BES
A recta final
CRISTINA FERREIRA
/ PÚBLICO
Uma análise aos últimos oitos meses de vida do Grupo Espírito Santo revela
que o banco era na prática o gestor de tesouraria da Portugal Telecom. O
colapso do GES não poderia, por isso, deixar ilesa a PT. E um banqueiro caiu em
desgraça. Esta é a segunda parte da história do fim de um império.
As grandes crises
desenvolvem-se, muitas vezes, em plena luz do dia, mas há sempre quem não dê
por elas. Foi o que aconteceu com o Grupo Espírito Santo (GES), que, depois de
três anos de progressiva degradação, permanentemente disfarçada, e
comportamentos duvidosos, faliu num mês. Para se ser mais preciso: o universo
empresarial Espírito Santo tinha excesso de dívida acumulada, que a crise
económica profunda e longa acentuou, e não resistiu; Ricardo Salgado,
presidente do grupo, baseava o seu poder num fôlego financeiro que afinal não
existia e o mito caiu. Há ainda a Portugal Telecom com uma relação promíscua
com o BES, que actuava como gestor de tesouraria da operadora, o que os
episódios aqui relatados provam.
A história do
poder que o GES assumiu durante décadas conta-se até Dezembro de 2013. Os oitos
meses seguintes, que culminaram na detenção para interrogatório de Ricardo
Salgado, líder do clã durante duas décadas, são o epílogo de um grupo com 149
anos. E foi tão fácil pôr-lhe uma pedra em cima.
Como a Revista 2
adiantou na semana passada, o que se passou na esfera Espírito Santo foi um
processo com múltiplas ocorrências públicas, polémicas judiciais cruzadas, que tornam
impossível às autoridades, Governo, Banco de Portugal, Comissão de Mercado de
Valores Mobiliários (CMVM) dizer que não sabiam de nada. A hesitação em atacar
o problema de frente explica-se, talvez, pelo medo de contaminar o sistema
financeiro português, gerando uma crise de confiança e de liquidez que acabasse
em falências. Ou, então, pelo receio de intervir num banco liderado por um
homem poderoso.
Final de 2013.
“Somos os herdeiros de uma família que do nada, a seguir à revolução,
reconstruiu um grupo com mais de 145 anos sem nunca pedir ajuda ao Estado.”
Durante anos, este foi o discurso-marca do Grupo Espírito Santo e servia de
alavanca a uma outra declaração de Ricardo Salgado: “O BES não necessita de
recorrer à linha de recapitalização da troika.” No último Natal, a ideia de uma
falsa prosperidade é recuperada por Isabel Vaz, da Espírito Santo Saúde — ES
Saúde, já este mês vendida à chinesa Fosun, na sua mensagem aos colaboradores,
elogiando a solidez do accionista Rioforte (a holding não financeira do GES —
com a ES Saúde, Comporta, ES Viagens, Hotéis Tivoli, imóveis). A verdadeira
situação é outra: o grupo mal conseguia gerar rendimentos para pagar os juros
da dívida. E, em cima, ainda punha mais dívida.
A estrutura
piramidal do grupo, com um esquema intrincado de holdings e sub-holdings,
servia de biombo aos problemas que existiam no universo Espírito Santo há
vários anos — à cabeça estava a ES Control, que juntava os cinco ramos da
“família” (Salgado, Ricciardi, Moniz Galvão, Raimul e Mosqueira do Amaral). Por
sua vez, a holding-mãe tinha 51% da ESI, que dominava a Rioforte (área não
financeira) e possuía 49% da ESFG (BES e Tranquilidade).
Janeiro
Início de 2014. O
Banco de Portugal (BdP) entra em 2014 tendo na linha da frente das suas preocupações
o universo empresarial da família Espírito Santo. Carlos Costa dispõe, agora,
de muita informação. As inspecções às holdings financeiras vieram expor as suas
entranhas: a 30 de Setembro de 2013, os passivos da ESI já iam em 5700 milhões
de euros. E no BES Angola tinham sido levantados em cash 500 milhões de euros,
havendo 3 mil milhões de euros de créditos sem beneficiário. A tendência é,
portanto, para o “buraco” se aprofundar.
14 de Janeiro. A
correspondência entre o BdP e Ricardo Salgado, presidente da ESFG (entidade
supervisionada pelo BdP), intensifica-se nas primeiras semanas de 2014, com
muitas orientações e pedidos de esclarecimento. As respostas do grupo são
evasivas. Numa das cartas, o vice-governador Pedro Duarte Neves solicita que o
banqueiro lhe envie um plano detalhado de saneamento e correcção dos
desequilíbrios para “assegurar uma gestão sã e prudente” que preserve o banco
“do impacto da exposição à ESI”, que em Janeiro de 2014 já estava falida. Há,
neste momento, 3 mil milhões de euros de títulos de dívida (que funcionam como
financiamento) da holding nas carteiras dos clientes do BES. No grupo, está a
Portugal Telecom (PT), prestes a tornar-se um escravo.
Segunda quinzena
de Janeiro. A PT aspira a ser um protagonista da criação de um grande grupo
luso-brasileiro. O que remete para relações não recomendáveis entre gestores de
empresas relacionadas que não se devem tornar promíscuas.
Depois de, em
Outubro de 2013, Ricardo Salgado ter sido informado de que a PT não ia renovar
a aplicação de 750 milhões de euros na ESI, pediu ao administrador finaneiro
(CFO) da operadora para ir ter com ele ao 15.º andar do n.º 195 da Avenida da
Liberdade, em Lisboa, a sede do BES. O banqueiro recebe Luís Pacheco de Melo na
antecâmara da sala da comissão executiva do BES (um espaço comum onde os
gestores se sentam às secretárias).
Ricardo Salgado
conhece bem o CFO da PT, ex-BESI (banco de investimento do BES), e
apresenta-lhe um “esquisso” da reestruturação em curso no GES que visa tornar a
Rioforte uma empresa apetecível para o mercado de dívida. Dirige-se a ele no
tom habitual, suave. Contrariando a anterior decisão da operadora, de
desmobilizar o investimento na ESI (uma aplicação de curto prazo), Salgado
procura agora persuadir Pacheco de Melo a prolongar o empréstimo de 750 milhões
à holding e sugere mesmo que prepare a migração para a Rioforte. O presidente
do BES faz outro "pedido": que a PT reforce o apoio à Rioforte até
mil milhões. Mas o CFO explica que não tem essa disponibilidade e nota que fará
“uma única aplicação, com maturidade a 15 de Março de 2014” , altura em que terá de
ter a verba livre para concretizar “o previsto aumento de capital da Oi”.
