não é caso único. Multiplicam-se as
queixas de violações cometidas pelos refugiados, as redes sociais
agitam-se (acusando os media de serem mentirosos, porque ocultam
estas notícias assustadoras) e dias mais tarde a investigação
policial revela que muitos desses casos são invenção. A polícia
queixa-se: enquanto anda a investigar mentiras, perde tempo que era
muito necessário para fazer o seu trabalho.
Os refugiados
continuam a chegar, e são alojados em sítios inacreditáveis.
Muitos deles escapam aos dormitórios colectivos e são acolhidos por
famílias, o que deixa os apartamentos sobrelotados, os vizinhos e os
senhorios inseguros e desconfiados. Quando pensámos disponibilizar o
minúsculo apartamento do nosso filho, durante uma prolongada
ausência sua, ouvimos muita gente dizer: “cuidado, não se metam
nisso, ao fim de uma semana têm lá dez pessoas!”
Fala-se em cancelar
eventos importantes para dar lugar aos refugiados. Ou então leva-se
mil refugiados de um armazém para outro ainda pior, para não ter de
cancelar uma feira internacional.
Há bandos mafiosos
árabes a ganhar muito com a situação, e a envolver refugiados numa
rede da qual dificilmente se poderão libertar. Há casos de
refugiados que vendem o cartão que recebem quando chegam a Berlim,
para terem acesso a comida e aos transportes públicos, e vão pedir
um novo. Para evitar este tipo de burla, dá-se uma pulseira às
pessoas, como nos hotéis “all inclusive”. O que cria um certo
mal-estar. Pensa-se numa nova solução – cartões com um chip e a
fotografia do portador. Decisões tomadas a toda a velocidade, sem
tempo para pensar, porque o afluxo de refugiados não pára.
Continuam a chegar às centenas, diariamente. Alguns imigrantes há
muito instalados, e que ajudam a traduzir e a organizar, tentam usar
esse poder de mediador para instalar na sua área de influência uma
certa ordem islâmica. O que tem como consequência, entre outros,
haver refugiados cristãos que escondem a todo o custo a sua
religião, com medo de sofrerem represálias dos outros. Isto
passa-se no coração de Berlim.
Os media tentam dar
uma perspectiva equilibrada da realidade, e evitar ao máximo – sem
prejuízo dos seus deveres de informação – alimentar a xenofobia,
mas são acusados de serem parciais e até de mentirem. Confesso que
me incomoda que só mostrem imagens de crianças e famílias para
ilustrar notícias sobre os refugiados, quando todos sabemos que a
maior parte dos refugiados são homens jovens. Muitas pessoas
sentem-se mais que incomodadas – sentem-se amordaçadas, obrigadas
a engolir os seus medos para não ficarem mal na fotografia. Na
intimidade das famílias e dos amigos multiplicam-se os desabafos e
os boatos: os professores que se sentem incapazes de disciplinar
adolescentes que se recusam a ficar sossegados a trabalhar como os
outros, ou que não respeitam a professora por ela ser uma mulher; os
casos de abuso sexual de que nenhum jornal quer falar; o refugiado
que defecou num jardim; os espertalhões que se portam como se tudo
lhes fosse devido; etc.
Haverá com certeza
entre um milhão de refugiados algum para quem é normal defecar num
jardim, adolescentes (traumatizados?) que se portam mal na sala de
aula, espertalhões que acham que podem tudo porque “foram
convidados pela Frau Merkel”. Mas no espaço reservado das casas e
das mesas de café estes casos isolados desenham o retrato robot do
refugiado, e tudo o que os media possam fazer para o corrigir reforça
a ideia de uma imprensa manipuladora e parcial.
Entretanto, as ruas
da Berlim estão cada vez mais esburacadas, e em inúmeras escolas
não há aulas de ginástica, porque os ginásios estão a servir de
camaratas. Para dar apenas dois exemplos de problemas práticos.
Isto, em Berlim – que nem é a cidade em situação mais difícil.
Noutras cidades já
há grupos de cidadãos a fazer patrulhas nas ruas, porque sentem que
a polícia é incapaz de responder a todas as necessidades. E há
localidades onde de repente passou a haver mais refugiados que
alemães.
O Estado de Direito
está a chegar ao limite das suas capacidades, e os governos tentam
responder adequadamente para que o país continue a funcionar em
normalidade democrática. Entretanto a Áustria tenta ser apenas um
corredor, a Alemanha sente-se aliviada por cada refugiado que resolve
continuar caminho, a Dinamarca espera que eles sigam para a Suécia,
a Suécia devolve-os à Dinamarca e insiste que é preciso respeitar
Dublin.
O sentimento geral é
de que estamos perante uma nova vaga de “invasões dos bárbaros”
(em alemão diz-se Völkerwanderung, migração de povos – não tem
o sentido pejorativo e ameaçador do português). Os alemães vêem o
estado de necessidade das pessoas que aqui chegam e sentem que têm
de ajudar, mas também estão apreensivos sobre o que isto possa
significar de mudança nos hábitos e no nível de vida (nomeadamente
as mulheres terem medo de andar na rua, ou uma redução drástica
dos apoios sociais, nomeadamente os cuidados de saúde, devido a este
enorme acréscimo de despesas). Apesar disso, continua a haver uma
multidão de voluntários que sabem focar-se no essencial: ajudar
estas pessoas, que precisam tanto. O país olha para os voluntários
com gratidão. Em 2015 contaram-se cerca de 800 ataques contra os
refugiados. Ninguém contou os gestos de acolhimento, mas são
milhões.
Este domingo, mais
de 80 instituições culturais berlinenses abrem as portas aos
voluntários, oferecendo gratuitamente a entrada em museus e
exposições, visitas guiadas, peças de teatro e concertos para os
que ajudaram a acolher 70.000 refugiados em 2015. É a iniciativa
“Berlin sagt Danke!“ (“Berlim agradece!“)
E na segunda-feira
chegarão mais autocarros. E na terça, e na quarta, …
Ninguém sabe
quantos milhões entrarão na Alemanha em 2016.
Helena Araújo é
tradutora, autora do blogue Dois Dedos de Conversa e residente em
Berlim
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