domingo, 24 de novembro de 2013

O recurso à violência política é constitucional?


O recurso à violência política é constitucional?
O problema é que se abdicar de um discurso panfletário Soares corre o risco de cair no torpor que hoje contamina o PS
 24 nov 2013  Público /Opinião Manuel Carvalho

1- O recurso à violência enquanto instrumento de acção política será constitucional? Por paradoxal que pareça, a conferência que nesta quinta-feira reuniu umas centenas de pessoas em torno de Mário Soares em defesa da Constituição não teve tempo, nem agenda, para discutir esta questão. Mas devia. Quando Mário Soares diz que Cavaco Silva deve demitir-se da Presidência enquanto pode “regressar a casa sossegado”, não está a deixar no ar apenas mais um aviso: está a verbalizar uma ameaça. Soares não apelou à força da rua e não será Soares a pegar num pau para afastar Cavaco de Belém, mas, num tom algures entre o desejo e a advertência, foi dizendo que a permanência do Presidente acabará por “gerar uma onda de violência” que o obrigará a renunciar. Se por acaso alguém ficou com dúvidas sobre até onde ia o aviso de Mário Soares, Vasco Lourenço tratou de as desfazer: “Eles ou saem enquanto têm tempo ou qualquer dia vão ser corridos à paulada”.

Não se sabe se na mente de Lourenço passa a imagem de um golpe militar ou de uma rebelião civil que assalte o Parlamento com o apoio da polícia. Sabe-se sim que há quem pense neste país que a defesa da Constituição exige a queda do Presidente através de meios não previstos na Constituição e que esse supremo objectivo há-de ser conseguido tarde ou cedo, a bem ou a mal. Não estando previstas para breve essas coisas aborrecidas nas quais o povo submisso elege “Cavacos” e “Passos”, restam duas possibilidades: ou os violadores da Constituição saem a bem ou o povo correrá com eles “à paulada”.

O ar que se respirou na Aula Magna teve um perfume da Primeira República. Dizer que por ali se viu “Mário Soares no seu constrangedor percurso actual” reunindo “um leque de múmias ressentidas com a evolução da política”, como o fez José António Lima, no Sol, é excessivo. Todas as evoluções da política dispensam o conformismo e há “múmias” cuja inteligência, lucidez e sentido da História fazem hoje muita falta. Pacheco Pereira, por exemplo, faz muita falta. E Soares também, desde que se embrulhe o seu radicalismo numa aura romântica, que fica bem a um homem com o seu passado, e se perceba que é mais dado a exaltar valores do que a propor as condições para os concretizar.

Portugal, diz Soares, está “a caminho de uma ditadura”, mas ele não nos explica que regime nasceria na sequência de uma revolta violenta. Uma democracia popular, como as que tanto combateu no passado? O problema é que se abdicar de um discurso panfletário Soares corre o risco de cair no torpor que hoje contamina o seu partido. A menos que ouse dar a resposta à pergunta de um milhão de dólares que o PS não é capaz de dar: deve ou não deve o país recusar a austeridade da troika e pagar os custos respectivos, que podem passar pela renegociação da dívida e pelo regresso ao escudo?


Estando dependente da ajuda financeira externa e das suas imposições, o cenário de mudança proposto por Mário Soares e pelos que acorreram à Aula Magna não acontece com uma simples mudança de rostos. Portugal pode e deve ser melhor governado, mas nenhuma governação radicalmente alternativa será viável sem que a troika se vá embora. Alguém acredita que o FMI, o BCE e a Comissão Europeia iriam perdoar a um novo Governo e a um novo presidente, eventualmente surgidos na sequência de uma acção violenta, cortes nos salários e nas pensões? Em tempos, seria possível lançar uma mensagem ao internacionalismo socialista e esperar que daí viessem apoios, como aconteceu tantas vezes no passado. Infelizmente, hoje o discurso da austeridade banaliza-se perante “a crise generalizada da socialdemocracia, depois de capturada pelo pensamento único do liberalismo conservador de Thatcher e de Reagan”, como escreve no Sol Vicente Jorge Silva. Mais do que frustração, a nova ameaça de Mário Soares é um sintoma de impotência. A violência surge na política quando a política fracassou. As ditaduras também – Salazar chegou às Finanças depois de o Estado ter sido confrontado com uma proposta de empréstimo humilhante. Sem uma narrativa europeia capaz de mudar a austeridade punitiva do Sul da Europa, um futuro diferente impõe opções mais drásticas do que os cortes do Orçamento ou a mudança de caras na política. Defendê-las e lutar por elas é legítimo. Admitir sem censura actos de violência capazes de levar à mudança de Governo não é. Por todas as razões e mais uma: é inconstitucional.

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