Ensaio de António Barreto sobre a reforma do Estado
Por António Barreto
publicado em 16 Nov 2013 in (jornal) i online
Por que razão a reforma do Estado é, em Portugal,
necessária há várias décadas?
O crescimento do Estado de protecção social foi muito
acelerado depois de 1974 e fez aumentar a dimensão, o volume, a força, a
decisão e o peso do Estado e da administração pública. Mesmo depois da
reprivatização da economia e das empresas, iniciada nos anos 90 e prosseguida
até hoje pelos dois maiores partidos, as dimensões do Estado administrativo não
foram reduzidas. Dos menos de 200 mil funcionários dos anos 60, chegámos aos
600 mil a 700 mil da última década. Esta dimensão não é necessariamente
exagerada, quando comparada com a dos nossos parceiros europeus. Acontece que
se tratou de um crescimento orgânico e demográfico, sem alteração consistente
das formas de organização e das missões do Estado, tanto central como local.
Por outro lado, a comparação com outros países desenvolvidos pode ser
falaciosa. Na verdade, a semelhança de números esconde diferenças radicais no
produto nacional, na organização e na produtividade.
A Constituição e as principais leis de base não criaram um
Estado administrativo com novo espírito e critério, nem estabeleceram um novo
modelo de organização. Algumas das grandes polémicas, controvérsias ou dilemas
foram sempre sendo adiados: o centro versus região e o Estado central versus
autarquia nunca encontraram verdadeiramente solução ou o regime de acumulação
de funções públicas e privadas dos agentes da administração.
A verdade é que não é possível encetar com êxito um processo
de reforma do Estado sem começar ou passar pela revisão da Constituição. O que
torna tudo mais difícil. A Constituição e as leis de bases traçaram
minuciosamente um sistema de defesas contra o autoritarismo, o caciquismo, o
cesarismo, os vulgarmente chamados regimes fascistas e comunistas, o populismo
de cariz militar e outros? A natureza equívoca e ambígua do sistema
semipresidencial é o melhor retrato desse sofisticado sistema de defesa,
brilhante na construção, uma verdadeira obra-prima, mas que é fraco de carácter
e defensivo na energia. Algumas das querelas antigas e que hoje são de novo
virulentas, como entre os órgãos de soberania (entre o parlamento, o Presidente
da República e o governo), ou entre os órgãos de soberania e os tribunais (com
relevo para o Tribunal Constitucional), são o resultado directo e permanente da
natureza híbrida do regime, do sistema constitucional e da natureza do Estado.
Toda a construção ou todo o desenvolvimento do Estado, desde
os anos 70, foram feitos nas circunstâncias acima descritas, com especial
relevo para uma instituição: os partidos políticos. O fio condutor, os obreiros
e os protagonistas do desenvolvimento do Estado e da administração pública,
desde 1974, foram os partidos políticos. Foram subalternizadas outras
instituições e entidades, como sejam o parlamento, o Presidente da República, o
governo, as regiões, as autarquias, os tribunais, as forças armadas, as
empresas privadas, as universidades e outras.
A sociedade e a economia mudaram profundamente durante as
últimas quatro a cinco décadas. A demografia alterou-se e o panorama populacional
do país modificou-se drasticamente. A administração autárquica, local e
regional, foi concebida para um país e uma sociedade que já não existem. As
grandes metrópoles urbanas estão cada vez mais complexas e quase ingovernáveis,
enquanto o Interior despovoado continua a ser regido por sistemas desadequados.
Mudaram as actividades, modificaram-se as empresas, deslocaram-se as pessoas,
transformaram-se os recursos, alteraram-se drasticamente as vias de
comunicação? mas as estruturas administrativas mantiveram-se quase inalteradas.
