sábado, 13 de fevereiro de 2016

O casulo e a caverna / José Manuel Fernandes


ANTÓNIO COSTA
O casulo e a caverna
José Manuel Fernandes

A esquerda tem tendência a confundir o ideal com o real, mas António Costa vai mais longe ao construir uma espécie de realidade paralela onde o OE 2016 faz sentido. Mesmo após as 46 páginas de errata.

O primeiro-ministro encontrou uma nova metáfora. O PSD, diz ele, está preso num casulo que o impede de regressar à vida democrática. Gostou tanto dela que a repetiu em duas respostas seguidas na entrevista que deu ao Expresso. A repetição não deve surpreender-nos: António Costa está constantemente a repetir as mesmas frases, mesmo quando elas já só nos fazem sorrir pela sua irrealidade, como aquele mantra do “virar a página da austeridade”.

Já a boutade só acrescenta perplexidade ao imenso descaramento do líder do PS. Afinal, o partido “preso no casulo” foi o que deixou passar o seu orçamento rectificativo, o tal que a geringonça se recusou a aprovar. Afinal a acusação de que a oposição não quer “construir soluções” vem do líder do partido que, na anterior legislatura, se recusou a firmar qualquer acordo com excepção de um, o sobre a reforma do IRC, sendo que esse já o deitou borda fora mal se alcandorou ao poder.

Fosse essa única passagem digna de relevo da entrevista, e ela não mereceria senão uma nota de rodapé – ou talvez nem isso, pois se há coisa em que António Costa tem sido pródigo é em dar entrevistas, e todas parecem poucas para convencer os portugueses, 55% dos quais não acreditam nas contas do Orçamento, de acordo com uma sondagem que o mesmo Expresso divulgava. O pior é que não é. Há outras passagens merecedoras de reparo.

O primeiro-ministro, por exemplo, diz que continua a considerar as agências de rating como “lixo” numa altura em que o país está dependente, para se manter à tona de água, da notação de uma única dessas agências, a DBRS. Afirma que nem houve conflito com a Comissão Europeia apesar de todos terem lido os termos da carta enviada ao Governo português depois de conhecido o famoso “esboço de Orçamento”. Garante que a reposição dos salários mais elevados da Função Pública corresponde apenas ao cumprimento das decisões do Tribunal Constitucional, quando no seu programa de governo defendia que também cumpriria essas decisões faseando-a em dois anos. Volta a falar do alívio da carga fiscal quando a errata do Orçamento entretanto entregue pelo seu governo (46 páginas, uma por cada cinco páginas do relatório original!) diz que esta “estabiliza”.

Podia continuar a dar exemplos, ou então ir buscá-los às intervenções que fez no debate quinzenal de sexta-feira, onde chegou a dizer numa mesma intervenção de apenas dois minutos que o governo fora “forçado a aumentar os impostos” e que “os impostos não aumentam”. Para o caso é irrelevante: o que todas estas declarações mostram é que, para António Costa, a realidade tem pouca importância – o que conta realmente é a imagem que ele tem da realidade. A direita, como ele diz, pode estar fechada num casulo, mas ele é um bom exemplo dos prisioneiros que Platão imaginou na sua “Alegoria da Caverna”: recusa-se a ver a realidade, só lhe interessa a imagem que formou dessa mesma realidade.

Há dois exemplos dos últimos dias que ilustram bem esta recusa de olhar para a realidade, ambos em estatísticas reveladas pelo INE.

Começo pelas do abandono escolar. Conhecemos a retórica oficial: o anterior governo estava a destruir a escola pública, a sua política promovia a exclusão dos mais fracos e a introdução de exames promovia uma seleção precoce, traumática e desmotivadora. O natural, face a este diagnóstico, é que o abandono escolar tivesse aumentado nos últimos quatro anos. Mas foi exactamente o contrário que sucedeu: a taxa de abandono escolar estava nos 23% em 2011 e ficou nos 13,7% o ano passado. Ou seja, caiu quase para metade e aproximou-se mais depressa do que se esperava do objectivo de 10% a alcançar no quadro da “Estratégia da Europa para a Educação 2020”.