Este episódio,
assim como os que a seguir vão ser relatados (alguns com base em relatórios a
que a Revista 2 teve acesso), faz crer que Salgado não se fica por dar
orientações estratégicas à PT (accionista do banco, com 2%). Na qualidade de
representante do BES (com apenas 10% da PT), o banqueiro gere a tesouraria (o
dinheiro que a empresa tem disponível para usar) da operadora de
telecomunicações. E surge a dar instruções sobre como e onde os primeiros
responsáveis da PT, os presidentes e o CFO, devem investir os seus fundos.
No quadro das
investigações aprofundadas, entretanto, abertas pela CMVM às relações BES-PT,
Carlos Tavares anda no rasto de uma reunião (informal ou não) que terá ocorrido
ainda em Janeiro, mesmo antes da última ida de Pacheco de Melo a despacho ao
banco, e que pode ter juntado os quartéis-generais das duas empresas (presidentes
e CFO). E onde Salgado terá requerido à gestão da PT que “protegesse” o GES num
momento particularmente difícil. Saber se o encontro-mistério se realizou ou
não revela-se para a CMVM uma missão complicada, pois ninguém o assume, mas
todos falam nele. Caso se confirme, prova que a gestão da PT estava a par das
dificuldades do GES e deveria ter acautelado os interesses da operadora, não
arriscando verbas em produtos tóxicos ou, então, determinando uma redução da
exposição a dívida emitida pelas holdings. A CMVM desconfia de irregularidades
muito graves, nomeadamente, que os gestores da PT (Bava, Granadeiro e Pacheco
de Melo) possam ter “omitido deliberadamente” informação relevante ao mercado.
27 de Janeiro.
Quando se tem poder a mais, não cumprir as obrigações pode ser uma grande
tentação. “É o homem que esteve à frente das nossas contas este tempo todo e é
claro que sente um peso psicológico brutal em cima dele. Temos de o proteger”,
sugere Ricardo Salgado, referindo-se a Francisco Machado da Cruz, o
contabilista do grupo que ajudou a ocultar 1300 milhões de euros das contas da
ESI. Segundo o relato do jornal i, Salgado observou ainda: “O nosso Francisco
recuperou 30 ou 40 milhões de dólares em indemnizações e aquilo [o Espírito
Santo Plaza, em Miami] está a ser muito bem gerido”, defendeu o presidente do
BES, também gestor da ESI. O mesmo contabilista virá dizer que Salgado sabia
desde 2008 que havia manipulação das contas. Em breve, o banqueiro irá
fazer-lhe críticas públicas. Machado da Cruz partiu já este ano para um retiro
silencioso no Brasil, depois de receber uma choruda “compensação”.
O registo audível
dos diálogos no conselho superior, onde estão representados os cinco ramos do
núcleo duro do GES, revela um nível grande de informalidade. “As conversas eram
até ao final de 2013 gravadas pelo José Castella [o secretário do conselho
superior], que depois as transcrevia para o papel e Salgado filtrava antes de
assumirem forma de acta”, evocou há uns meses José Maria Ricciardi, o presidente
do BESI, que, no princípio deste ano, deixou de frequentar com assiduidade os
encontros na Rua de São Bernardo. Mas, quando vai, Ricciardi passa a escrito as
suas declarações. “Envio-as a seguir para o José Castella, assinadas e fico com
a cópia.” O que mostra o grau de desconfiança que se instalou entre os primos
Espírito Santo.
31 de Janeiro. A
auditora KPMG entrega ao BdP o relatório preliminar sobre as contas da ESI, com
referência a 30 de Setembro de 2013, e conclui que a situação da empresa estava
negativa em 2400 milhões de euros. A auditora salienta que ainda não obteve
dados detalhados sobre as sociedades suíças Eurofin, que o regulador admite
terem funcionado, ao longo de anos, como “sacos azuis” usados para o grupo e o
banco ocultarem dívida e prejuízos. Nenhuma desta informação é passada para o
público.
Fevereiro
6 de Fevereiro.
Para responder às recomendações de Carlos Costa de maior transparência na
cascata accionista do grupo, Salgado anuncia que vai aligeirar a estrutura e
clarificar os fluxos de financiamento entre holdings e sub-holdings. O que na
prática visava liquidar a ESI (tóxica) e transferir progressivamente as suas
emissões de papel comercial (dívida) para a Rioforte. A medida acabará por
afundar a holding não financeira, que tinha activos sólidos.
7 de Fevereiro. A
ES Saúde confirma a abertura de 49% do capital em bolsa. O encaixe de 120
milhões é uma gota no oceano de problemas de Salgado, mas serve para passar a
mensagem às autoridades de que o saneamento empresarial está em curso.
10 de Fevereiro.
O BES sempre teve em relação à PT comportamento de abutre. Na sequência da
instrução do accionista, a operadora de telecomunicações acaba por arranjar
mais 140 milhões de euros que lhe permite reforçar o empréstimo ao GES. A
partir desta data, a exposição da PT ao GES concentra-se na Rioforte e
totaliza, não os mil milhões pedidos por Salgado, mas 897 milhões. Há, fora
disso, outro tanto em depósitos aplicados no banco e filiais estrangeiras.
12 de Fevereiro.
Em São Paulo, é Carnaval. Do outro lado do Atlântico, o presidente do Espírito
Santo Investment Bank Brasil (filial do BES), Ricardo Abecassis Espírito Santo,
está prestes a colocar-se no centro da polémica ao assumir-se como candidato à
sucessão do chefe: “Estou sempre disponível para os desafios que se me
apresentem, se os accionistas assim o quiserem, mas é um processo que se
conversa internamente no grupo e não há pressão, nem data.” Ao ser inquirido
sobre se o BES vai aumentar o capital, Abecassis nem hesita: “Não há necessidade.”
Estava, evidentemente, longe da realidade que vai chegar a galope e colocar à
vista de todos os graves problemas da esfera familiar.
13 de Fevereiro.
17h30. Contra todas as expectativas, Salgado aparece como “o patinho feio” do
sector bancário, a divulgar prejuízos anuais de 517,6 milhões de euros, o que
contrasta com lucros de 96,1 milhões em 2012. As imparidades de crédito (perdas
potenciais) cifram-se em 1422,8 milhões de euros. O quadro é negro, portanto.
