domingo, 17 de novembro de 2013

Por que razão a reforma do Estado é, em Portugal, necessária há várias décadas?


Ensaio de António Barreto sobre a reforma do Estado
Por António Barreto
publicado em 16 Nov 2013 in (jornal) i online
Por que razão a reforma do Estado é, em Portugal, necessária há várias décadas?

O crescimento do Estado de protecção social foi muito acelerado depois de 1974 e fez aumentar a dimensão, o volume, a força, a decisão e o peso do Estado e da administração pública. Mesmo depois da reprivatização da economia e das empresas, iniciada nos anos 90 e prosseguida até hoje pelos dois maiores partidos, as dimensões do Estado administrativo não foram reduzidas. Dos menos de 200 mil funcionários dos anos 60, chegámos aos 600 mil a 700 mil da última década. Esta dimensão não é necessariamente exagerada, quando comparada com a dos nossos parceiros europeus. Acontece que se tratou de um crescimento orgânico e demográfico, sem alteração consistente das formas de organização e das missões do Estado, tanto central como local. Por outro lado, a comparação com outros países desenvolvidos pode ser falaciosa. Na verdade, a semelhança de números esconde diferenças radicais no produto nacional, na organização e na produtividade.

A Constituição e as principais leis de base não criaram um Estado administrativo com novo espírito e critério, nem estabeleceram um novo modelo de organização. Algumas das grandes polémicas, controvérsias ou dilemas foram sempre sendo adiados: o centro versus região e o Estado central versus autarquia nunca encontraram verdadeiramente solução ou o regime de acumulação de funções públicas e privadas dos agentes da administração.

A verdade é que não é possível encetar com êxito um processo de reforma do Estado sem começar ou passar pela revisão da Constituição. O que torna tudo mais difícil. A Constituição e as leis de bases traçaram minuciosamente um sistema de defesas contra o autoritarismo, o caciquismo, o cesarismo, os vulgarmente chamados regimes fascistas e comunistas, o populismo de cariz militar e outros? A natureza equívoca e ambígua do sistema semipresidencial é o melhor retrato desse sofisticado sistema de defesa, brilhante na construção, uma verdadeira obra-prima, mas que é fraco de carácter e defensivo na energia. Algumas das querelas antigas e que hoje são de novo virulentas, como entre os órgãos de soberania (entre o parlamento, o Presidente da República e o governo), ou entre os órgãos de soberania e os tribunais (com relevo para o Tribunal Constitucional), são o resultado directo e permanente da natureza híbrida do regime, do sistema constitucional e da natureza do Estado.

Toda a construção ou todo o desenvolvimento do Estado, desde os anos 70, foram feitos nas circunstâncias acima descritas, com especial relevo para uma instituição: os partidos políticos. O fio condutor, os obreiros e os protagonistas do desenvolvimento do Estado e da administração pública, desde 1974, foram os partidos políticos. Foram subalternizadas outras instituições e entidades, como sejam o parlamento, o Presidente da República, o governo, as regiões, as autarquias, os tribunais, as forças armadas, as empresas privadas, as universidades e outras.

A sociedade e a economia mudaram profundamente durante as últimas quatro a cinco décadas. A demografia alterou-se e o panorama populacional do país modificou-se drasticamente. A administração autárquica, local e regional, foi concebida para um país e uma sociedade que já não existem. As grandes metrópoles urbanas estão cada vez mais complexas e quase ingovernáveis, enquanto o Interior despovoado continua a ser regido por sistemas desadequados. Mudaram as actividades, modificaram-se as empresas, deslocaram-se as pessoas, transformaram-se os recursos, alteraram-se drasticamente as vias de comunicação? mas as estruturas administrativas mantiveram-se quase inalteradas.

