OPINIÃO
Sinais de tempestade na Europa
TERESA DE SOUSA
19/10/2014 - 06:05
São muitos os sinais de que a Europa tem de funcionar de outra maneira. O
que já não se esperava era que, de repente, a crise do euro pudesse estar de
regresso.
1. Em finais dos
anos 1990 Bill Clinton resolveu lançar um grupo de reflexão que reunisse os
governos de centro-esquerda europeus e mais algum de outras paragens para
debater uma agenda para a “governança mundial”. Tony Blair, António Guterres ou
Gerhard Schroeder mas também Fernando Henrique Cardoso faziam parte do grupo
que se chamou a si próprio “Progressive Governance”.
A globalização
acelerava, mesmo que ainda fosse vista como uma vantagem ocidental. O tempo era
ainda o da vitória das democracias na Guerra-Fria, que abriria as portas ao
presságio de Fukuyama. O objectivo era
definir uma agenda política que incluísse os grandes desafios que o mundo só
poderia enfrentar em conjunto. O risco de pandemias era um dos pontos, assim
como o combate ao “digital divide”, à pobreza e às alterações climáticas.
Entretanto, o
mundo mudou com o 11 de Setembro e a “guerra ao terror” americana. A
globalização económica traduziu-se na emergência de novas grandes potências,
nem todas amigas do Ocidente. A crise financeira abalou profundamente as
economias ricas tirando o brilho ao seu modelo. A Europa entrou na mais grave
crise da sua vida, da qual ainda não se libertou. Obama acreditou que era
preciso outra forma de liderar o mundo e encontrou imensas dificuldades. Os efeitos
da crise económica e a crescente desordem internacional deixaram para trás a
agenda de Clinton.
Quando a epidemia
do ébola se manifestou em alguns países da África Ocidental sem qualquer
capacidade de enfrentá-la, as democracias prestaram-lhe muito pouco atenção.
Estavam a braços com um outro vírus terrorista que ameaçava fazer desabar o
Iraque e alterar o mapa político do Médio Oriente. Europeus e americanos
fizeram aquilo que hoje têm tendência para fazer: não é nada connosco, é apenas
mais um problema deles. Só acordaram quando alguns casos de ébola lhes entraram
pela casa dentro e constataram que não estavam sequer preparados para
resolvê-los. O que se devia ter feito, hoje já toda a gente sabe: combater o
ébola na sua origem com os meios necessários. Os EUA foram os primeiros a
reagir, recorrendo a meios militares para actuarem no terreno com a sua
eficácia habitual. A Europa só agora se propõem reagir mas ainda não se sabe
bem como. Será tarde demais? Ainda ninguém sabe. Mas o que se sabe já é que o
ébola está a espalhar o mesmo tipo de medo e de desconfiança que o terrorismo
desencadeou na década passada, com os atentados em Londres e em Madrid, depois
das Torres Gémeas. E com os mesmos sintomas: a histeria contra os outros, as
medidas drásticas para fechar as fronteiras. Na Europa é um medo que se junta
ao outro, contra os imigrantes. Nos EUA, é cada vez mais difícil a Obama
explicar que a solução não se resolve fechando fronteiras mas combatendo o
vírus no local do seu nascimento. Em 2001, foi a identificação do terrorismo
com os cidadãos de origem árabe. Agora a desconfiança ameaça quem tem origem
africana, alimentando ainda mais um sentimento de xenofobia que, aqui como do
outro lado do Atlântico, está a engrossar os partidos populistas e nacionalistas
de todos os matizes. Há quem defenda o isolamento desses países africanos, onde
a falta de estruturas e de meios levam a cenários de uma violência e de uma
tristeza infinitas, cortando as ligações aéreas ou quaisquer outras. O medo
junta-se ao outro medo da imigração criando um caldo de cultura que apenas pode
levar ao desastre. E o que se vê, mesmo em países tão abertos ao mundo como o
Reino Unido, é acedência crescente dos líderes democráticos às bandeiras
xenófobas dos nacionalistas. Cameron acha que se gritar mais alto do que Farage
sobre a imigração ou sobre a Europa terá alguma coisa a ganhar. Pura ilusão.