Não é a melhor altura. O actual período de crise financeira
do Estado (e da sociedade) não é a melhor altura para proceder à reforma do
Estado. Aliás, a correcção conjuntural das finanças do Estado, apesar de
indispensável, não pode ser confundida com a reforma estrutural do Estado. Esta
pode e deve ser preparada, debatida e reflectida, mas qualquer urgência é sinal
de fraqueza e de dependência. Em momentos de expansão económica e de
estabilidade social e política, as querelas constitucionais esbatem-se e as
deformações do Estado são aparentemente ultrapassadas pela euforia económica e
social. Mas, em momentos de crise, as deficiências constitucionais avultam com
carácter de urgência. Quando a crise é de endividamento internacional, de
ameaça de bancarrota e de perda de autonomia de decisão, o verniz estala mais
facilmente. Ora é nesses momentos, quando são mais precisas, que a revisão da
Constituição e a reforma do Estado são mais difíceis. Não só pela insuficiência
de meios, mas também pela crispação entre partidos políticos. Os regimes de
resgate financeiro e os deveres que lhes estão associados fizeram com que os
"cortes" e as "supressões", assim como as mudanças nos
regimes laborais, se transformassem em substitutos para a reforma do Estado.
Tal não deveria acontecer. As questões laborais não se devem sobrepor aos
objectivos fundamentais da reforma do Estado.
Paradoxalmente, em resultado de toda esta evolução
brevemente descrita, a reforma do Estado, aos olhos de muitas pessoas,
tornou-se urgente. O Estado está fraco de mais, pesado de mais, vagaroso de
mais, ineficiente de mais, capturado de mais por interesses particulares e
dependente de mais de poderes estrangeiros e internacionais. Mas urgente não
quer dizer de emergência. Urgente implica uma necessidade inadiável, mas a sua
satisfação pode ser feita gradualmente, ao longo do tempo, com uma definição
clara de objectivos, com uma estratégia política e com um calendário razoável.
A pressa seria desaconselhada, sobretudo porque o Estado se encontra débil e
dependente.
Esta debilidade ou esta crise do Estado português é agravada
por outros fenómenos. O primado dos partidos políticos permitiu que a captura
do Estado pelos interesses privados fosse facilitada. É através dos partidos
políticos que grupos económicos, empresas, sindicatos, associações privadas,
profissões e outros interesses retêm e possuem a capacidade política de
regulação e legislação, assim como os favores económicos. É usual pensar que o
"poder político", em democracia, deve primar sobre o "poder
económico". Esta quase verdade consensual serve para justificar a acção
livre dos agentes políticos e, por essa via, o privilégio acordado aos partidos
políticos e a consequente submissão dos outros interesses sociais. Acontece que
é em parte esse primado da política que serve a captura do Estado por
interesses privados. Repito: é por intermédio dos partidos que os interesses
privados detêm privilégios e poderes. Daqui não concluo que é necessário ou
sequer aconselhável afastar os partidos. Não. Necessário é moderá-los. O que só
pode ser feito com instituições democráticas sólidas. Evidentemente, não há
democracia sem partidos políticos. Mas também não há democracia só com partidos
como únicos agentes políticos.
A massificação da política, da economia e da cultura criou
novos fenómenos sociais, culturais e políticos aos quais é necessário prestar
atenção com olhar crítico. São os casos, por exemplo, das sondagens de opinião
permanentes e da comunicação imediata em tempo real, que destruíram a noção de
mandato democrático. Ou da fabricação de realidades virtuais que leva o debate
público para fora das instituições políticas. Ou ainda da mercantilização do
voto e dos processos eleitorais que transformou esses processos políticos em
espectáculo encenado. Todos estes fenómenos destruíram uma boa parte do
prestígio da profissão, da carreira e da função política, geralmente
coincidente e adequada às estruturas do Estado nacional. A actividade política
perdeu dignidade e reputação. O Estado hipotecado aos partidos e por eles
detido é fonte de desprestígio da actividade política.