Não é a melhor altura. O actual período de crise financeira do Estado (e da sociedade) não é a melhor altura para proceder à reforma do Estado. Aliás, a correcção conjuntural das finanças do Estado, apesar de indispensável, não pode ser confundida com a reforma estrutural do Estado. Esta pode e deve ser preparada, debatida e reflectida, mas qualquer urgência é sinal de fraqueza e de dependência. Em momentos de expansão económica e de estabilidade social e política, as querelas constitucionais esbatem-se e as deformações do Estado são aparentemente ultrapassadas pela euforia económica e social. Mas, em momentos de crise, as deficiências constitucionais avultam com carácter de urgência. Quando a crise é de endividamento internacional, de ameaça de bancarrota e de perda de autonomia de decisão, o verniz estala mais facilmente. Ora é nesses momentos, quando são mais precisas, que a revisão da Constituição e a reforma do Estado são mais difíceis. Não só pela insuficiência de meios, mas também pela crispação entre partidos políticos. Os regimes de resgate financeiro e os deveres que lhes estão associados fizeram com que os "cortes" e as "supressões", assim como as mudanças nos regimes laborais, se transformassem em substitutos para a reforma do Estado. Tal não deveria acontecer. As questões laborais não se devem sobrepor aos objectivos fundamentais da reforma do Estado.

Paradoxalmente, em resultado de toda esta evolução brevemente descrita, a reforma do Estado, aos olhos de muitas pessoas, tornou-se urgente. O Estado está fraco de mais, pesado de mais, vagaroso de mais, ineficiente de mais, capturado de mais por interesses particulares e dependente de mais de poderes estrangeiros e internacionais. Mas urgente não quer dizer de emergência. Urgente implica uma necessidade inadiável, mas a sua satisfação pode ser feita gradualmente, ao longo do tempo, com uma definição clara de objectivos, com uma estratégia política e com um calendário razoável. A pressa seria desaconselhada, sobretudo porque o Estado se encontra débil e dependente.

Esta debilidade ou esta crise do Estado português é agravada por outros fenómenos. O primado dos partidos políticos permitiu que a captura do Estado pelos interesses privados fosse facilitada. É através dos partidos políticos que grupos económicos, empresas, sindicatos, associações privadas, profissões e outros interesses retêm e possuem a capacidade política de regulação e legislação, assim como os favores económicos. É usual pensar que o "poder político", em democracia, deve primar sobre o "poder económico". Esta quase verdade consensual serve para justificar a acção livre dos agentes políticos e, por essa via, o privilégio acordado aos partidos políticos e a consequente submissão dos outros interesses sociais. Acontece que é em parte esse primado da política que serve a captura do Estado por interesses privados. Repito: é por intermédio dos partidos que os interesses privados detêm privilégios e poderes. Daqui não concluo que é necessário ou sequer aconselhável afastar os partidos. Não. Necessário é moderá-los. O que só pode ser feito com instituições democráticas sólidas. Evidentemente, não há democracia sem partidos políticos. Mas também não há democracia só com partidos como únicos agentes políticos.

A massificação da política, da economia e da cultura criou novos fenómenos sociais, culturais e políticos aos quais é necessário prestar atenção com olhar crítico. São os casos, por exemplo, das sondagens de opinião permanentes e da comunicação imediata em tempo real, que destruíram a noção de mandato democrático. Ou da fabricação de realidades virtuais que leva o debate público para fora das instituições políticas. Ou ainda da mercantilização do voto e dos processos eleitorais que transformou esses processos políticos em espectáculo encenado. Todos estes fenómenos destruíram uma boa parte do prestígio da profissão, da carreira e da função política, geralmente coincidente e adequada às estruturas do Estado nacional. A actividade política perdeu dignidade e reputação. O Estado hipotecado aos partidos e por eles detido é fonte de desprestígio da actividade política.

