Portugal está à venda!
O caso PT é o epílogo de uma longa história de privatizações, gestão
deficiente, ganância e alienações ao desbarato. A crise e a falta de liquidez
do País fazem o resto. Ninguém está inocente, nem o Estado nem os privados.
Veja um filme do qual não conseguirá sair
Filipe Luís,
Francisco Galope, Inês Rapazote e Sara Rodrigues (textos) e André Kano
(ilustração) - Artigo publicado na VISÃO 1128, de 16 de outubro
10:36 Quarta
feira, 22 de Outubro de 2014 / http://visao.sapo.pt/portugal-esta-a-venda=f799099?utm_content=2014-10-22&utm_campaign=newsletter&utm_source=newsletter&utm_medium=mail
A vida da PT
(Portugal Telecom) dava um filme. Em 1999, data de entrada do "gestor
modelo" Zeinal Bava na empresa, ela valia 11 380 milhões de euros. No ano
seguinte, processa-se a privatização e o Estado fica com 500 ações douradas (de
que abriria mão, com a vinda da troika, em 2011). Essa golden share viria a ser
importante para travar a OPA do Grupo Sonae em 2007, com o argumento do risco
de posterior venda a estrangeiros... Começa a aposta no Brasil e, em 2004, a empresa atinge o
seu zénite, com um valor em bolsa de cerca de 11 400 milhões de euros. Foi há
dez anos. Hoje, valerá menos de 10 mil milhões. Desvalorizou-?-se, numa década,
o equivalente a uma verba superior ao que o Estado paga, por ano, em juros da
dívida pública. Ou, se quisermos estabelecer outra comparação, a perda de valor
da PT ultrapassa o custo, por ano, do Serviço Nacional de Saúde. Mais, enfim,
do que o total do défice das contas públicas previsto para 2014. Como foi
possível?
O pesadelo
aconteceu devido ao facto de Portugal estar a ser vendido a retalho e a preço
de saldo. A história da PT é o epílogo de um longo período de depauperamento da
economia nacional. A PT era uma empresa de vanguarda, um exemplo de inovação,
agressividade comercial e internacionalização, que a ganância de alguns
acionistas e um ato de gestão terceiro-mundista - a inex-?plicável exposição ao
Grupo GES - deitou abaixo. Atónitos, os portugueses constatam que, afinal, a
empresa terá sido gerida, nos últimos anos, de lápis na orelha. Mesmo assim,
Zeinal Bava, depois de ter "entregue" a PT à Oi, sai do grupo
brasileiro com uma indemnização de (valores não desmentidos) 5,4 milhões de
euros.
Porque deixámos
que quase todos os setores ditos estratégicos (o que quer que isso seja) caíssem
em mãos estrangeiras? ?A responsabilidade deve ser assacada ao Estado - e aos
governos PS, PSD e CDS - ou, também, aos privados? Quem não se lembra da venda
do Banco Totta & Açores ao Grupo Champalimaud e do seu desaparecimento nas
goelas do gigante espanhol Santander? Onde param as boas intenções do grupo de
empresários que, patrioticamente, produziram documentos a jurar velar pela
manutenção dos centros de decisão em Portugal? Pois não foram eles os primeiros
a vender tudo e mais alguma coisa, pela melhor oferta?
Para João
Cravinho, antes de haver setores estratégicos "teria de haver
estratégia", coisa que, na opinião do ex-ministro socialista dos governos
Guterres, "não existe, nem no setor público nem no setor privado". Mais,
o alheamento das autoridades deve-se à teoria de que "não faz sentido ter
uma estratégia", quando tudo se resume a questões "que se resolvem no
e pelo mercado, deixando que as leis da concorrência funcionem".
E, no entanto, a
lei dos setores estratégicos, publicada a 15 de setembro, até parece
salvaguardar o essencial, talvez tarde de mais: assegurar os "ativos
estratégicos essenciais para garantir a defesa e segurança nacionais e
segurança do aprovisionamento do País em serviços fundamentais para o interesse
nacional, nas áreas da energias, dos transportes e comunicações, enquanto
interesses fundamentais de segurança pública". Mas basta pensar na
privatização, ou, para sermos mais justos, na concessão a privados da
exploração das Águas de Portugal, para concluir que só o ar que se respira não
está privatizado porque ainda não é possível ser consumido engarrafado.
Cimentos, banca,
estaleiros navais, siderurgia ou até empresas que nos habituámos a ver
exportadoras, como a Sorefame, ou desapareceram, ou perderam importância ou
caíram em mãos estrangeiras. Algumas, como a CIMPOR, mantêm o centro de decisão
em Portugal (apesar de ser detida, em 100%, por capitais brasileiros). Outras
nem isso. Opções ideológicas à parte, o Estado não pode ser culpado de tudo nem
tem de ser empresário. O raquitismo das empresas nacionais e a necessidade de
liquidez do País, quer no setor público quer no privado, é que representam as
verdadeiras causas da "venda de Portugal" ao desbarato. A tudo isto
não foi alheio o aliciamento de governos incautos e sedentos de votos pelo
dinheiro fácil do crédito internacional, aliado à estratégia norte-europeia de
desmantelamento do setor produtivo dos países com economias menos pujantes. O
endividamento subsequente levaria à venda baratinha do que era apetecível
nesses países (um cenário que também vimos na Grécia) a grandes grupos
internacionais. Parece um plano...
