ANTÓNIO
COSTA
O
casulo e a caverna
José
Manuel Fernandes
A
esquerda tem tendência a confundir o ideal com o real, mas António
Costa vai mais longe ao construir uma espécie de realidade paralela
onde o OE 2016 faz sentido. Mesmo após as 46 páginas de errata.
O primeiro-ministro
encontrou uma nova metáfora. O PSD, diz ele, está preso num casulo
que o impede de regressar à vida democrática. Gostou tanto dela que
a repetiu em duas respostas seguidas na entrevista que deu ao
Expresso. A repetição não deve surpreender-nos: António Costa
está constantemente a repetir as mesmas frases, mesmo quando elas já
só nos fazem sorrir pela sua irrealidade, como aquele mantra do
“virar a página da austeridade”.
Já a boutade só
acrescenta perplexidade ao imenso descaramento do líder do PS.
Afinal, o partido “preso no casulo” foi o que deixou passar o seu
orçamento rectificativo, o tal que a geringonça se recusou a
aprovar. Afinal a acusação de que a oposição não quer “construir
soluções” vem do líder do partido que, na anterior legislatura,
se recusou a firmar qualquer acordo com excepção de um, o sobre a
reforma do IRC, sendo que esse já o deitou borda fora mal se
alcandorou ao poder.
Fosse essa única
passagem digna de relevo da entrevista, e ela não mereceria senão
uma nota de rodapé – ou talvez nem isso, pois se há coisa em que
António Costa tem sido pródigo é em dar entrevistas, e todas
parecem poucas para convencer os portugueses, 55% dos quais não
acreditam nas contas do Orçamento, de acordo com uma sondagem que o
mesmo Expresso divulgava. O pior é que não é. Há outras passagens
merecedoras de reparo.
O primeiro-ministro,
por exemplo, diz que continua a considerar as agências de rating
como “lixo” numa altura em que o país está dependente, para se
manter à tona de água, da notação de uma única dessas agências,
a DBRS. Afirma que nem houve conflito com a Comissão Europeia apesar
de todos terem lido os termos da carta enviada ao Governo português
depois de conhecido o famoso “esboço de Orçamento”. Garante que
a reposição dos salários mais elevados da Função Pública
corresponde apenas ao cumprimento das decisões do Tribunal
Constitucional, quando no seu programa de governo defendia que também
cumpriria essas decisões faseando-a em dois anos. Volta a falar do
alívio da carga fiscal quando a errata do Orçamento entretanto
entregue pelo seu governo (46 páginas, uma por cada cinco páginas
do relatório original!) diz que esta “estabiliza”.
Podia continuar a
dar exemplos, ou então ir buscá-los às intervenções que fez no
debate quinzenal de sexta-feira, onde chegou a dizer numa mesma
intervenção de apenas dois minutos que o governo fora “forçado a
aumentar os impostos” e que “os impostos não aumentam”. Para o
caso é irrelevante: o que todas estas declarações mostram é que,
para António Costa, a realidade tem pouca importância – o que
conta realmente é a imagem que ele tem da realidade. A direita, como
ele diz, pode estar fechada num casulo, mas ele é um bom exemplo dos
prisioneiros que Platão imaginou na sua “Alegoria da Caverna”:
recusa-se a ver a realidade, só lhe interessa a imagem que formou
dessa mesma realidade.
Há dois exemplos
dos últimos dias que ilustram bem esta recusa de olhar para a
realidade, ambos em estatísticas reveladas pelo INE.
Começo pelas do
abandono escolar. Conhecemos a retórica oficial: o anterior governo
estava a destruir a escola pública, a sua política promovia a
exclusão dos mais fracos e a introdução de exames promovia uma
seleção precoce, traumática e desmotivadora. O natural, face a
este diagnóstico, é que o abandono escolar tivesse aumentado nos
últimos quatro anos. Mas foi exactamente o contrário que sucedeu: a
taxa de abandono escolar estava nos 23% em 2011 e ficou nos 13,7% o
ano passado. Ou seja, caiu quase para metade e aproximou-se mais
depressa do que se esperava do objectivo de 10% a alcançar no quadro
da “Estratégia da Europa para a Educação 2020”.
