A
Carochinha a voar na TAP
Manuel Carvalho /
14-2-2016 / PÚBLICO
A nova administração
da TAP prepara-se para vir ao Porto contar a história da Carochinha
aos autarcas. Na mão, leva um papel segundo o qual os voos para
Barcelona, Milão, Roma e Bruxelas dão um prejuízo anual de oito
milhões de euros. E, num prodigioso exercício de fantasia, a
administração da TAP reconhece que essa perda aconteceu apesar de
as ligações terem taxas de ocupação entre os 78 e os 85%.
É melhor não
entrarmos no caminho dos detalhes para tentar perceber por que razão
o voo para Barcelona gera prejuízos quando apenas 15% dos lugares
ficaram vagos — é sempre fácil acrescentar ou retirar custos ou
de introduzir nos cálculos doses ponderadas de criatividade. O que
não percebemos é como quer a TAP transportar as cerca de 190 mil
pessoas que fizeram essas rotas em 2015 obrigando-as a uma escala em
Lisboa e, no final, do dia, conseguir obter lucro.
Ora, a TAP não quer
ir por aí e é por isso que toda a estratégia da sua administração
parece uma história infantil. O seu único fim é adormecer os
autarcas e empresários do Norte e mostrar ao Governo que está
empenhada numa solução.
A TAP do consórcio
Gateway dominada pelo homem forte da companhia brasileira Azul não
está empenhada em solução alguma no Porto porque a sua visão
estratégica se sustenta exclusivamente na ponte entre o Brasil e a
Europa, na qual Lisboa aparece como o principal pilar e o interesse
do Norte do país como uma bizarria. Era por isso bom que essa visão
fosse assumida de uma vez por todas e não nos viessem com contas
suspeitas como a dos prejuízos dos voos que vão ser suspensos numa
altura em que se vai começar a viajar do Porto para Varsóvia por
menos de 40 euros.
Era bom que nos
explicassem por que razão os voos para Barcelona ou Milão ou
Bruxelas com partida em Lisboa dão lucro e os do Porto são
prejuízo. Têm taxas de ocupação superiores a 85%? Mesmo assim não
chegaria, porque no caso do Porto, diz a business intelligence da
TAP, teria de chegar aos 116%. Têm preços mais caros? Não podem,
porque assim perderiam lugares para a concorrência. Têm custos
operacionais mais baixos? Mas como, se afinal não se cansam de nos
dizer que o aeroporto da Portela está com problemas de
sobreocupação?
Se transportar
directamente 190 mil pessoas para as quatro cidades europeias em
causa dá prejuízo, não se percebe como háde dar lucro enfiá-las
num avião da ponte aérea, desembarcá-las em Lisboa e reembarcá-las
para Milão ou Roma. Claro que não dá. A TAP suprime voos porque
deliberadamente está a desinvestir do aeroporto do Porto, mantendo
uma estratégia que já dura há anos e que fez com que se limite
hoje a dispor de uma quota de mercado de 20% no aeroporto Sá
Carneiro (cerca de 60% no agora aeroporto Humberto Delgado).
Mais, a TAP não só
quer colocar o Porto à margem da sua estratégia como desenhou até
um plano para lhe disputar uma faixa significativa do seu mercado
natural, o da Galiza, criando um voo diário entre Vigo e Lisboa.
Nessa estratégia que, se for bem-sucedida, reduzirá o raio de
influência do Sá Carneiro e do Porto no noroeste peninsular, o que
importa não são os “interesses específicos do Porto”, que,
numa carta aos autarcas, a administração da TAP se prontifica a
defender; é, pelo contrário, o objectivo de “expandir a
importância” do centro de operações de Lisboa.
Rui Moreira,
presidente da Câmara do Porto, tem estado à frente da contestação
aos planos da TAP porque percebeu que os planos da TAP podem ter o
tom azulado de uma companhia aflita no Brasil ou a tonalidade mármore
dos interesses que espreitam a oportunidade de construir um novo
aeroporto em Lisboa, mas são uma ameaça para o Porto e para o
Norte.
Ao contrário do que
certas opiniões da capital, sempre prontas a dar largas à sua
proverbial irritação com o atrevimento dos autarcas ou dos
empresários do Norte, sugerem, o que está em causa não é um
desabafo bairrista nem uma bravata identitária de gauleses
irredutíveis; o que está em causa são ameaças reais à dinâmica
da região mais exportadora do país. O que está em causa é o
protesto contra mais uma operação que apenas servirá para reforçar
o atavismo de um país excessivamente centralista e monopolar.
Se uma companhia
privada decidir desinvestir no Porto ou em Braga ou em Vila Real para
se concentrar em Faro ou em Olhão, mesmo que cause perturbações
nos seus clientes, o que fica na mesa é apenas uma opção legítima
dos seus accionistas; se uma companhia cujo maior accionista é o
Estado decidir sair do Porto, se desistir de parte dos seus clientes
e, pior, se tentar esvaziar o seu potencial de desenvolvimento, o que
fica em causa é uma opção política na qual todos somos convocados
para intervir.
É por isso que, um
destes dias, mais cedo do que tarde, o primeiro-ministro e o ministro
do Planeamento e Infra-Estruturas, Pedro Marques, terão de se sentar
à mesa para encontrarem um consenso sobre o significado do
“interesse nacional”. Ou, pelo menos, sobre a forma como há-de a
TAP cumprir esse tão elevado desígnio a partir do aeroporto
Francisco Sá Carneiro.
É que se o ministro
está empenhado na “salvaguarda dos interesses estratégicos do
país”, está pouco ou nada interessado em discutir questões
comezinhas como rotas ou a dimensão da presença da companhia aérea
neste ou naquele aeroporto nacional. Pelo contrário, António Costa
é mais preciso na definição do “nível estratégico” que
justifica a presença do capital público na transportadora, dizendo
preto no branco em relação ao aeroporto do Porto que é do
interesse nacional “fixar algumas rotas estratégicas” a partir
da cidade ou manter aí uma “base aeroportuária activa que
favoreça toda a região”.
A definição do que
é o interesse nacional e a forma como a TAP o pode desempenhar
torna-se assim o ângulo fundamental da discussão em torno da
renacionalização de parte do capital da companhia e em torno do
esvaziamento reflectido e deliberado do Sá Carneiro. A partir do
momento em que se reconhece (e não há quem o não reconheça) que
uma região fortemente exportadora precisa de um aeroporto dinâmico
para garantir o seu nível de internacionalização, retirar-lhe
ligações a centros importantes como Milão, Barcelona ou Bruxelas
é, de alguma forma, ameaçar a sua competitividade.
A TAP, na sua actual
configuração accionista, não pode entrar nesse jogo que compromete
a equidade territorial. E, mais ainda, não pode vir com histórias
da Carochinha dizendo-nos que voos com taxas de ocupação com 85%
dão prejuízo nesta era de prosperidade para as low-cost. Se a TAP
ainda é a “nossa” companhia, tem de agir em conformidade. Se não
o fizer e se não for reprivatizada, não passará de mais um odiento
instrumento do Estado que discrimina cidadãos, instituições ou
empresas que vivem ou operam a norte do Mondego.
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