Ainda assim, na
sala do conselho do BES, onde se divulgam as contas de 2013, o clima,
habitualmente contido, é de rara descontracção. Quando lhe perguntam se já
falou com o candidato Abecassis, Salgado responde em tom de conversa de café:
“Ainda não, pois temos tido muito que fazer, mas o dr. Ricardo [Abecassis],
certamente, aparecerá por aí um destes dias.” Já sobre a declaração do primo
“brasileiro” que exclui a possibilidade de o BES recorrer de novo aos
accionistas, observa: “O dr. Ricardo Abecassis é um excelente banqueiro mas, no
Brasil, estamos em período de férias, entre o Natal e o Carnaval, e ele anda um
bocadinho distraído.” “O capital [do BES] é robusto, mas não podemos cantar
glória e não posso dizer que não vamos ter um aumento de capital pela frente”
em 2014. Injecção de fundos estatais? “Não é hipótese, será sempre por recurso
a investidores internacionais.” Perante a insistência dos jornalistas, o chefe
do clã sai-se com nova frase que, naquele dia, faz o título da notícia do
PÚBLICO: “Desde aqui lhe envio [a Abecassis] um beijinho”. A esta distância dá
para ver ali um sinal de fim de festa.
Depois de ele
próprio ter recorrido, em 2011 e 2012, a três planos de amnistia fiscal dirigida
a quem detinha património fora de Portugal, Salgado (que pagara de imposto 183
mil euros em vez de 4,3 milhões de euros) termina a conferência de imprensa a
“elogiar as Finanças e o Governo pela amnistia fiscal que ajuda a reduzir o
défice estatal. O BES incentivou os clientes” incumpridores a regularizarem as
dívidas ao fisco e à Segurança Social.
14 de Fevereiro.
O vice-governador do BdP, Duarte Neves, está de novo a escrever ao presidente
do BES, desta vez para frisar a necessidade de cumprir as suas determinações e
proteger a ESFG [a holding da família que concentra a posição no banco] do
impacto da exposição à ESI e de potenciais riscos na sua credibilidade.
Novamente está em causa a comercialização em larga escala, e aos balcões do
BES, de dívida das duas sociedades problemáticas: ESI e Rioforte.
17 de Fevereiro.
O GES segue as recomendações europeias e simplifica o sistema societário. Para
acompanhar a execução do plano de negócios da área não financeira, Salgado cria
uma estrutura de gestão interna com uma maioria de gestores independentes. Um
dos pivôs que serão chamados por Salgado para se envolverem no projecto de
reorganização do grupo é José Honório, ex-CEO da Portucel, e que Vítor Bento
também irá buscar para ser seu vice-presidente em Julho, quando substitui
Ricardo Salgado.
26 de Fevereiro.
O BdP tornara-se omnipresente no 15.º andar da sede do BES, onde caem pedidos de
informação e recomendações. Numa carta, com dez páginas, Duarte Neves dirige-se
ao banqueiro em termos fortes: “Não obstante a natureza da gravidade das
preocupações prudenciais que subjazem à determinação [do BdP] das medidas
correctivas”, a ESFG “limita-se” a apresentar “intenções e possibilidades”, sem
propostas “objectivas, detalhadas e calendarizadas”.
Para não haver
dúvidas, o vice-governador deixa um resumo exaustivo do historial de
iniciativas formais que desenvolveu junto de Salgado para que apresentasse um
plano credível de curto prazo para estabilizar o GES. O que este nunca fez. E
exige à ESFG que constitua uma almofada de 700 milhões para cobrir riscos
associados à ESI. Ainda, assim, o vice-governador termina com boa onda: “Os
melhores cumprimentos e a expressão de muita consideração.”
Perante o
incumprimento das orientações e o tom assertivo da carta enviada a Salgado, há
quem, no BdP, admita que dali resultasse uma acção mais intrusiva para afastar
o banqueiro do BES, pois “não só tínhamos dúvidas sobre a sua idoneidade, como
não sabíamos o que andava a fazer”. Carlos Costa parece, no entanto, fazer
cerimónia e evita entrar com a artilharia pesada na Avenida da Liberdade. Mas
toma, em todo o caso, uma decisão: ao fim de dez meses de José Maria Riciardi,
Ricardo Salgado e Morais Pires terem terminado o seu mandato de administradores
do BESI e de terem solicitado ao BdP que revalidasse os registos de idoneidade
(necessários para exercerem funções), o governador manda suspender o processo e
dispara com pedidos de explicações.
A partir dali, torna-se
evidente que Carlos Costa já não confia em Salgado. E a relação até aí
presencial restringe-se a contactos telefónicos. A ligação da comissão
executiva do BES ao BdP passa a ser feita, em especial, pelo administrador
executivo Joaquim Goes, com o pelouro do risco. E assim aconteceu até às
vésperas de o BES divulgar as últimas contas (a 30 de Julho), com prejuízos
históricos de 3400 milhões.
Março
25 de Março. As
preocupações do regulador sobre a solidez do capital do BES justificam nova
carta, agora para o discreto presidente não executivo, Alberto Alves de
Oliveira Pinto. Carlos Costa pede “medidas adicionais de capitalização” do
banco, de pelo menos 750 milhões, para assegurar a passagem nos testes europeus
de stress.
A troca de
correspondência entre supervisor e BES foi sempre sigilosa. Mas é a partir
desta fase que Carlos Costa surge publicamente com a retórica: o GES é o GES,
onde estão os riscos; o BES é o BES, o activo confiável. Num jantar com a
comunicação social, convocado em cima da hora, Salgado alinha na tese e remete
para a Rioforte, presidida por Manuel Fernando Espírito Santo, a origem dos
desequilíbrios. Só que a ESI e a Rioforte já tinham contaminado a base de
clientes da área financeira. Em paralelo, anuncia que a ESFG vai criar uma
“almofada” de 700 milhões para fazer face a riscos de incumprimento das duas
sociedades problemáticas. E a provisão é constituída com a Tranquilidade
(liderada por Brito e Cunha) dada como garantia, o que foi aceite pelo BdP. Mas
o regulador vai acabar a constatar que fez mal, pois a Tranquilidade não valia os
700 milhões, apenas 200 milhões. Já depois do escândalo, o presidente do
Instituto de Seguros de Portugal veio dizer: “Se me tivessem perguntado, teria
dito que [a Tranquilidade] não valia 700 milhões.”