Quase quatro décadas de democracia, acrescentadas a quase
cinco de autoritarismo, criaram um universo de contacto entre a vida privada e
a pública e entre os interesses económicos e a função política. Por várias
razões, não se procedeu a um desenho de fronteiras nítidas, nem se criaram
mecanismos eficientes de avaliação e julgamento. Mau grado a aparência de força
e autonomia, o Estado português é presa de interesses e forças sociais. Tanto
partidos políticos como grandes corpos profissionais ou grupos económicos. Mais
que a ilegalidade e a promiscuidade sua companheira, são a confusão legal e a
acumulação legítima de funções e de interesses privados e públicos que
distorcem e dominam a vida pública portuguesa.
Artigo adaptado do discurso no Instituto de Defesa Nacional
proferido no dia 6 de Novembro de 2013
Por que razão o tema é actual?
Por António Barreto
publicado em 17 Nov 2013 in (jornal) i online
lll A primeira razão parece quase circunstancial: a crise
financeira dos estados, a dívida pública e a crise das dívidas soberanas
fizeram com que seja necessário repensar e reorganizar a despesa e a receita do
Estado numa altura em que já não se pode, em Portugal como noutros países,
continuar a simplesmente aumentar os impostos e recorrer ao crédito. Novas
soluções têm de ser encontradas. E logo vieram ao espírito várias hipóteses:
diminuir a despesa, cortar no investimento e nas prestações sociais, diminuir a
dimensão do Estado, baixar os desperdícios, etc. Em poucas palavras, diminuir e
organizar melhor o Estado. Isso é uma coisa. Reformar o Estado é outra. Falta
saber se são possíveis ao mesmo tempo.
A segunda razão é porque se trata do principal objectivo da
luta política contemporânea. Uma nova forma de luta de classes. A traço grosso,
temos, de um lado, os que querem um Estado forte, activo, interveniente, tão
vasto ou mais do que hoje, motor de desenvolvimento, dirigente da nação e da
economia; do outro lado, os que querem um Estado mais pequeno ou muito mais
pequeno do que hoje, parceiro da sociedade civil, regulador, disciplinador, não
interveniente, ligeiro e eventualmente fraco.
A terceira razão resulta de pagar, gastar, distribuir e
investir serem, nos tempos de hoje, as principais tarefas do Estado e os
principais argumentos políticos e eleitorais. Os orçamentos do Estado, que não
cessam de aumentar desde há várias décadas, traduzem cada vez mais essa
prioridade. O Estado investe ou despende sempre mais na saúde, na educação, na
Segurança Social e nas obras e serviços públicos, sem falar nas outras funções
de Estado e de soberania, além de cobrir a despesa crescente com a sua própria
organização e os seus funcionários. Sem poder gastar mais e distribuir melhor,
nenhum poder político resiste ou atravessa vitoriosamente as eleições. Alguns
estados perceberam o fenómeno e acudiram-lhe, talvez a tempo, como certos
estados escandinavos; outros não viram, ou não souberam acudir-lhe a tempo,
como a Grécia, Portugal e Espanha, por exemplo.
Mas há outros
motivos. Actuais também, mas já com algumas décadas
A globalização pôs o Estado em crise. Isto é, criou novas
realidades económicas e financeiras e exigiu adaptações e mudanças. A economia
mundial, o livre comércio e a desregulamentação de muitas actividades
económicas e financeiras internacionais deixaram os estados desarmados e
impotentes. Só os estados mais poderosos (nomeadamente os Estados Unidos, a
Alemanha e a China…) conseguiram pôr a seu proveito as forças libertadas pela globalização,
enquanto a maioria sofre as suas consequências.
A consolidação e o desenvolvimento da União Europeia
aprofundaram a crise do Estado nacional. Daí resultou a sua desorientação,
ficando aquém da estrutura pré--federal que alguns desejam, mas transformando
os estados nacionais numa espécie de parceiros locais de uma frágil estrutura
internacional que ultrapassa os estados, sobretudo os de pequena e média
dimensão e de pouca força económica. Note-se bem: ultrapassa-os, sem lhes
conferir solidez ou estabilidade. A consequência deste processo é evidente: a
reforma do Estado, em conjugação com a da união, tornou-se necessária.
Sem comentários:
Enviar um comentário