O que a reforma do Estado não é, e devia ser
Vale a pena comparar o que não está nas 112 páginas de Portas com o que está no recente "discurso da Coroa" do monarca holandês
Falou-se e escreveu-se mais sobre o corpo 16 e a
entrelinha a dois espaços do documento sobre a reforma do Estado do que sobre o
seu conteúdo. É pena, apesar de revelar muito sobre a pobreza do debate
político. E é sobretudo pena por poucos terem sublinhado o mais importante: o
texto que Paulo Portas apresentou não traduz nenhuma nova visão do papel do
Estado no Portugal do século XXI, como se esperava e se exigia que fizesse.
O problema não é o documento ser palavroso e cheio de frases feitas - já li
muitas dessas frases, mais coisa, menos coisa, em programas eleitorais ou em
programas de Governo e ninguém estranhou, muito menos se indignou. O problema
também não é carecer de medidas concretas explicadas em detalhe - não é ainda o
tempo de legislar. O problema também não é recapitular as medidas tomadas ao
longo destes dois anos e meio - o objectivo de diminuir o peso da despesa
pública será sempre um objectivo de qualquer reforma do Estado. O problema, por
fim, também não é, como alguns protestam, o de se pretender "acabar com o Estado
social" - essa acusação, por regra, é repetida sempre que se faz alguma coisa em
Portugal e é cada vez mais um slogan sem significado. O problema do documento apresentado por Paulo Portas é que ele é cobarde e é incoerente. É cobarde porque revela um imenso receio de definir uma nova aproximação às funções do Estado, ficando-se quase sempre pela vacuidade das intenções, pelo politiquês da "maior eficiência" ou por proclamações sobre a "pós-burocracia". E é incoerente pois nem todas as medidas que enuncia vão num mesmo sentido: há as que procuram realmente abrir as funções do Estado à sociedade e as que se ficam pelas promessas de boa administração da coisa pública.
Há no documento algumas ideias avulsas que seria importante discutir - na Segurança Social, na Educação, por exemplo -, mas falta-lhe um discurso articulado capaz de permitir a construção de um novo consenso político. Pior só mesmo a recusa obstinada e oportunista do PS em discutir seja o que for. Se de um lado temos o vazio, do outro temos o vácuo. O vácuo absoluto.
O que é que se esperava deste guião? Eu diria que um mínimo razoável seria situar-se no mesmo patamar do "discurso da Coroa" pronunciado pelo rei Guilherme-Alexandre perante o Parlamento holandês a 17 de Setembro. Foi nesse discurso, que reflecte as opiniões do Governo apoiado por uma coligação liberal-socialista, que se defendeu a substituição do "clássico Estado do bem-estar da segunda metade do século XX por uma sociedade participativa". Isto porque as obrigações do actual modelo social "já não são sustentáveis, nem estão adaptadas às expectativas dos cidadãos".
Muita gente na Europa ficou de boca aberta ao escutar esta sinceridade e frontalidade e não faltou quem comentasse que, nos seus países, mesmo mais pobres e mais "insustentáveis", as elites políticas nunca teriam tanta coragem. Paulo Portas terá pensado o mesmo - se é que pensou alguma coisa.
O que o rei holandês anunciou foi que o seu país teria de evoluir de um modelo em que o Estado se ocupa de todos os problemas e necessidades sociais, para um outro modelo em que uma parte das necessidades associadas à velhice, à saúde ou à educação passarão a ser asseguradas num sistema de partilha com as famílias e com as instituições da sociedade civil. Será um sistema onde haverá mais responsabilização dos cidadãos e onde o Estado deixa de ser o provedor universal, uma espécie de ama-seca que trata de todos do nascimento até à morte, antes assumindo um papel de regulador e de facilitador.