Naquele preciso
momento, já há depositantes do suíço Banque Privée (do BES), maioritariamente
da classe média alta, muito desconfiados. Pedem os resgates das suas aplicações
em dívida da ESI e da Rioforte, com o intuito de deslocarem os reembolsos para
contas em Portugal, e as ordens não se cumprem. “A seguir à crise de 2008,
assustei-me e transferi o dinheiro para a Suíça, no pressuposto de que estaria
protegido”, conta um dos lesados. O fundo de garantia de depósitos helvético (o
máximo que um depositante pode recuperar em caso de falência do banco) é de 80
mil euros, abaixo dos 100 mil nacionais, onde vigora ainda um sistema de
indemnização aos investidores (que percam as aplicações), mas que não existe na
Suíça.
Última semana de
Março. Os anos de prosperidade vão longe. E Salgado intensifica as relações
promíscuas com a PT. Com a aproximação da assembleia geral da PT para aprovar a
fusão com a Oi, o banqueiro fica ansioso, pois tem receio de perder o controlo
da gestão da tesouraria da operadora. Ora, as suas prioridades estão centradas
exclusivamente nos interesses do grupo familiar. E, assim, deixa novo aviso aos
responsáveis da operadora de telecomunicações: o BES não valida a concentração
se o estado-maior da PT Portugal e da PT SGPS, lideradas, respectivamente, por
Bava e Granadeiro, não mantiver o financiamento à Rioforte por mais um ano e o
aumentar para mil milhões.
O ambiente é,
agora, de cortar à faca, pois há uma decisão da PT de resgate dos 897 milhões
aplicados na Rioforte para os ter disponíveis em Abril. O presidente executivo
(CEO) Henrique Granadeiro chama, então, o responsável pela área financeira e
manda-o ir ao BES falar com Morais Pires [então CFO do banco], “resolver o
tema” e “contratar” nova operação. O CEO da PT não quer voltar a ouvir falar no
assunto. No caminho para a Avenida da Liberdade, Pacheco de Melo pode até ter
questionado: “Porquê fazer o que diz Salgado?”
26 de Março. Num
frente a frente com Morais Pires, o CFO da PT coloca reservas a renovar o
investimento na Rioforte para além do período previsto (o investimento deixa de
ser de curto prazo). Os dois protagonizam uma troca azeda de palavras. Nas
altas esferas do BES, o encontro dá ruído. Como Morais Pires se deixara
capturar pelos interesses do accionista GES, por acreditar que será o eleito da
família para substituir Salgado como timoneiro do clã, reduz a nada as
objecções de Pacheco de Melo.
Quando chega ao
seu gabinete, Pacheco de Melo revalida o investimento na Rioforte e estende o
prazo por mais três meses. O CFO podia ter dito que não, mas aceitou cumprir as
instruções de Granadeiro, que segue as de Salgado. Já Zeinal Bava procura
distanciar-se do imbrólglio, dizendo nada saber do que se passava com a
tesouraria da PT, pois estava na Oi (posição que defendeu então ao PÚBLICO).
Mas, se não sabia, devia saber, pois sendo em simultâneo CEO da Oi e da PT
Portugal tinha controlo sobre os executivos e, em especial, sobre o
departamento financeiro. E a aplicação inicial na ESI foi ordenada por ele. No
dia seguinte, os accionistas da PT aprovam a fusão com a Oi.
Abril
Início de Abril.
José Honório começa a aparecer nas reuniões do conselho superior do GES para
discutir a dívida das holdings (com um passivo de 6 mil milhões) e assegurar o
reembolso dos títulos emitidos pela ESI e pela Rioforte. Honório defende,
então, que como o GES é sistémico (a sua falência tem impacto na economia) deve
ser procurada uma solução que tenha o apoio do Estado através de linhas de
crédito de longo prazo.
14 de Abril. Numa
reunião do comité de acompanhamento da fusão PT-Oi (que inclui, entre outros,
Bava, Morais Pires e representantes e accionistas da Oi), o BES bate de novo o
pé para garantir que a PT se manterá como o seu porta-moedas. São os interesses
que protegem brasileiros e portugueses. O Expresso revelou, neste Verão, um
email trocado entre Salgado e accionistas da OI que alude a uma combinação de cavalheiros.
O episódio é este: no contexto das negociações para a fusão, um ano antes,
Salgado colocara objecções: a operação era politicamente delicada; gerava
grande desequilíbrio em desfavor da PT. Argumentos que escondiam a motivação:
salvaguardar o controlo da liquidez da operadora. Então, o comité de
acompanhamento estabeleceu um acordo tácito, não escrito, no sentido de usar a
nova entidade para encobrir dívida (1500 milhões) de Andrade Gutierrez e da La
Fonte, que tinham as suas posições na OI financiadas pelo BNDES, o banco
estatal brasileiro facilitador de negócios [que surge envolvido no caso
Mensalão].
A PT, já se sabe,
tornara-se ao longo de dez anos um mero instrumento para Salgado. Mas as
movimentações à volta daquela que chegou a ser a maior empresa portuguesa com
um valor de mercado de 11 mil milhões (esta semana estava abaixo de mil
milhões) estavam a acentuar-se de forma descontrolada.
“Salgado andava
assustado com a rapidez dos acontecimentos, preocupado e com a cabeça dispersa
pelas investigações do Ministério Público”, evoca um ex-colaborador. O
banqueiro está com medo do colapso. Mas para fora continua com o discurso
optimista e aura de poderoso, o que pode levar o Banco de Portugal a fazer
cerimónia e a não meter prego a fundo para o afastar da gestão. Carlos Costa
tem, talvez, receio de carregar no botão da bomba atómica (intervir no BES) e
desestabilizar o sistema no seu todo. E o Governo, a semanas da saída da
troika, também não queria injecção de fundos, como se verá mais à frente.
Entre um
supervisor titubeante e manter seguro o GES, a solução parece óbvia: salvar o
forte. E é assim que, nos meses seguintes, Salgado e Morais Pires, por seu
livre arbítrio, vão tentar resolver o imbróglio da área não financeira
familiar, desafiando as instruções do BdP para um “corte” entre o BES e o GES.
Salgado e José Manuel Espírito Santo assinam cartas de conforto de 270 milhões
para garantir que os empréstimos de empresas venezuelanas à ESI e à Rioforte em
caso de incumprimento são pagos pelo banco. Em paralelo, recorrem a um sistema
de triangulação de fundos para financiar às escondidas das autoridades as duas
holdings em 1500 milhões. Depois de tudo descoberto (em Julho), o BdP obrigou
ao registo das operações, o que contribuiu para a intervenção no BES.