O que é curioso é
que os compradores nem sempre vêm de onde se espera. Por exemplo, os 4,7 mil
milhões de euros das privatizações de EDP (2 690 milhões), da REN (387 milhões)
e da Caixa Seguros ?(1 632 milhões) provêm de grupos chineses, respetivamente a
Three Gorges, a State Grid (agora também interessada na EFACEC) e a Fosun, que
se tornaram, assim, os principais animadores das privatizações portuguesas. Por
ironia, estas empresas são todas imensas golden shares do Estado chinês, que
também aprecia o funcionamento do mercado - mas à sua maneira...
Mas voltemos ao
velho argumento: deixar que o mercado e a concorrência funcionem. De acordo.
Mas, para o economista Ricardo Cabral, professor da Universidade da Madeira
"a perspetiva de um governo não deve ser a de um mero acionista". Dado
o seu peso, o Estado tem de agir em prol do "interesse público". E de
acordo com o investigador, os governos devem ter em conta também os outros
impactos na globalidade da economia.
Mas não tem sido
isso que tem acontecido, já que as avaliações são feitas a olhar para o
"valor acionista" das empresas, destaca Cabral, criticando alguns
aspetos dos programas de privatização dos últimos anos. "Não parece que
tenha sido um grande sucesso", afirma. "Privatizámos quase tudo, nas
últimas décadas e não ganhámos muito com as privatizações no seu todo. As
receitas das privatizações não têm contribuído para reduzir a dívida pública,
que aumentou. E a agravar isso, temos, neste momento, menos instrumentos para a
gestão económica do País", com a maior parte das empresas privatizadas a
terem ficado nas mãos de não residentes.
Também se tem
falado, com preocupação, de eventuais aumentos pós-privatização dos preçários
dessas empresas. Sobretudo daquelas que possam ter impactos importantes na
competitividade de setores estratégicos da Economia, como o turismo e os
exportadores. Disso é emblemático o caso da ANA - Aeroportos de Portugal, cuja
operação foi concessionada, há dois anos, aos franceses da Vinci, e cujos
aumentos sucessivos das taxas aeroportuárias têm suscitado polémica. Desde que
foi privatizada, a ANA já aumentou quatro vezes as suas taxas e tenciona
continuar a fazê-lo: até 2022 as taxas deverão sofrer incrementos de mais de 20
por cento. O presidente da Ryan Air, Michael O'Leary, já afirmou que o modelo
de taxação praticado pela operadora é caraterístico de "regimes
comunistas". Os responsáveis da ANA deverão ir esta quinta-?-feira, 15, ao
Parlamento prestar esclarecimentos sobre os polémicos aumentos.
Para Francisco
Louçã, "Portugal está transformado em sucata", mas, mesmo assim, e
recordando que o crédito às empresas caiu 40% em agosto, "o Estado devia
ter poder de regulação, mesmo depois do 'assucatamento'". A concessão de
crédito depende da banca mas não tem sido possível usar esta ferramenta para
bombear sangue para a economia nacional. Até mesmo o banco público, a Caixa
Geral de Depósitos, por ter o menino do BPN nos braços, perdeu, em parte, essa
capacidade.
Quanto vale a
TAP?
João Cravinho,
que foi ministro do Equipamento, adverte: "Quando a Mota Engil 'soltar' a
Martifer, esta vai cair nos braços de alguém..." E volta a defender a dama
do malogrado novo aeroporto: "A TAP vale o que quiserem dar. Mataram a TAP
no dia em que descartaram a hipótese de construir um aeroporto capaz de receber
mais 20 ou 30 voos."
Se um novo
aeroporto era um preço um bocado elevado a pagar pela valorização da companhia
aérea nacional, esta bem pode ser, no entanto, o exemplo de uma empresa com um
preço impossível de medir em euros. A TAP é, mal comparado, como o hino ou a
bandeira, um símbolo nacional, junto das comunidades e da lusofonia. A ponte aérea dos retornados, em 1975, nunca teria sido possível se o Estado não
tivesse à sua disposição este instrumento. Essa componente de defesa nacional
mantém-se: quem valeria aos 200 mil nacionais em Angola, se houvesse
necessidade de uma evacuação rápida?
Mas o fator
psicológico, simbólico ou de soberania não é o único a contabilizar, nestas
contas imensuráveis. Nas contas de Ricardo Cabral, a TAP gera um valor de
entrada anual de divisas em torno dos 27,5 mil milhões de euros - 13% da dívida
externa líquida. Cerca de três quartos da operação é vendida no estrangeiro. Com
o País ainda à beira da bancarrota, com um grave défice da balança de pagamentos
e ainda sem a ameaça de saída do euro dissipada, "as divisas geradas
direta e indiretamente pela TAP são preciosas". ?À luz destes argumentos,
a serem pertinentes, a TAP já não seria uma joia da coroa ou um anel: seria o
próprio dedo indicador.
Com quatro
interessados (um consórcio entre o português Miguel Pais do Amaral, Frank
Lorenzo, ex-proprietário da Continental Airlines, e o grupo Barraqueiro, os
espanhóis da Globalia, os brasileiros da Azul e Gérman Efromovich), o processo
não avança. Uma das razões será a falta de consenso no seio do próprio Governo,
quanto à participação a vender e em relação ao timing da respetiva alienação. E
esta história, a acabar como a da PT, também dava um filme.
Tirem-nos dele.
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