Suscitaram estes
números – estes factos puros e duros – qualquer reflexão? Nem a
mais leve sombra de um neurónio a mover-se, apenas a reafirmação
pelo ministro de que a alteração no sistema de avaliação, apesar
de condenada pelo Conselho de Escolas, entrará em vigor este ano.
Doa a quem doer, choque ou não com a realidade.
Continuo agora com
os números do PIB do quarto trimestre. Isto é, de um trimestre em
que a política de rendimentos não sofreu alteração mas em que se
instalou no país a incerteza sobre a solução de governo e a
estabilidade política. Os números do INE ficam dentro da
expectativa – o PIB cresceu 1,5% em termos homólogos e 0,2% em
cadeia – mas trazem a confirmação de um receio: o investimento
desacelerou. Apesar de a estimativa rápida do INE não fornecer
muito mais informação, estes indicadores apontam para que o consumo
privado das famílias continuou a subir – e a subir apenas por
efeito das medidas “austeritárias” do governo anterior – mas
que essa subida não estava a estimular o investimento. As empresas,
aparentemente, consideraram o ambiente político e as medidas
anunciadas nos acordos da gerigonça suficiente preocupantes para
suspenderem ou adiarem investimentos.
Bem sei que são
indicadores apenas de um trimestre, mas deviam fazer pensar os
arquitectos do “choque de consumo” que Costa prometia (e de que
continua a falar apesar do aumento dos impostos indirectos e de o
grosso do dinheiro “devolvido” às famílias ir para os
funcionários público dos escalões mais elevados) sobre a bondade
da sua receita. Aparentemente os portugueses já estão a consumir
mais, mas não é isso que faz melhorar o ambiente empresarial. Este,
em contrapartida, retraiu-se só com a perspectiva das medidas pouco
amigas das empresas previstas nos acordos à esquerda. Surpreendidos?
Eu não.
Mais: a
“austeridade” seguida até aqui permitiu um crescimento de 1,5%
em 2015; “virar a página da austeridade” só permite prever um
crescimento de 1,8% em 2016 (isto nas previsões do Governo, que as
do FMI apontam antes para 1,4%). Há de novo qualquer coisa que não
bate certo, mas isso parece não incomodar os líderes deste nosso
“tempo novo”.
Devo dizer que não
fico surpreendido com a ausência de qualquer reflexão sobre números
como estes. Ou sobre não descortinar qualquer sinal de que António
Costa aprendeu alguma coisa com o passado. Afinal a esquerda
portuguesa não é muito diferente da esquerda um pouco por toda a
Europa, e boa parte dessa esquerda continua em estado de negação. É
por isso mesmo que recomendo a leitura de uma entrevista recente com
o filósofo francês André Comte-Sponville, um homem por vezes visto
como um Raymond Aron de esquerda – ou melhor, dessa espécie rara
que é a esquerda liberal.
O seu ponto é
interessante e oportuno: “A esquerda tem sempre tendência a
confundir o ideal com o real”, ou seja, a tomar os seus desejos por
realidade. Dá como exemplo a reviravolta na política económica que
Miterrand teve de fazer no início da década de 1980, uma
reviravolta que a esquerda francesa viu sempre como um parênteses
que permitiria regressar ao antigamente na primeira oportunidade.
Medidas as distâncias, é uma descrição que encaixa na perfeição
a esta nossa esquerda que também ela olha para os últimos anos não
apenas como um incómodo parênteses, mas até como uma aberração
desnecessária fruto de um indefinido “radicalismo ideológico”.
Apressa-se por isso a desfazer tudo e a retomar a crença em algo
que, no caso francês, Comte-Sponville define, sem tibiezas, como
“uma mentira”, mas uma mentira em que a esquerda quer
deliberadamente acreditar – e viver. A mentira — em que Costa
parece acreditar, se bem que nunca o confesse — de que o défice e
a dívida são males menores, ou mesmo que não passam de uma
conspiração saída do “capitalismo de casino”.
É por tudo isso que
me parece fazer tanto sentido recordar a “Alegoria da Caverna” e
a recusa dos que nela estão prisioneiros de olharem de frente para o
mundo real. Sendo que é bem pior estar prisioneiro numa caverna do
que (porventura) encerrado num casulo: deste sempre se sai, e sai-se
em busca da claridade e do sol…
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