Quase quatro décadas de democracia, acrescentadas a quase cinco de autoritarismo, criaram um universo de contacto entre a vida privada e a pública e entre os interesses económicos e a função política. Por várias razões, não se procedeu a um desenho de fronteiras nítidas, nem se criaram mecanismos eficientes de avaliação e julgamento. Mau grado a aparência de força e autonomia, o Estado português é presa de interesses e forças sociais. Tanto partidos políticos como grandes corpos profissionais ou grupos económicos. Mais que a ilegalidade e a promiscuidade sua companheira, são a confusão legal e a acumulação legítima de funções e de interesses privados e públicos que distorcem e dominam a vida pública portuguesa.


Artigo adaptado do discurso no Instituto de Defesa Nacional proferido no dia 6 de Novembro de 2013

Por que razão o tema é actual?
Por António Barreto
publicado em 17 Nov 2013 in (jornal) i online

lll A primeira razão parece quase circunstancial: a crise financeira dos estados, a dívida pública e a crise das dívidas soberanas fizeram com que seja necessário repensar e reorganizar a despesa e a receita do Estado numa altura em que já não se pode, em Portugal como noutros países, continuar a simplesmente aumentar os impostos e recorrer ao crédito. Novas soluções têm de ser encontradas. E logo vieram ao espírito várias hipóteses: diminuir a despesa, cortar no investimento e nas prestações sociais, diminuir a dimensão do Estado, baixar os desperdícios, etc. Em poucas palavras, diminuir e organizar melhor o Estado. Isso é uma coisa. Reformar o Estado é outra. Falta saber se são possíveis ao mesmo tempo.
A segunda razão é porque se trata do principal objectivo da luta política contemporânea. Uma nova forma de luta de classes. A traço grosso, temos, de um lado, os que querem um Estado forte, activo, interveniente, tão vasto ou mais do que hoje, motor de desenvolvimento, dirigente da nação e da economia; do outro lado, os que querem um Estado mais pequeno ou muito mais pequeno do que hoje, parceiro da sociedade civil, regulador, disciplinador, não interveniente, ligeiro e eventualmente fraco.
A terceira razão resulta de pagar, gastar, distribuir e investir serem, nos tempos de hoje, as principais tarefas do Estado e os principais argumentos políticos e eleitorais. Os orçamentos do Estado, que não cessam de aumentar desde há várias décadas, traduzem cada vez mais essa prioridade. O Estado investe ou despende sempre mais na saúde, na educação, na Segurança Social e nas obras e serviços públicos, sem falar nas outras funções de Estado e de soberania, além de cobrir a despesa crescente com a sua própria organização e os seus funcionários. Sem poder gastar mais e distribuir melhor, nenhum poder político resiste ou atravessa vitoriosamente as eleições. Alguns estados perceberam o fenómeno e acudiram-lhe, talvez a tempo, como certos estados escandinavos; outros não viram, ou não souberam acudir-lhe a tempo, como a Grécia, Portugal e Espanha, por exemplo.

Mas há outros motivos. Actuais também, mas já com algumas décadas
A globalização pôs o Estado em crise. Isto é, criou novas realidades económicas e financeiras e exigiu adaptações e mudanças. A economia mundial, o livre comércio e a desregulamentação de muitas actividades económicas e financeiras internacionais deixaram os estados desarmados e impotentes. Só os estados mais poderosos (nomeadamente os Estados Unidos, a Alemanha e a China…) conseguiram pôr a seu proveito as forças libertadas pela globalização, enquanto a maioria sofre as suas consequências.

A consolidação e o desenvolvimento da União Europeia aprofundaram a crise do Estado nacional. Daí resultou a sua desorientação, ficando aquém da estrutura pré--federal que alguns desejam, mas transformando os estados nacionais numa espécie de parceiros locais de uma frágil estrutura internacional que ultrapassa os estados, sobretudo os de pequena e média dimensão e de pouca força económica. Note-se bem: ultrapassa-os, sem lhes conferir solidez ou estabilidade. A consequência deste processo é evidente: a reforma do Estado, em conjugação com a da união, tornou-se necessária.

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