Entretanto, na
Rua Alexandre Herculano, a escassos metros do BESI, a equipa do procurador
Rosário Teixeira continua a chocar um grande ovo. No cardápio dos
investigadores do Ministério Público, está um rol de dossiers interligados pelo
nome Espírito Santo: 140 depósitos no BES do tesoureiro do CDS
PP, Abel Pinheiro
(2004), Portucale (2005, concluído com absolvições), Operação Furacão (2005),
submarinos (2005), Monte Branco (2010) e venda da Escom (2011) — ver edição
anterior. A que se junta, agora, o pedido do BdP para que se investigue o BESA.
De cada “moita”
onde a equipa do procurador se mete, salta um coelho. Os “polícias”
especializam-se na construção de diagramas de conexões entre particulares,
sociedades e paraísos fiscais suspeitos. O que coloca outra questão: saber qual
a origem dos fundos suspeitos. O acesso (no Verão passado) às contas na Suíça
dos cinco membros do conselho superior do GES (Salgado, António Ricciardi, José
Manuel Espírito Santo, Manuel Fernando Espírito Santo e Mosqueira do Amaral),
que em 2004 receberam cinco milhões da comissão cobrada pela Escom (do GES)
pela venda ao Estado português de dois submarinos alemães (quando Portas era
ministro da Defesa e Durão Barroso primeiro-ministro), traz informação nova. E
pode possibilitar ir na peugada da origem de fundos transferidos para outras
sociedades no radar policial, com verbas associadas a regularizações fiscais ou
transacções ruinosas e suspeitas.
No meio de
numerosas especulações e teorias que se multiplicam em redor das averiguações
ao GES e aos seus gestores, um dos focos pode estar relacionado com o
desaparecimento de cerca de 15 milhões de euros, que se diz ser parte do sinal
pago em 2011 pela Newbrook pela compra da Escom. Ao vendedor, a ES
Resources/Rioforte, terão chegado apenas 52 milhões de euros. A Newbrook é de
Álvaro Sobrinho, ex-presidente do BESA, agora inimigo do banqueiro português,
sob averiguações das autoridades.
30 de Abril. A
primeira parte da fusão da PT com a Oi está concluída. Depois de receber da
Associação Nacional de Empresas de Tecnologia de Informação e Electrónicas o
prémio Carreira, o presidente da Oi está agora em Lisboa e convoca os quadros
superiores da PT para o anfiteatro da sede, no Edifício de Picoas. Quem esteve
presente conta o que ouviu Bava dizer: “Depois de falar num novo ciclo aberto
pela fusão com a Oi, fez elogios rasgados a Salgado, a Morais Pires e a
Ricciardi, este pelo apoio à fusão, que estendeu aos presidentes do Banco
Pactual, da Gutierrez e da La Fonte [accionistas da Oi].” E, antes de terminar
a intervenção, “sugeriu que abríssemos contas no BES, porque o BES merecia a
nossa confiança. E ninguém entendeu bem porquê”. Examinado à luz do que hoje se
sabe, o conselho de Bava permite leituras mais directas, ou, como alguns
consideram, apenas se confina a uma brincadeira.
Maio
15 de Maio. Para
dar sequência a um “remédio” pedido pelo BdP, o BES anuncia um aumento de
capital de 1045 milhões de euros. O supervisor acredita que o êxito da operação
pode impedir o colapso do banco e sabe que apenas Salgado tem capacidade para a
montar. Para Carlos Costa, mais importante do que o castigo ao banqueiro e o
seu afastamento, é sempre a sustentabilidade do sistema financeiro. E não só
autoriza o aumento de capital, como é generoso a aceitar as condições. Só que a
CMVM não tem a mesma sensibilidade e avança com uma negociação apertada que
leva a chumbar a primeira versão do prospecto de emissão de colocação das
acções no público.
20 de Maio.
Depois de intensas trocas de “impressões”, Carlos Tavares acaba por dar luz
verde ao BES para divulgar o prospecto, mas com muitos avisos que deviam ter
merecido a atenção dos investidores: a actual gestão do BES pode estar de
saída; a ESI foi alvo de irregularidades que a colocam numa “situação
financeira grave” e poderá afectar a credibilidade do BES com impacto nas
acções. Pela primeira vez, um regulador, a CMVM, está a expor na praça pública
as debilidades do GES. E coloca-se nova interrogação:Sabendo a CMVM que a
situação era grave não devia ter impedido o aumento de capital?
22 de Maio. A PT
tem agora 98,35% da sua tesouraria aplicada no BES (em depósitos) e no GES:
1642,9 milhões de euros, dos quais 897 milhões na Rioforte. A restante parcela
está depositada no banco e nas suas filiais. Mas nos relatórios de gestão da PT
escreve-se: “Com o objectivo de mitigar os riscos de crédito, a política da PT
é de investir em aplicações de curto prazo, junto de instituições financeiras
diversificadas, com reputação no mercado ou tendo em consideração o respectivo
rating de crédito.” Nada disto estava a ser feito, e não era de agora. Mas
alguém no Conselho de Administração (que integra os membros da Comissão de
Auditoria e onde está a Ongoing, testa de ferro do BES) perguntou à Comissão
Executiva onde estão os fundos da PT aplicados?
Por sugestão do
seu círculo de amigos, onde se incluem Proença de Carvalho (seu advogado),
Granadeiro ou Marcelo Rebelo de Sousa, o banqueiro concede ao Jornal de
Negócios a sua última entrevista como CEO do BES: “Só sou líder da área financeira”;
estou “à disposição do banco para tudo”, “assumo a responsabilidade solidária
com a administração da ESI”, mas “não me demito”; “vou trabalhar para evitar
riscos reputacionais”, pondo em marcha “o programa de saneamento” definido pelo
BdP.
A cena é mesmo de
uma fita de acção (Fuga à Meia-noite) onde Robert de Niro é um polícia que
pergunta a um mafioso: “Já ouviste falar de um tipo chamado Mardukas?” “Sim,
sei quem é.” “O que sabes?” “É um contabilista que sacou uns milhões em Las
Vegas e doou-os para caridade.” “Só que não foram poucos milhões. Foram 15
milhões.” Ainda que o contabilista do filme seja uma figura menor, está no
centro de tudo. Como, aliás, acontece sempre em histórias complexas. Em
Espanha, o ainda primeiro-ministro Mariano Rajoy viu-se envolvido num escândalo
(Los Papeles de Bárcenas) protagonizado por um "contabilista" do PP
com "um registo secreto de recebimentos de empresários e pagamentos a
políticos). Salgado, na entrevista, responsabiliza o do GES, Machado da Cruz,
por ter “perdido o pé no meio da situação” e manipulado as contas que estão na
origem da tragédia familiar. E lança um aviso à navegação: “Temos de ser todos
solidários.”
