UNIÃO EUROPEIA
Que
bom que era termos uma Europa mais à inglesa
José Manuel
Fernandes
28/2/2016,
OBSERVADOR
Não podemos
protestar contra os poderes da Comissão Europeia e, logo a seguir,
pedir mais integração e mais “solidariedade” europeia. Nem uma
coisa nem outra, precisamos é de uma Europa mais à inglesa
Uma das
características do nosso debate público é, com frequência, a sua
esquizofrenia. Ou, se preferirmos, a total ausência de preocupação
com a defesa de posições que sejam coerentes e consistentes.
Pode-se defender qualquer coisa e o seu contrário sem que isso,
aparentemente, incomode quem quer que seja.
Por exemplo: é
fácil, é barato e dá milhões atacar a Comissão Europeia por
querer mandar em Portugal e no nosso Orçamento – fazemo-lo às
segundas, quartas e sextas. Ainda agora boa parte do país se dedicou
a essa tarefa, com empenho, denoto e acusações de falta de
patriotismo aos demais.
Mas também é
fácil, barato e dá milhões atacar a Europa por “ceder”, por
não se impor, por permitir mais flexibilidade, sobretudo se isso
acontecer com um “grande”, como agora se diz que viu com o Reino
Unido, a quem o Conselho Europeu concedeu a possibilidade de não
aplicar algumas das políticas decididas em Bruxelas. É o que
acontece às terças, quintas e sábados.
Aos domingos… logo
se vê.
Tal como os
interruptores, que umas vezes estão para cima e outras para baixo,
não falta quem num dia proteste com o nível de integração
europeu, que transferiu para “a Europa” competências que eram do
nosso Parlamento e, logo a seguir, se revolte por esse mesmo nível
de integração europeu ser insuficiente e a Europa não mostrar para
connosco a “solidariedade” de que nos julgamos credores. Num dia
falam de soberania e democracia, no outro de “espírito europeu”,
sem porventura se aperceberem que estão a ter indignações
contraditórias.
É certo que há
quem seja coerente. Francisco Assis e Paulo Rangel, apesar de
pertencerem a partidos diferentes, defendem ambos mais integração,
“mais Europa”, e por isso não contestam o poder que a Comissão
tem para nos dar ordens em matéria de política orçamental. Tal
como outros, no polo oposto, não aceitam essa “autoridade de
Bruxelas” e, por isso, não hesitam em defender que saiamos do
euro. É o caso do PCP e de alguns economistas, como João Ferreira
do Amaral.
No meu caso devo
dizer que estou à vontade – mesmo não concordando nem com uns,
nem com outros. Na altura certa – Junho de 2010, ainda Sócrates
era e seria primeiro-ministro – insurgi-me contra a ideia de dar a
Bruxelas poderes de veto sobre os nossos orçamentos. Chamei mesmo à
criação do “semestre europeu” — num texto intitulado A
loucura suicidária de “mais Europa” — “um golpe de Estado
anti-democrático” que “humilhará os parlamentos nacionais”. O
facto de agora ter estado de acordo com as reservas que a Comissão
Europeia colocou ao primeiro esboço de orçamento apresentado por
António Costa, e de acompanhar a Moody’s quando esta defende que,
apesar de tudo, a versão final que acaba de ser votada na Assembleia
é menos má do que o projecto inicial, não mudo de ideias. Isto é,
continuo a pensar que dar à Comissão Europeia poder de veto sobre o
principal instrumento de acção política de qualquer governo, para
mais fazendo-o antes de os Parlamentos nacionais se terem sequer
pronunciado, é um entorse à democracia e uma violação da
soberania nacional que vai além daquela de que Portugal
voluntariamente abdicou ao assinar o Tratado de Lisboa.
É por pensar assim
que estou contente por David Cameron ter conseguido arrancar dos seus
parceiros europeus as pequenas cedências que levou de volta para
Londres, tentando com elas evitar que os britânicos votem pela saída
do Reino Unido da União Europeia. Gosto especialmente daquele ponto
em que se afirma que o caminho da Europa não é obrigatoriamente o
da “ever closer union”, isto é, o de uma integração cada vez
maior. Mais: não me interessa discutir se o Reino Unido tem ou não
razão quando procura limitar os abusos de alguns imigrantes que,
vindos de outros países da comunidade, procuram beneficiar do seu
generoso “Welfare State” sem contribuir para ele. O que valorizo
é o Reino Unido ter conseguido reconquistar poderes que havia
perdido, levando-os de volta para Westminster.
