OPINIÃO
A
razão contra a barbárie
TERESA DE SOUSA
28/02/2016 -PÚBLICO
1.Quando regressou a
casa, depois da cimeira europeia em que conquistou um “estatuto
especial” para o seu país, David Cameron declarou o seu amor à
pátria e esclareceu que não amava Bruxelas. Muita gente se espantou
com o sound-bite do primeiro-ministro britânico, interpretando-o
como um sinal, mais um, do seu total desapego pela integração
europeia, uma espécie de pecado original que o Reino Unido trouxe
para a Europa desde que aderiu. Uma segunda linha de comentários foi
mesmo no sentido de que a saída do Reino Unido seria uma espécie de
bênção para a Europa, que poderia libertar-se da “chantagem”
britânica e regressar aos seus valores fundamentais, preservar o seu
modelo social, restaurar a solidariedade e prosseguir o caminho de
uma “ever closer union”, como dizem os tratados. Felizmente, nem
o PS nem o PSD vêem a presença do Reino Unido na Europa dessa
maneira. Como disse o primeiro-ministro em Bruxelas, para Portugal a
paisagem europeia sempre incluiu e continua a incluir o Reino Unido.
Mas a “falta de
amor” de que acusam Cameron merece uma reflexão pelo que significa
sobre o que é a União Europeia hoje, precisamente quando atravessa
a sua mais grave crise existencial, na confluência de muitas crises:
da dívida e da divergência económica, aos refugiados e à
segurança, passando pelo seu lugar num mundo cada vez mais
multipolar e em profunda desordem. Não vale a pena idealizar uma
União Europeia que já não existe nem, muito menos, diabolizar um
dos seus membros. A Europa foi construída, desde o seu início, pela
razão contra a barbárie (sim, a nossa maravilhosa Europa nasceu da
barbárie em solo europeu). A razão não desperta emoções e, por
isso, é difícil de amar. Mas a História europeia é um verdadeiro
cardápio sobre a forma como as emoções e os mitos nacionais
(verdadeiros ou inventados) podem matar a razão. É essa a
experiência da Europa na primeira metade do século XX, quando duas
“guerras civis” quase a destruíram e quando um pequeno número
de visionários, de Robert Schuman a Alcide De Gasperi passando por
Jean Monnet ou Winston Churchill, decidiu que o melhor caminho para
impedir mais guerras em solo europeu era ir contra a própria
História, criando um projecto de integração política capaz de
deslegitimar o nacionalismo. Fizeram-no, cinco anos depois do fim da
II Guerra, quando as marcas da barbárie ainda estavam demasiado
vivas. Fizeram-no também pelo impulso dos Estados Unidos. Fizeram-no
a partir da mais improvável das alianças, entre a França e a
Alemanha Ocidental. Fizeram-no, finalmente, a partir do único
critério seguro para afastar a guerra, que é o critério da
democracia. A Comunidade foi a obra de uma elite europeia corajosa e
lúcida que soube colocar a razão acima da História, provando que o
determinismo pode ser vencido. A ameaça soviética ajudou a
consolidar a integração europeia e a fortalecer a aliança
transatlântica. Feitas as contas, foi um tremendo sucesso que abriu
as portas à prosperidade e à paz.
2.Quando o Muro caiu
e a União Soviética implodiu, foi preciso encontrar uma nova razão
para a Comunidade Europeia. De repente, a perspectiva de uma grande
Alemanha unificada de novo no coração da Europa fez abalar algumas
convicções e recordar alguns velhos demónios. Foi, de novo, graças
à obra de visionários, como Kohl ou Mitterrand, e ao empenho dos
Estados Unidos que a Europa conseguiu sobreviver. Maastricht e o euro
foram, uma vez mais, uma decisão política capaz de moldar o rumo
dos acontecimentos. A razão vencia de novo os medos e as emoções.