Ups! No gabinete
de José Maria Ricciardi acendem-se piscas. Um primo olha para o chefe como
primo e não como chefe. E, ao ler a frase em que Salgado pede solidariedade,
dirigiu-se para a Rua de São Bernardo. Ouvi-lo é uma empreitada: “Não sou
solidário com situação nenhuma, nunca tive conhecimento de nada e se me
perguntasses se as contas deviam ser alteradas eu dizia-te que não.” Todos os
presentes se calam. Estão convencidos de que Salgado é o super-homem imbatível
e se o contestam… a porta abre-se. Na família, acreditam que Ricciardi vai,
mais dia, menos dia, para a rua, como conta um membro do clã: “Achámos que ele
só estava a pensar nele. E ao desejar mal a Salgado, desejava mal ao grupo.” E
agora? “Há quem continue a pensar o mesmo.”
Este é um período
sombrio na vida de Salgado, com o grupo à beira da falência. E é obrigado a
sair do seu casulo para pedir ajuda ao Estado. Dispara, então, nas várias
direcções. Todos o ouvem, mas ninguém se compromete. Vai sozinho a Belém falar
com Cavaco Silva, seu convidado de casa, que lhe terá dito: pouco posso fazer.
O banqueiro chega
à Praça do Comércio para uma audiência com a ministra das Finanças, acompanhado
de José Manuel Espírito Santo e de José Honório. Os três têm grande urgência e
tentam convencer Maria Luiz Albuquerque a autorizar a CGD a emprestar 2500
milhões à Rioforte para suavizar a dívida de curto prazo. O envolvimento do
banco estatal ajudava a que o BCP viesse a colaborar também. Pedem juros
generosos. Maria Luís Albuquerque torce o nariz e terá notado que “não dispõe
de instrumentos” para apoiar o GES (não financeiro).
No caminho está
agora o primeiro-ministro. Quando entra em São Bento, Salgado não se sente
confortável. Sabe que Pedro Passos Coelho não sente empatia por ele, mas
acredita que o pode sensibilizar, pois a queda do GES terá impacto no BES (e na
PT). E admite que os efeitos colaterais se farão sentir. O banqueiro é
afirmativo: a situação é crítica, daí o pedido já endereçado de viva voz à
ministra. De pouco servirá o encontro, pois Passos Coelho é vago, não tem nada
para lhe dizer. E vai dar instruções políticas a Maria Luiz Albuquerque para
manter a recusa.
Entre outros
dirigentes políticos e governamentais com quem Salgado falou naquele período,
mais de uma vez, está Carlos Moedas, na época secretário de Estado adjunto de
Passos (e agora comissário europeu). “O Moedas, o Moedas! Eu punha já o Moedas
a funcionar.” Foi a frase de José Manuel Espírito Santos (gestor do BES) que
incentivou o banqueiro, pela segunda vez, a ligar ao secretário de Estado para
que ajudasse a encontrar um plano de salvamento do grupo. Carlos Moedas ia a
conduzir quando o atendeu e lembra-se de ter pensado: “Está assustadíssimo.” O
Sol já relatou: “Carlos, está bom? Peço desculpa por estar a chateá-lo a esta
hora. Tivemos agora uma notícia muito desagradável. Tem a ver com a procuradoria
no Luxemburgo [onde a ESI e a Rioforte têm as sedes], que abriu inquérito a
empresas. Temos medo que possa desencadear um processo complicado sobre o
grupo. Porventura temos de pedir uma linha através de uma instituição bancária.
Seria possível dar uma palavrinha ao José de Matos [presidente da CGD], para
ver se recebia a nossa gente da área não financeira? Temos garantias para dar.”
Carlos Moedas tem cabeça de liberal e não apoia intervenções do Estado, pensa
como Passos Coelho. Já veio garantir que “o tema morreu ali”, não passou do
telefonema. É a sua versão.
As diligências
feitas pelo clã terão chegado a José Luís Arnaut, amigo de Barroso, e a Paulo
Portas. O vice-primeiro-ministro chama a atenção de Passos para “a gravidade de
deixar cair o GES” e recebe um chega para lá. Ao presidente do BES restam agora
poucos amigos. Um deles é Durão Barroso, com quem fala várias vezes. Barroso
ainda se movimentou (por Lisboa e Luxemburgo) mas, do ponto de vista de
Salgado, depois de tudo o que terá feito pelos amigos, Barroso [a quem o BES
pagou um curso nos EUA] não se empenhou o suficiente e, hoje, o sentimento é de
desconforto. É a síndrome de quem deixa a crista da onda. Este terá sido,
provavelmente, um dos primeiros momentos em que Salgado sentiu que a idade, 70
anos, e o ambiente não lhe permitiram “brandir a varinha mágica”.Fecham-se
todas as portas que interessam. O banqueiro já não tinha flexibilidade para
manter e gerar conivências.
Junho
8 de Junho de
2014. Salgado está na Suíça quando representantes de três dos cinco ramos do
conselho superior do GES se reúnem em casa de António Ricciardi, em Cascais.
Para além de Salgado, não comparece José Manuel Espírito Santo. Os outros
concordam em apoiar o filho, José Maria Ricciardi, para CEO do BES, que não
avança: “Não aceitei, pois percebi que não tinha o apoio unânime da família
como o BdP exigia. E também percebi ao longo dos últimos anos que não posso
contar com os meus familiares.” Foi à sua vida.
16 de Junho,
segunda-feira. Concluído com sucesso o aumento de capital do BES de mil
milhões, Carlos Costa convocou o presidente para lhe dizer que tinha chegado o
momento de renunciar. No dia seguinte, Salgado e Morais Pires apanham o avião
para Luanda. Era a última esperança para resgatar o GES e o BES da falência.
São recebidos por altas figuras do regime angolano e outros investidores, mas
todos negam ajuda financeira. De regresso a Lisboa, no dia seguinte, sabem que
chegou o fim. Pouco há a fazer. A partir dali as acções do BES entram em queda
livre. Num mês vão cair de 0,96 euros (o primeiro dia de cotação pós-aumento de
capital) para 0,46 euros.