Suscitaram estes números – estes factos puros e duros – qualquer reflexão? Nem a mais leve sombra de um neurónio a mover-se, apenas a reafirmação pelo ministro de que a alteração no sistema de avaliação, apesar de condenada pelo Conselho de Escolas, entrará em vigor este ano. Doa a quem doer, choque ou não com a realidade.

Continuo agora com os números do PIB do quarto trimestre. Isto é, de um trimestre em que a política de rendimentos não sofreu alteração mas em que se instalou no país a incerteza sobre a solução de governo e a estabilidade política. Os números do INE ficam dentro da expectativa – o PIB cresceu 1,5% em termos homólogos e 0,2% em cadeia – mas trazem a confirmação de um receio: o investimento desacelerou. Apesar de a estimativa rápida do INE não fornecer muito mais informação, estes indicadores apontam para que o consumo privado das famílias continuou a subir – e a subir apenas por efeito das medidas “austeritárias” do governo anterior – mas que essa subida não estava a estimular o investimento. As empresas, aparentemente, consideraram o ambiente político e as medidas anunciadas nos acordos da gerigonça suficiente preocupantes para suspenderem ou adiarem investimentos.

Bem sei que são indicadores apenas de um trimestre, mas deviam fazer pensar os arquitectos do “choque de consumo” que Costa prometia (e de que continua a falar apesar do aumento dos impostos indirectos e de o grosso do dinheiro “devolvido” às famílias ir para os funcionários público dos escalões mais elevados) sobre a bondade da sua receita. Aparentemente os portugueses já estão a consumir mais, mas não é isso que faz melhorar o ambiente empresarial. Este, em contrapartida, retraiu-se só com a perspectiva das medidas pouco amigas das empresas previstas nos acordos à esquerda. Surpreendidos? Eu não.

Mais: a “austeridade” seguida até aqui permitiu um crescimento de 1,5% em 2015; “virar a página da austeridade” só permite prever um crescimento de 1,8% em 2016 (isto nas previsões do Governo, que as do FMI apontam antes para 1,4%). Há de novo qualquer coisa que não bate certo, mas isso parece não incomodar os líderes deste nosso “tempo novo”.

Devo dizer que não fico surpreendido com a ausência de qualquer reflexão sobre números como estes. Ou sobre não descortinar qualquer sinal de que António Costa aprendeu alguma coisa com o passado. Afinal a esquerda portuguesa não é muito diferente da esquerda um pouco por toda a Europa, e boa parte dessa esquerda continua em estado de negação. É por isso mesmo que recomendo a leitura de uma entrevista recente com o filósofo francês André Comte-Sponville, um homem por vezes visto como um Raymond Aron de esquerda – ou melhor, dessa espécie rara que é a esquerda liberal.

O seu ponto é interessante e oportuno: “A esquerda tem sempre tendência a confundir o ideal com o real”, ou seja, a tomar os seus desejos por realidade. Dá como exemplo a reviravolta na política económica que Miterrand teve de fazer no início da década de 1980, uma reviravolta que a esquerda francesa viu sempre como um parênteses que permitiria regressar ao antigamente na primeira oportunidade. Medidas as distâncias, é uma descrição que encaixa na perfeição a esta nossa esquerda que também ela olha para os últimos anos não apenas como um incómodo parênteses, mas até como uma aberração desnecessária fruto de um indefinido “radicalismo ideológico”. Apressa-se por isso a desfazer tudo e a retomar a crença em algo que, no caso francês, Comte-Sponville define, sem tibiezas, como “uma mentira”, mas uma mentira em que a esquerda quer deliberadamente acreditar – e viver. A mentira — em que Costa parece acreditar, se bem que nunca o confesse — de que o défice e a dívida são males menores, ou mesmo que não passam de uma conspiração saída do “capitalismo de casino”.


É por tudo isso que me parece fazer tanto sentido recordar a “Alegoria da Caverna” e a recusa dos que nela estão prisioneiros de olharem de frente para o mundo real. Sendo que é bem pior estar prisioneiro numa caverna do que (porventura) encerrado num casulo: deste sempre se sai, e sai-se em busca da claridade e do sol…

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