Opinião
Retrato do artista enquanto censor
Por José Diogo Quintela
26/11/2013 in Público
A “Carta aberta sobre João César Monteiro lido por um
político, anúncio feito pelo produtor Paulo Branco”, assinada por vários
artistas, é um insulto ao realizador. Se César Monteiro fosse vivo, cuspia na
carta. E nos próprios subscritores. Alguma vez um homem como César Monteiro
deixaria que uma só pessoa fosse impedida de ler os seus textos? Evidente que
não. César Monteiro nunca se daria ao trabalho de interditar uma só pessoa.
Não, interditava toda a gente. Se César Monteiro realizou o mítico Branca de
Neve, um filme que não é para ser visto, é óbvio que também escreveu textos que
não são para serem lidos. Aliás, aposto que foram redigidos sem recurso a
letras. Assim como está, a carta é pífia.
O realizador demonstrou bem a repulsa que tinha do público:
não confiando totalmente na sua capacidade artística para, através da
incompreensibilidade e do tédio da sua fita, afastar os espectadores da sala,
filmou tudo a negro. Para evitar surpresas. Há que proteger a obra do público.
O público escangalha o artista. (Veja-se a Joana Vasconcelos, que, desde que
começou a ter público, deixou de ser considerada pelos seus pares como artista,
para passar a ser “artista”. Em Portugal, quando um artista ganha público,
também ganha aspas.)
Os colegas subscritores quiseram defender a obra de César
Monteiro do público. Que, para isso, tenham recorrido a um jornal justamente
chamado PÚBLICO é uma bem esgalhada ironia. Só que, apesar das boas intenções,
os artistas acobardaram-se. Começaram bem, a excluir Poiares Maduro, mas
pararam por aí. No fundo, estão a dizer: “Este rapaz não é digno de ler textos
de César Monteiro, mas há aqui pessoas que são.” O que é falso. É evidente que
ninguém está a altura da escrita de César Monteiro. O próprio César Monteiro só
leu os seus textos uma vez, enquanto os escrevia, para não transgredir.
São realizadores, mas sem a coragem de um César Monteiro.
Jamais teriam a audácia de fazer um filme sem imagem. É gente que, no máximo,
entregaria, juntamente com a candidatura ao subsídio do ICA, uma lista com o
nome das pessoas impedidas de assistir ao filme. (O que, não sendo genial à
maneira do César Monteiro, é mesmo assim uma excelente ideia. Seria uma espécie
de índex, que, em vez de obras proibidas, catalogasse os espectadores
proibidos. Depois, na bilheteira, se alguém estivesse no rol dos banidos, não
lhe vendiam bilhete e o funcionário escrever-lhe-ia “interdito” na testa, com
um lápis azul. Tudo para proteger as obras de arte de pessoas que as pudessem
corromper. Claro que isto é uma hipótese meramente académica. Para ser exequível,
era preciso que as pessoas se deslocassem mesmo aos cinemas para assistir a
filmes destes autores.)
A melhor arte portuguesa é aquela que não é conspurcada pelo
público. Portanto, melhor do que a arte portuguesa escondida, só a arte
portuguesa que fica por fazer. Daí que, por cada ano que permanece falecido,
João César Monteiro é cada vez mais o melhor realizador português da
actualidade. Merecia mais respeito pelos colegas.
Esta crónica foi publicada na Revista 2 da edição de 24
Novembro de 2013
Sem comentários:
Enviar um comentário