sábado, 20 de fevereiro de 2016

O governador servido numa bandeja / MANUEL CARVALHO


O governador servido numa bandeja

MANUEL CARVALHO 21/02/2016 - PÚBLICO

Carlos Costa, foi por estes dias transformado na lixívia do Governo. Olhando para o mercado da política e da economia, dificilmente se poderia encontrar alguém com melhores condições para fazer de bombo da festa, com o qual podemos espantar receios e ansiedades.

A Europa está à deriva e é cada vez menos a âncora à qual podemos atar as nossas debilidades? Pois, e as falhas do regulador no caso BES? Os mercados financeiros voltam a dar sinais de instabilidade e a colocar Portugal na linha da frente das potenciais vítimas de juros altos? Certo, mas olhemos para o que se passa com os lesados do BES. O Bloco e o PCP, mas principalmente o Bloco, levam ao conhecimento dos portugueses um caderno de exigências que ressuscita o fantasma do radicalismo tipo Syriza e voltam a acrescentar tensão na estabilidade do executivo? Está bem, mas Carlos Costa tem de mostrar um estudo sobre o desempenho do Banco de Portugal para o PS saber se encontra por lá alguns “factos graves” capazes de promover a sua substituição.

A actuação do regulador nos dois últimos anos deixou de suscitar dúvidas até entre os mais cautelosos e entre os que olhavam para o governador como mais uma das vítimas de Ricardo Salgado. Tantos erros, tantas imprecisões e o adiamento do desfecho do Banif para depois das eleições, com um cheiro intenso de frete a Passos Coelho, demoliram o que restava da muralha defensiva de Carlos Costa. Mas se faz sentido discutir a sua substituição, a forma como o Governo a está a reclamar transformou um assunto de Estado com enorme delicadeza, até pela sua visibilidade externa, numa discussão de peixaria. António Costa, cerebral, estratega e institucionalista vestiu a farda de um qualquer militante socialista e despiu-se da formalidade que se recomenda a um primeiro-ministro. Fê-lo sem dúvida por convicção, mas também porque sabe que está sentado numa bicicleta que se abrandar a velocidade acabará por ser derrubado ou pela conjuntura externa, ou pela aliança interna, ou por ambos. Cada frase contra Carlos Costa não passa por isso de mais uma pedalada na sua marcha instável.

Uma das grandes lições dos últimos meses da política portuguesa é que não é boa ideia fazer previsões. Dificilmente alguém poderia acreditar que a turbulência nos mercados financeiros internacionais pudesse regressar com tanta evidência como nas últimas semanas. Seria improvável que alguém viesse em Fevereiro do ano passado dizer que Portugal vai precisar de um novo resgate ou que recuperássemos o interesse mórbido de verificar dia a dia o comportamento das taxas de juro da dívida. Mas esse é o pano de fundo sobre o qual o Governo tem de actuar. Dizer que o orçamento foi a principal causa das ameaças que pairam sobre os juros é acreditar que Portugal tem uma influência maior no grande jogo do dinheiro do que a que efectivamente tem. Mas negar que as trapalhadas do orçamento, do draft voluntarista e pueril aos remoques da Comissão Europeia e do Conselho Europeu, não contribuíram para moldar o actual clima, é também negar a realidade.

A Europa tornou-se por vários motivos um abcesso na estratégia de António Costa. Ele já deve ter percebido que a sua vontade de influenciar a Europa não passou de um idealismo adolescente. A Europa que se desfaz sobre a pressão dos refugiados, do regresso da face infecciosa do Estado-nação e do enfado do Reino Unido para com o projecto, não quer ouvir António Costa e não parece disposta a aborrecer-se nem a gastar tempo com formalidades negociais em torno das páginas da austeridade que o Governo quer virar. O Governo manteve-se firme na devolução de rendimentos, mas nem uma dúzia de vídeos no YouTube bastariam para nos convencer de que o aperto desapareceu e a austeridade acabou. Com menos margem na Europa, o primeiro-ministro fica com menos margem em Lisboa. Entre Bruxelas e os seus aliados informais, António Costa escolheu Bruxelas duas vezes (ao corrigir a proposta de orçamento e ao aceitar desenhar um plano B com novas medidas de austeridade) e ao fazê-lo abriu inevitavelmente o flanco às críticas do Bloco e do PCP.

Criticar forte e feio o governador do Banco de Portugal é neste cenário uma boa forma de afagar Catarina Martins ou Jerónimo de Sousa e de apagar o tom das ameaças que esta semana se ouviram do Bloco. Depois de saciar os seus parceiros com as 35 horas, com o salário mínimo, com a renacionalização da TAP, com o fim das concessões dos transportes públicos de Lisboa e Porto, começam a faltar alimentos políticos para os manter calmos. Zurzir em público em Carlos Costa, criando um incidente institucional que na Europa só se vê na Hungria ou na Turquia, é apenas mais um passo nessa estratégia.

Nem isso basta, porém. Sérgio Godinho cantava em tempos “Pode alguém ser quem não é?” e a pergunta tem resposta fácil quando em causa estão o Bloco e o PCP. Não pode. Por muito que façam ginástica e pratiquem o equilibrismo, PCP e Bloco não parecem dispostos a ser plasticina. Não mudam porque são como são. Se o orçamento vai passar nas próximas semanas no Parlamento, a aprovação de alterações ao Pacto de Estabilidade e Crescimento, lá para a Primavera, vai ser uma operação muito mais difícil. Veja-se o que diz uma resolução do Bloco revelada esta semana pelo jornal i e perceba-se o que está em causa: “A força da UE e a fraqueza do PS (…) potenciam conflitos com os partidos de esquerda”; “O conflito com a UE é o campo da disputa política que temos pela frente”; “Não aceitamos que a Europa seja usada como álibi para mais cedências”. Ou António Costa encontra muitos mais governadores para apaziguar a fúria da esquerda, ou a esquerda engole estas ameaças, ou o Governo será sustentado por uma hipocrisia que lhe vai corroer a legitimidade. Venha o diabo e escolha.


2 – Não se percebe o que terá levado Rui Moreira a cometer o erro de dizer que Vigo se sente “uma salsicha fresca” e de notar que o seu aeroporto é “miserável”. Na batalha em curso sobre a suspensão de voos da TAP, o presidente da Câmara do Porto tinha feito tudo bem. Tinha definido um perímetro claro do que estava em causa, tinha usado uma linguagem simples e compreensiva, tinha delimitado as suas exigências à natureza pública da TAP e tinha conseguido granjear apoios um pouco por todo o país. O recurso a uma linguagem virulenta e excessiva, ainda por cima dirigida contra a população de uma cidade com a qual o Porto tem conseguido cimentar alianças nas últimas décadas, foi uma nódoa no processo. Não havia necessidade.

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