Apesar da guerra nos Balcãs, o regresso da História ficaria adiado
e o futuro parecia magnífico, graças à vitória do Ocidente que
pôs fim à Guerra Fria e ao início da globalização económica. As
economias ricas chegaram a acreditar que os ciclos económicos tinham
desaparecido perante o milagre da expansão dos mercados. O “fim da
História” de Fukuyama parecia ser possível. Por uma década, a
integração europeia transformou-se num exemplo para o mundo.
Durante algum tempo, entre Maastricht e o chumbo da Constituição
(2005), a Europa tornou-se ela própria numa ideologia. Em Paris,
Londres (com Blair), Berlim, Lisboa ou Madrid, a Europa era um
programa político que o centro-esquerda e o centro-direita
partilhavam. Durou pouco, como durou pouco o anunciado fim da
História.
A queda das Torres
Gémeas e a queda do Lehman Brothers vieram pôr tudo em questão. A
globalização revelou-se mais útil para as potências emergentes do
que para as potências estabelecidas. O unilateralismo americano
dividiu os aliados europeus. A crise financeira fragmentou a união
monetária, abrindo as portas à crise da dívida. A Alemanha viu
nisso uma possibilidade de recriar o euro à sua imagem e semelhança,
ignorando as suas consequências politicas. Hoje, os egoísmos
nacionais dominam a política europeia, como a crise dos refugiados
(mais ainda do que a crise do euro) o prova todos os dias. As emoções
estão a vencer a razão e o nacionalismo, mesmo que ainda em forma
mais ou menos benigna, envenena de novo a integração europeia. Não
é um problema de Cameron, apesar de todos os seus erros. Racismo,
xenofobia, medo do outro, passaram a ser de novo moeda corrente. As
fronteiras reerguem-se e os muros também. Esta é a Europa que temos
hoje, da qual só podemos sair se a razão política voltar a dominar
as pulsões nacionais.
3.Olhando para a
campanha de Cameron em favor do sim à Europa, até se poderia dizer
que o líder britânico ama mais a Europa do que se poderia esperar.
Finalmente, as verdadeiras razões que justificam ficar dentro foram
assumidas com total clareza, substituindo a imigração ou a
“soberania” ou os arranjos técnicos que negociou com os seus
pares. Cameron já disse que a influência britânica no mundo seria
menor, que a segurança do seu país e o combate ao terrorismo
ficariam prejudicados, que a economia britânica perderia milhares de
empregos e o acesso ao Mercado Único teria de ser negociado numa
posição de fraqueza. A ele, juntou-se um vasto coro de adeptos,
desde os chefes militares aos grandes empresários. Tudo isto devia
ter dito antes da negociação em Bruxelas. No dia 23 de Junho
saberemos se foi demasiado tarde. Os seus parceiros europeus não
quiseram esticar a corda. Não há tripés de duas pernas. O
triângulo entre Paris, Londres e Berlim é fundamental para a
capacidade europeia de influenciar o mundo e para a coabitação
entre visões distintas sobre o que deve ser a Europa que são
necessárias.
4.Hoje, a crise dos
refugiados tornou-se a prova de vida da integração europeia. O
Monde escrevia a toda a largura da sua primeira página: “Refugiados:
a Europa desintegra-se”. A cimeira europeia para encontrar uma
solução, marcada para o dia 7 de Março, pode ser o limite a partir
do qual já não haverá solução para preservar Schengen. Os rostos
das crianças que choram de medo junto a mais um arame farpado já
não são suportáveis. A destruição da Síria atinge uma dimensão
diabólica. A Europa e os Estados Unidos parecem totalmente
impotentes perante esta catástrofe humana. Em Shangai, os ministros
das Finanças do G20, para além de avisarem para as repercussões
económicas globais de uma saída do Reino Unido, parecem repetir o
guião do início da crise financeira de 2008, defendendo a
utilização de todos os meios ao alcance dos Governos para intervir
nos mercados, para evitar nova descida aos infernos. A Alemanha
opõe-se. Os analistas admitem que esta nova crise pode não ser tão
má como a de 2008 porque há novos instrumentos para a conter.
Enquanto tudo isto acontece, Bruxelas dorme sobre uma Europa de outro
tempo, enquanto a actual se desmorona.
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