19 de Junho,
quinta-feira. Os carros topo de gama estacionam em fila indiana à porta do BdP
na Rua do Comércio para deixar sair os nove membros do CS do GES. Não é a
primeira vez. Mas este encontro é nevrálgico, pois Carlos Costa vai deixar bem
claro que nenhum membro da família Espírito Santo ficará nos órgãos sociais do
BES, executivos ou não executivos. O objectivo é evitar conflitos de interesses
e proteger a instituição das lutas internas. E clarifica que a sua “ordem” vale
para todos, o que não evita uma pequena altercação, quando Ricciardi insiste na
pergunta em tom elevado: “Por que não eu?” Tanta perseverança irrita o
governador: “O senhor não me fale nesse tom. Já disse que nenhum membro da
família pode estar na CE do BES.” Ricciardi, que vai ser autorizado a manter-se
como presidente do BESI, justifica-se por ouvir mal de um ouvido.
Antes de sair,
como quem não quer a coisa, o presidente do BES soltou o nome de Morais Pires
para CEO. O governador ficou pasmado. É que Morais Pires tinha o registo de
idoneidade suspenso. Nada disse, apenas que esperava que o próximo CEO fosse
indicado na assembleia geral (que será convocada para daí a um mês) e que a
partir dali é que se pronunciaria. O que significava que durante um mês o trono
ficava vazio e Salgado reinava como interino.
Quando deixam o
BdP, é provável que apenas Ricciardi e Ricardo Salgado tenham compreendido
plenamente a mensagem de Carlos Costa. Os restantes primos não acreditam ainda
no que lhes está a acontecer, pois sempre acharam que ia surgir um protector a
dar a mão.
O episódio do
BdP, em que afasta todos os Espírito Santo, é o momento de glória de Carlos
Costa, elogiado pela coragem. Mas tem ainda mais leituras: prova-se que o
governador tinha meios para forçar a saída de Salgado meses antes sem precisar
de invocar a lei, tal como acabou por fazer; a família não percebeu que Morais
Pires não resistia ao crivo da comunicação social, pois começaram a sair
notícias sobre ligações a offshores e infracções fiscais que o levaram, no
final de 2012, a
regularizar as dívidas ao fisco.
20 de Junho,
sexta-feira. Os jornais trazem na primeira página que Ricardo Salgado renuncia
ao BES. Ora, a CMVM não podia permitir a dúvida sobre a saída e interrompe a
cotação do banco e da ESFG à espera de informação. O GES confirma o afastamento
de Salgado e que Morais Pires será proposto para CEO e o ex-deputado do PSD
Mota Pinto será chairman. Nenhum deles assumirá o cargo. Para dar corpo a uma
proposta do BdP de retirar os accionistas de referência do BES dos órgãos
sociais (comissão executiva e conselho de administração), com poder de
intervenção, o BdP imaginou uma estrutura nova, a que chamou “conselho
estratégico”, para onde Salgado foi nomeado. Mas a estrutura seria publicamente
criticada e morreu ali.
Assim que o
afastamento de Salgado do BES passou a ser um facto, legitimou os rumores que
há semanas circulavam nos mercados sobre os graves problemas do grupo. E, como
não foi acompanhado de uma alternativa credível para o substituir, a pressão
para os clientes levantarem as suas poupanças, que começara duas semanas antes,
acentua-se (de Junho até Agosto, fala-se em saídas de quase 10 mil milhões, mas
o valor nunca foi confirmado).
Ao final da
tarde, Ricciardi emite um comunicado a informar que vai separar o BESI do BES e
sublinha que o supervisor lhe “reconheceu a idoneidade e o registo do seu
mandato”, podendo, assim, dar lastro à sua estratégia de banqueiro.
Fim-de-semana. Os
dois primos direitos vão jogar ao rato e ao gato. Ricardo Salgado não nasceu
para dirimir conflitos. Decide demitir Ricciardi e convoca-o para uma comissão
executiva na quarta-feira seguinte. Antes, sai uma notícia no Diário Económico
a dar conta da intenção. Então, Ricciardi envia à reunião em sua representação
o seu braço direito Fernando Cary, a quem Salgado confirma que vai afastar o
presidente do BESI. No final, Salgado emite um comunicado a desautorizar
Ricciardi: “O BES não vai autorizar o BESI”, onde detém 100% do capital,
autonomizar-se. O contar de espingardas leva o vice-governador do BdP a mandar
calar os dois. O mercado bancário é pequeno demais para tantas brigas.
24 de Junho.
Passos Coelho demarca-se: “É conhecido, porque já foi dito [por Salgado], que o
GES tem problemas que precisam de ser resolvidos, estará a trabalhar nesse
sentido, teve ocasião de nos comunicar as ideias que tem quanto à solução
desses problemas. Não quero fazer comentários, porque respeitam a um grupo
privado com os seus interesses legítimos e normais, mas que não cabem na alçada
directa nem do Governo nem neste caso do supervisor.”
“Nos últimos
anos, deu-se uma mudança de paradigma na economia”, observou uma fonte de São
Bento, que justifica assim a não intervenção do Governo no BES e GES: “Está em
causa um grupo privado. O primeiro-ministro entende que um banco pode ir à
falência desde que os depósitos sejam salvaguardados, pois a obrigação do
Estado não é meter dinheiro dos contribuintes num grupo insolvente e, para
mais, com comportamentos ilícitos.” Por que não teve o Governo um gesto quando,
em 2013, os problemas se revelaram? “Não tinha a fotografia completa do que se
passava no GES. Só o BdP concentra toda a informação e, pelo seu estatuto de
independência face ao poder político, não revelou o que sabia.” Adianta: “A
verdade é que o primeiro-ministro esteve sempre entre a espada e a parede e ou
impedia o colapso e interferia na autonomia do BdP — que, aliás, sempre
garantiu ter a situação controlada — e sujeitava-se a críticas, ou não fazia
nada, como aconteceu, e deixava o BdP actuar”.
26 de Junho.
Surpresa? Torna-se evidente que o BES usa a PT como se fosse a sua casa. O
Expresso anuncia que a PT tinha 900 milhões de títulos de dívida da Rioforte
que vai perder. A revelação deste episódio internacionaliza o tema GES, desde
logo alastrando-o ao Brasil. Num relatório de 10 de Julho, sobre as aplicações
de excedentes de tesouraria no GES, a Comissão de Auditoria revela que a
exposição ao BES/GES sempre foi elevada, entre um mínimo de 36,8% (em Julho de
2008) e um máximo de 98,6% (em Abril de 2014). E como, desde 2012, que o
resgate a um banco envolve accionistas e obrigacionistas, a PT (que tem 2% do
BES) é atingida de dois lados: como investidor, financiador (Rioforte). Seria
afectada como cliente se não tivesse levantado os depósitos dias antes da
falência. No final, Bava, Granadeiro e Pacheco de Melo vão acabar por se
demitir da OI e PT e a sua acção está a ser alvo de inquéritos pela CMVM.