Para os países do Norte da Europa, precisamente os que levaram mais longe as funções previdenciais do Estado, a evolução nesta direcção não é novidade. Muitos deles estão a percorrer este caminho há quase duas décadas, procurando soluções novas mas conseguindo diminuir o montante dos seus encargos sociais sem provocar rupturas. A forma como o têm feito é muito interessante e devia ser estudada por nós. Passe a publicidade, é o que faz Fernando Adão da Fonseca num interessante artigo publicado numa revista anual que eu dirijo e que acaba de ser posta à venda, a XXI, Ter Opinião, da Fundação Francisco Manuel dos Santos. Ele conta-nos como a Suécia reformou o seu Estado nos últimos 20 anos, num processo que envolveu tanto a direita liberal como a esquerda social-democrata, um processo gradualista onde mudanças no sistema de incentivos permitiram manter elevados níveis de protecção social, aumentar a liberdade e responsabilidade dos cidadãos e recuperar a competitividade económica.
Em Portugal, preferimos ficar pelos tabus, e um deles é o da imutabilidade do chamado "Estado social", um termo que devemos não à democracia, mas a Marcelo Caetano. Tenho pena que não prefiramos o conceito mais correcto e preciso de "Estado-providência", uma designação que só costumo ouvir a Francisco Assis. Em Portugal, tudo o que não seja um Estado que, de forma o mais centralizada e napoleónica possível, trate de providenciar directamente todos os serviços sociais é sempre visto como representando um "recuo civilizacional". Com o flop que representa o documento Portas, perdeu-se mais uma oportunidade de mostrar que isso não é assim.
O rei da Holanda falou de uma nova "sociedade participativa". Pessoas como Fernando Adão da Fonseca têm escrito sobre a hipótese de um "Estado garantia". Paulo Portas preferiu os lugares-comuns - apenas deseja "um Estado melhor" (será que alguém não deseja?). Não surpreende por isso que, por ausência de fio condutor, o documento arrisque algumas reformas na Educação - mais autonomia, mais poder das autarquias, escolas independentes, ensaio de cheque-ensino - mas não saia dos parâmetros mais habituais quando fala de Saúde.
Era possível ter ido mais longe, pelo menos no campo das ideias. Na mesma revista que já referi, a XXI, Ter Opinião, Isabel Vaz propõe um novo paradigma de gestão para o Serviço Nacional de Saúde, mudando as regras do seu financiamento. Nesse modelo, e cito, o Estado deixaria de ser o fornecedor universal para ser antes a garantia de universalidade do fornecimento dos serviços de saúde. Interviria sobretudo como regulador, corrigindo as distorções do mercado, e seria implacável na aplicação de regras - nomeadamente regras de acesso -, que seriam iguais para todos os sectores (público, privado e social). É uma proposta, mas é sobretudo uma ideia de reforma que corresponde a uma visão diferente do Estado.
O que custa neste processo é verificar como tudo se mistura. A reforma do Estado não é apenas cortes na despesa pública, por mais indispensáveis e urgentes que estes sejam. A reforma do Estado também não é apenas sobre a qualidade e a eficiência da máquina pública. A reforma do Estado é sobre a necessidade de um Estado diferente para o século XXI, porque a sociedade e o mundo também são diferentes.
O Estado-providência do passado tornou-se na baby-sitter das classes médias - em Portugal, foi mesmo ele que fez a classe média -, e isso não é, num mundo globalizado, a melhor forma, ou a forma mais justa, ou sobretudo a forma sustentável, de gerir uma economia. É que, como recordava Jorge Almeida Fernandes neste jornal há duas semanas, no seu artigo sobre o "discurso da Coroa" holandês, "a UE representa 7% da população mundial; detém 25% da riqueza mundial; e representa 50% da despesa social de todo o mundo".
Digam todo o mal que quiserem da entrelinha do "documento Portas", mas não se refugiem nisso para iludir um debate que temos de fazer, apesar desse mesmo "documento Portas".
P.S.: Muitos leitores escreveram-me a propósito do meu texto sobre as pensões. Não os desiludirei e, como prometido, regressarei em breve a esse tema.
Jornalista. Escreve à sexta-feira jmf1957@gmail.com
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