OPINIÃO
Direito
à indignação
RAQUEL HENRIQUES DA
SILVA 29/02/2016 - PÚBLICOI
Decidi
tomar posição para exprimir a minha profunda indignação pelo modo
como António Lamas tem sido enxovalhado.
Por estes dias,
tenho estado na expectativa de que a discussão do orçamento de
Estado pudesse ser momento adequado para que o Ministro da Cultura
(MC) enunciasse as linhas mestras da estratégia política para um
sector que, há mais de uma década, não tem linha de rumo
consistente. Desejaria, por exemplo, saber se o Conselho Nacional de
Cultura vai finalmente ser um órgão com alguma relevância para
democraticamente se discutir o campo patrimonial, em primeiro lugar
se a problemática DGPC se deve manter no seu gigantismo de pés de
barro e na sua escandalosa falta de meios. Pensar este tópico,
envolve também o desempenho das Direcções Regionais de Cultura nas
suas funções de gestão de museus e monumentos, a passagem da
gestão de museus destes organismos para Câmaras Municipais, a
gravíssima perda de autonomia dos museus nacionais, o futuro do
quase abandonado Forte de Sacavém que, no entanto, é a alma e o
corpo da memória patrimonial portuguesa. E pode envolver ainda
questões aparentemente menos estruturais, como o preço dos
ingressos nos museus que vai da gratuitidade da Colecção Berardo
(paga por todos nós) aos valores que considero excessivos da nova
bilhética da Fundação de Serralves.
Compensando a
ausência do que mais interessaria, o MC tem-se desdobrado em
declarações sobre dois tópicos, especialmente mediáticos: a
decisão “incontornável” de que “os Mirós” vão ficar em
Portugal e a extinção da Estrutura de Projecto para a gestão
conjunta do eixo Belém-Ajuda. Neste caso, foi-se percebendo que o MC
visou também (ou sobretudo?) afastar António Lamas da direcção do
CCB, para ser substituído por “alguém com experiência, bastante
mais jovem, com provas dadas, nomeadamente ao nível de
responsabilidades públicas num ministério” (Público on line 26
Fev.). Já antes, o Ministro se referira a Lamas como “alguém que
não tem legitimidade democrática, que é metido por razões disto
ou daquilo” (Expresso, 20 de Fev.).
É com desgosto que
refiro este linguajar trauliteiro, infeliz num ministro da nação e,
mais, naturalmente, no Ministro da Cultura. Não pretendo neste
momento pronunciar-me sobra a extinção da Estrutura de Projecto e
sei que, em caso de conflito de personalidades como é o caso, um
Ministro dispõe de legitimidade de demitir. Mas decidi tomar posição
para exprimir a minha profunda indignação pelo modo como António
Lamas tem sido enxovalhado, fazendo tábua rasa do facto
incontornável de ele ser um dos mais brilhantes e dedicados gestores
culturais em Portugal a que o nosso património muito deve.
Gostaria de
perguntar ao MC (que tanto apreciou o Museu Grão Vasco, modernizado
pelo arq. Eduardo Souto Moura) se ele sabe que foi António Lamas
(sendo Secretária de Estado da Cultura, Teresa Gouveia) que, no
final dos anos de 1980, delineou e pôs em movimento a modernização
não só do Museu Grão Vasco mas do Museu Soares dos Reis, do Museu
de Aveiro, do Museu de Évora, do Museu do Abade Baçal, do Museu
Nacional de Arte Contemporânea, convidando para o efeito arquitectos
como Fernando Távora, Alcino Soutinho, Hestnes Ferreira, António
Portugal e Manuel Maria Reis e Jean Michel Wilmotte, abrindo assim o
mais extraordinário período de obras de requalificação dos museus
portugueses de todo o século XX. Que envolveu (saberá o Ministro?)
o projecto do próprio CCB que nunca existiria sem o rasgo e a
determinação do então Presidente do IPPC que tantos contestaram
como inútil e faraónica obra que escondia a cenografia
estadonovista dos Jerónimos!
Mais recentemente,
antes de chegar à direcção do CCB, Lamas foi (saberá o Ministro?)
presidente da empresa Parques de Sintra, Monte da Lua que, sob a sua
direcção, passou de um organismo inútil (estou a ser benevolente)
para a mais inovadora experiência de gestão cultural em Portugal,
traduzida em factos: a valorização do Castelo dos Mouros e
envolvente, a renovação museológica e museográfica do Palácio da
Pena, o restauro integral do Palácio de Monserrate e do Chalet da
Condessa de Edla, a aquisição de novas propriedades, o restauro e
renovação dos jardins, matas e florestas. Não pense o Ministro (ou
os eventuais leitores) que exagero: basta ir e fruir o estado
presente daquele património notabilíssimo. E se os proventos das
bilheteiras e das lojas galoparam, em função de exponencial
crescimento dos públicos, não é possível, como pretenderam
alguns, falar de opções mercantilistas: nunca, como a partir de
António Lamas, aquele património foi estudado, conservado, ampliado
e valorizado.
A minha indignação
assenta, portanto, na inaceitável atitude de um recém-chegado
Ministro que ainda não provou nada, para com um homem que, há mais
de trinta anos, vem servindo com raro brilhantismo e respeito pela
coisa pública, o património português. Esta notável herança tem
de ser considerada e, mais propositivamente, seria, para qualquer
político avisado, um repto para pensar o futuro. Porque, não tenha
qualquer dúvida o Ministro, e a estranha equipa que o rodeia, que
urge ter ideias, estratégias e linhas de acção, aproveitando, com
projectos complexos, inovadores e fundamentados, as parcerias que o
Ministério da Ciência, da Tecnologia e do Ensino Superior tem vindo
a propor, neste caso com uma consistência que nos enche de
esperança.
Professora FCSH-UNL
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