“As elites da esquerda deixaram de saber falar ao povo.” |
A esquerda sem povo
24 nov 2013 / Público / Jorge Almeida Fernandes
As elites da esquerda deixaram de saber
falar ao povo, abrindo o espaço a Le Pen
1. O divórcio entre a esquerda e as classes populares não é
um fenómeno novo. Os sinais de alarme é que passaram a soar com uma intensidade
inédita, graças à passagem do voto popular para formações populistas e
eurocépticas num grau sem precedentes. A Frente Nacional, de Marine Le Pen, é o
primeiro partido popular francês, designadamente entre os operários: 40% dizem
rever-se nas suas ideias. Poderíamos também referir a Itália. Nas eleições de
Fevereiro, o Movimento 5 Estrelas, de Beppe Grillo, conquistou 40% do voto
operário, à frente de Berlusconi, com 25,8%, e da coligação de centro-esquerda reunida
em torno do Partido Democrático, com 21,7%.
O PSF francês, o PSOE espanhol, o PD italiano ou o PS
português, ainda que invocando sempre “o povo”, não são vistos como “partidos
populares” mas como partidos das classes médias.
A questão pode ser formulada de outra maneira: que
responsabilidade tem a esquerda nos surtos populistas? Escutemos duas opiniões.
Escreveu em 2012 o politólogo francês Laurent Bouvet no livro Le Sens du
peuple: la gauche, la démocratie, le populisme: “Ao longo da última década, um
pouco por toda a Europa e com ganhos no plano eleitoral, [a extrema-direita]
foi ao encontro de aspirações populares abandonadas pela esquerda: o trabalho,
a identidade nacional, o modelo de autoridade sociofamiliar, o sentido de pertença
e de protecção colectiva.” Os “sem-papéis” e as minorias identitárias ou
culturais tornaram-se para a esquerda “um povo de substituição”. Concluía: “A
esquerda perdeu o povo e tem medo do populismo.”
Algo de semelhante dissera, 15 anos antes, o historiador e
jornalista Jacques Julliard: desmoralizado e abandonado pelas elites, o povo
perdeu a sua bússola e a sua identidade para mergulhar no populismo. Acusava as
elites políticas e tecnocráticas da esquerda — e também aqueles revolucionários
“que mudaram de proletariado nos anos que se seguiram a 1968. Substituíram os
operários pelos imigrantes e passaram para estes o duplo sentimento de temor e
de compaixão que o proletário geralmente inspira”.
Observava sobre o tema da segurança: “As classes populares
não são por natureza mais conservadoras ou repressivas; são as mais expostas,
eis tudo” ( La Faute aux élites, 1997). Cinco anos depois, Jean-Marie Le Pen
afastava o socialista Lionel Jospin da segunda volta das presidenciais.
2. Muito se tem escrito sobre a nocividade da crise
financeira para os partidos socialistas ou sociaisdemocratas, mais atingidos do
que os conservadores por terem mais dificuldade em formular um projecto próprio
para a enfrentar. Mas a crise da social-democracia, de natureza estrutural, é
mais antiga.
De forma sumária, pode dizerse que a social-democracia
entrou em declínio no fim dos anos 1970 quando se começou a romper a aliança
entre as novas classes médias urbanas e a classe operária. Esta “coligação”
assentava num crescimento económico acelerado — “os trinta anos gloriosos” —,
na promoção social e na criação do Estado-providência. O modelo de crescimento
foi posto em causa após o “choque petrolífero” de 1973. O keynesianismo que a
ele presidira começou a dar lugar ao neoliberalismo — Reagan e Thatcher.
Como efeito da “era pósindustrial” e, mais tarde, da
globalização, a classe operária viuse “atacada” em termos absolutos e
relativos, arrastando consigo o declínio sindical. O Estado-providência começou
a ser corroído. O “elevador social” desacelerou. A sociedade tendeu a
polarizarse entre beneficiários e perdedores da globalização.
Esta mudança abriu um debate nos partidos socialistas ou
sociaisdemocratas. Como recompor a esquerda política? Uma das tentativas foi a
“terceira via” de Tony Blair, hoje esgotada.
Na França ou na Espanha, parte da esquerda tem-se proposto,
desde o fim dos anos 1990, transferir os esforços de “transformação social”
para a esfera dos direitos individuais.
3. O debate foi reactualizado na preparação da candidatura
de François Hollande. Em Maio de 2011, o think tank socialista Terra Nova,
constatando que “a social-democracia perdeu a sua base eleitoral” e que na
origem da fractura está uma mudança de valores, propôs a construção de “uma
nova maioria eleitoral” excluindo as “categorias populares”.
Vale a pena rever a argumentação: “Historicamente, a
esquerda política reflectia os valores da classe operária, os económico-sociais
e os culturais. (...) A partir do fim dos anos 1970, a ruptura vai
fazer-se em torno do factor cultural. O Maio de 68 arrastou a esquerda para o
liberalismo cultural: liberdade sexual, contracepção, aborto, contestação da
família tradicional. Este movimento sobre as questões da sociedade reforçou-se
no tempo para se exprimir hoje em termos de tolerância, de abertura às diferenças
e uma atitude favorável perante os imigrantes, o islão, a homossexualidade e a
solidariedade com os excluídos. Paralelamente, os operários fizeram o caminho
inverso. O declínio da classe operária — crescimento do desemprego,
precarização, perda da identidade colectiva e do orgulho de classe, dificuldade
de viver em certos bairros — leva-a a reacções defensivas: contra os
imigrantes, contra os assistidos, contra a perda dos valores morais e as
desordens da sociedade contemporânea.”
A ala esquerda socialista, antiliberal no plano económico,
adoptou no plano social e cultural uma linha liberal e multiculturalista. Seria
através de temas “societais” ou “fracturantes” — do casamento gay ao voto dos
imigrantes nas eleições municipais — que a esquerda deveria conquistar a
hegemonia. O espanhol José Luis Zapatero explorou este filão para assegurar a
coesão da esquerda perante a direita. Mas não logrou encobrir a impotência no
plano económico, o que redundou na catastrófica derrota eleitoral de 2011.
Hollande faz, como lhe é próprio, uma arbitragem entre as
várias correntes. Apostou na reconquista do voto popular, quanto mais não seja
por realismo: o corpo eleitoral é maioritariamente composto pelas categorias
populares. Mas “a guerra” entre as duas correntes permanece.
Terá sentido uma esquerda ou um partido socialista sem povo?
No imediato, mais relevante do que as identidades históricas seculares parece
ser a realidade da ameaça populista, sobretudo na França de Marine Le Pen. O
discurso de diabolização é inútil, porque aquilo a que Le Pen responde é ao
sentimento de “abandono” das categorias populares, servindolhes de porta-voz.
O problema é outro, diz hoje Julliard: “As elites da
esquerda deixaram de saber falar ao povo.”
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