Nestas alturas gosto
sempre de recordar o que Tony Benn, um histórico deputado
trabalhista, e logo da ala mais à esquerda, que em 1991 (há 25
anos!) fez um notável discurso quando anunciou que votaria contra o
Tratado de Maastricht. Dirigindo-se aos seus constituintes do círculo
eleitoral de Chesterfield, disse-lhes que, “no futuro, serão
governados por pessoas que não elegeram e que não poderão demitir.
Peço-vos desculpa por isso. Pode ser que essas pessoas vos dêem
melhores creches e um horário de trabalho mais reduzido, mas vocês
nunca se poderão ver livres delas”.
“Vocês nunca se
poderão ver livres delas”: eis uma profecia que, muitos tratados
depois, com todas as suas cedências de soberania, parecia
inelutável. Mas talvez não, depois do que Cameron conseguiu, o que
para já é válido pelo menos para os britânicos. Mas se estes
votarem pela permanência na União, como espero que votem, então o
precedente agora aberto pode revelar-se da maior importância.
Primeiro porque mostra que, ao contrário do mito, a Europa não tem
fatalmente de ser uma bicicleta, sempre a pedalar em frente, antes
pode evoluir para uma associação voluntária de nações onde não
o destino não fatalmente a “ever close union”, pois também se
pode fazer marcha-atrás.
Depois, porque as
cedências ao Reino Unido abrem a porta a uma ideia de Europa menos
uniforme, mais “a la carte”, logo mais capaz de permitir que os
eleitorados de cada um dos países façam as suas escolhas e não
tenham de seguir sempre a cartilha de Bruxelas.
Tudo isto é anátema
para os que sonham com uma qualquer forma de federalismo ou de
super-Estado. Tudo isto também é muito mais difícil de alcançar
por todos os países que abdicaram de ter moeda própria, ou seja,
pelos países do euro, como Portugal. Estes estão como que
agrilhoados a regras que são e serão draconianas, pois deram um
passo maior do que as suas pernas – sobretudo as pernas dos países
periféricos.
É assim que
chegamos à esquizofrenia que referi atrás, pois no fundo o que
muitos parecem desejar, com destaque para os políticos populistas, é
manterem a sua capacidade de satisfazerem as suas clientelas –
chamando a isso soberania – e, ao mesmo tempo, assegurarem que
alguém paga os seus excessos – o que classificam sendo um dever de
solidariedade coerente com o “espírito europeu”. Ou seja, querem
mais “soberania” para eles, os que gastam, e menos “soberania”
para os outros, os que pagam a factura. É por isso que num dia
protestam contra o excesso de autoridade da Comissão Europeu e no
dia seguinte lamentam a liberalidade do Conselho Europeu.
Esta esquizofrenia –
que no fundo não passa de oportunismo – tende a obscurecer o
debate pois não permite ver que, mais do que os humores de Merkel ou
de Draghi, o que determinará o nosso futuro é a escolha entre uma
Europa mais integrada – a tal “ever close union” – e, por
isso, cada vez mais centralizada e com decisões cruciais a serem
tomadas bem longe dos parlamentos nacionais, ou uma Europa que,
tirando partido do seu imenso mercado interno, permita geometrias
variáveis, tal como avanços e recuos, mas mais democrática porque
mais dependente da vontade de cada eleitorado e de cada parlamento.
Eu prefiro o segundo
caminho, e por isso estou grato a David Cameron por ter criado um
precedente que fará história. Sobretudo se o Reino Unido,
mantendo-se dentro da União, não permitir que se esqueçam os
compromissos agora assumidos e defenda que outros também possam
obtê-los. Se o fizer, será mais tarde ou mais cedo um aliado de que
necessitaremos. Mais: se o fizer é bem capaz de ter criado a válvula
de escape capaz de permitir que, no caldeirão em que a UE se tornou,
a pressão diminua, o populismo regrida, os cidadãos sintam que têm
de novo o seu destino nas suas próprias mãos e políticos a quem
pedir contas sem que eles se desculpem com Bruxelas.
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