2. São muitos os
sinais de que a Europa tem de funcionar de outra maneira. O que já não se
esperava era que, de repente, a crise do euro pudesse estar de regresso,
traduzindo-se numa convulsão inesperada dos mercados, que fez cair as bolsas e
voltar a disparar os juros da dívida pública dos países do Sul. Porquê? Não há
uma só razão nem um só culpado. Mas há um encadeamento de factores que conduziram
a esta nova vaga de desconfiança. O primeiro dos quais é, com certeza, a
perspectiva “japonesa” que começa a ser o mais provável destino europeu, se
nada, entretanto, mudar. A nova e patente desunião europeia sobre como lidar
com a crise do euro terá dado também o seu contributo. Quando Merkel veio dizer
na quinta-feira que não haveria a mínima alteração à estratégia da austeridade
destinada a fazer cumprir o PEC e o novo Tratado Orçamental, não era apenas a
Itália e a França que as suas palavras visavam. Na mira de Berlim estão também
as duas instituições fundamentais da União: o BCE e a Comissão. O primeiro
porque as medidas não-convencionais para combater a deflação e estimular a
economia anunciadas por Mario Draghi não são bem vistas em Berlim. Vale a pena
lembrar que o presidente do BCE está a ser ouvido no Tribunal do Luxemburgo na
sequência de uma acção do Tribunal de Karlsruhe sobre a legalidade da sua
política monetária face aos tratados. Só depois o tribunal alemão se
pronunciará. Por seu lado, Jean-Claude Juncker, com a sua hábil engenharia para
constituir uma Comissão mais política e mais equilibrada, tem insistido na
necessidade de se carregar no acelerador no crescimento. E já nem vale fazer o
papel de cãozinho de Pavlov, debitando automaticamente os argumentos da
estratégia alemão, porque nem Manuel Valls, nem Matteo Renzi podem ser
descartados como os eternos esbanjadores do Sul. O governo francês está a
defender reformas que seriam impensáveis há pouco tempo e ainda não cedeu à pressão
da esquerda ou da rua. Renzi não tem propriamente um problema do défice, que
está abaixo dos três por cento, mas tem um problema da dívida e sobretudo da
competitividade da economia italiana. As iniciativas de ambos devem ser
analisadas nas suas circunstâncias e não pura e simplesmente descartadas por
meia dúzia de ideias-feitas que a Comissão está habituada a debitar.
Outra razão
invocada pela imprensa europeia e norte-americana para este surto de crise tem
a ver com o dubitativo resultado dos testes de stress que o BCE, na sua
qualidade de novo supervisor, levou a cabo nos bancos europeus e se prepara
para divulgar em breve. O New York Times lembrava na sexta-feira que, em 2011,
ainda a cargo dos supervisores nacionais, a fiscalização dos bancos foi uma
mera encenação para dizer que estava tudo bem. O que está hoje a fazer o BCE
foi aquilo que os EUA trataram de fazer logo em 2009, separando o trigo do joio
e ajudando ao relançamento da economia num clima de maior confiança. (A
propósito, vale a pena lembrar que o défice americano tem vindo sempre a descer
e está hoje nos 2,8 por cento, em parte pela contenção das despesas em parte
pelo crescimento da economia). O FMI alertou que, provavelmente, apenas 30 por
cento dos bancos da zona euro estão em condições e que os testes de stress
podem revelar algumas surpresas desagradáveis (em contrapartida, 80 por cento
dos bancos americanos estão de boa saúde).
Os mercados também estarão a antecipar estes resultados menos favoráveis
sobre o sistema financeiro europeu. Do mesmo modo, Itália, Espanha, Grécia,
Eslovénia e Eslováquia já estão com crescimento negativo dos preços. Seria
loucura ficar de braços cruzados.
Mas, desta vez,
uma coisa é certa: bem ou mal, a chanceler já não está em condições de ditar a
sua receita e esperar ser obedecida. Alguém escreveu recentemente que Merkel
apenas mudaria quando batesse com a cabeça no muro. Espera-se que isso aconteça
o mais depressa possível. A prova dos factos, desta vez, não está a seu favor.
Culpa dela? Culpa dos outros? Pouco interessa. O caminho não está a levar aos
resultados previstos e é boa prática tentar perceber porquê e alterar o
itinerário em função disso.
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