27 de Junho. A
ministra das Finanças está no Parlamento a falar do tema do momento: o BES “não
coloca riscos para a estabilidade financeira”; “o recente aumento de capital
foi um sucesso”; “tudo fiz no âmbito das minhas competências para estar a par
do que se passa que tenha relevância para a estabilidade financeira”; “a
acompanhar a situação há largos meses”.
Julho
A partir daqui, a
estratégia de passinhos curtos do BdP e de separação do BES e do GES não
resiste. Afinal era ao BES que os problemas do GES iam desaguar. Carlos Costa e
o Governo tinham avaliado mal a situação e, por isso, a estratégia seguida para
estancar a “sangria” não se revelou a adequada. E tudo se descontrolou. Mas é
verdade o que diz o governador: quando há gestores mal-intencionados, não há
forma de proteger um banco. Apenas quando são afastados a tempo.
O BdP tenta ainda
negociar com o Governo a solução da via da recapitalização com empréstimo da
troika, com CoCos (obrigações convertíveis em acções) e entrada directa do
Estado — um esquema idêntico ao usado no Banif. Mas não há vontade política e a
ministra das Finanças avança com o argumento dos contribuintes para recusar. E
não soube avaliar, ou não deu importância aos efeitos colaterais da opção do
governo.
Um analista
coloca a questão nestes termos: a solução da linha da troika teria sido
preferível, pois poupavam-se os outros accionistas (não infractores), os
obrigacionistas e o Estado receberia os juros dos CoCos e seria reembolsado
pelo empréstimo. Outro defende que o banco não teria condições de pagar os
juros dos CoCos e era um risco grande para os contribuintes.
Há outra
interpretação. A solução adoptada através do Fundo de Resolução de injectar
4900 milhões de euros no Novo Banco via sistema financeiro público e privado
(com um apoio de 3900 milhões do Estado) é a mais tranquilizadora para os
contribuintes. Mas apresenta riscos: dificilmente a venda do Novo Banco, que
será criado a partir do BES a 3 de Agosto, será suficiente para recuperar o que
lá foi investido. “E o Estado perderá sempre alguma coisa, pois a CGD tem 30%
do Fundo de Resolução e, como vai ter de contabilizar as perdas, a banca
distribuirá menos impostos.”
14 de Julho.
Depois de o BdP ter descoberto que Salgado e Morais Pires tinham aproveitado
nas últimas semanas para tomar decisões contrárias às suas recomendações (carta
de conforto, triangulação de movimentos para financiar a ESI e a Rioforte),
Carlos Costa pede a Vítor Bento, convidado por Salgado para ser CEO, para tomar
posse antes de os accionistas reunirem, a 30 de Julho.
Os dados estavam
à vista de todos. Mas não se criou uma onda de indignação, levando o Parlamento
a questionar já em 2013 porque havia tantas notícias sobre o tema. Por que se
mantinha um banqueiro à frente do segundo maior banco português sobre quem
pendiam dúvidas de bom comportamento fiscal? Perante o que aconteceu, há quem
troque olhares entre si. E pergunte: o colapso do BPN em 2008 terá sido mesmo
um acidente? Ou esconde antes um padrão? O que revela é a grande fragilidade
das instituições que estruturam a vida pública nacional.
23 de Julho. O
DCIAP tem andado de mão no gatilho e a fazer buscas em escritórios de
advogados, gabinetes de consultoria, no GES e no novo escritório de Ricardo
Salgado, que já tinha o acesso vedado ao BES. As filiais do BES
norte-americanas foram também visitadas pelas autoridades locais. É provável
que, a partir de agora, o banqueiro passe a invejar o anonimato.
24 de Julho. Foi
um dos homens mais influentes do país, que recebia em casa Presidentes da
República, primeiros-ministros, ministros, deputados, autarcas, empresários,
advogados... Ao 15.º andar da sede do BES desembocava muita gente. Todos o
cortejavam. Foi assim até 24 de Julho, quando, por volta das 09h00, uma viatura
da PJ estacionou à porta de sua casa, em Cascais, junto à Boca do Inferno, para
o trazer para ser interrogado no Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC)
no âmbito do processo Monte Branco. Na véspera, disponibilizara-se para ir pelo
seu pé até ao tribunal. Mas a justiça quis mostrar o seu troféu, como um sinal
de que chega aos poderosos. E quando chegou a Lisboa as
televisões esperavam.
10h00. O juiz
Carlos Alexandre começa a abrir o ovo chocado no gabinete do procurador Rosário
Teixeira. Salgado esteve a falar durante oito horas, o que, para muitos
analistas, indicia vontade de colaborar e de revelar segredos. A comunicação
social refere que o juiz procura o rasto de milhões do sinal do negócio de
venda da Escom e que nunca chegaram à Rioforte. Se é verdade ou não, só os
investigadores saberão. Mas assim que se começou a falar de que havia uma sexta
figura, de que se desconhece o nome, a receber “bónus” do consórcio alemão que
vendeu, em 2004, os dois submarinos à Marinha portuguesa, ficou tudo alerta.
Eram cerca de
18h00 quando o banqueiro deixou o tribunal na condição de arguido e sob caução
de três milhões de euros. E indiciado por crimes de burla, abuso de confiança,
falsificação e branqueamento de capitais. Será culpado? Não terá culpa? As
suspeitas são graves e não permitem voltar a olhar para ele como se nada
tivesse feito. O caso será analisado por uma comissão de inquérito parlamentar.
A cegueira da
fuga em frente e do medo de encarar a realidade levaram o GES a empurrar o lixo
para debaixo do tapete à espera de melhores dias. E, assim, minutos depois de
Ricardo Salgado ter deixado o tribunal, a ESFG, dona do BES, pediu a protecção
de credores junto das autoridades luxemburguesas. Nas horas seguintes, o
castelo de cartas desmoronou-se. Uma semana depois, o BES faliu com prejuízos
históricos de 3600 milhões — os maiores de sempre da economia portuguesa. A
implosão traduziu-se no fim de um centro de poder (que gerou muitas
conivências) considerado o mais influente da vida política, social e financeira
em Portugal dos últimos 15 anos. Ricardo Salgado sempre se considerou um
cidadão acima de qualquer suspeita e ainda está em estado de choque.
VER também,
Primeira Parte : BES
: Crónica do fim do império
/ http://www.publico.pt/economia/noticia/cronica-do-fim-do-imperio-1673213
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