Barroso, o mordomo
Daniel Oliveira
8:00 Segunda feira, 18 de novembro de 2013 in Expresso online
A história deu ao ex-maoista Durão Barroso uma dessas
oportunidades históricas que muda a vida dum homem. George Bush precisava de
exibir os seus aliados europeus na injustificável ocupação do Iraque que se
preparava, baseada num conjunto de mentiras. Aznar e Blair foram os únicos que
aceitaram participar numa encenação que pretendia esconder o quase absoluto isolamento
dos EUA nesta aventura. Era necessário um palco longe do mais que seguro
protesto popular - uma ilha era o ideia -, onde houvesse uma base militar
americana que garantisse a segurança do presidente - as Lajes, perdidas no meio
do Atlântico, eram excelentes -, num país com pouca relevância política e
militar - Portugal encaixava - e com um governo disposto a oferecer a sua
imagem a uma guerra absurda só para mostrar serviço. Para o primeiro-ministro
português, era a oportunidade de aparecer na fotografia, mesmo que apenas como
mordomo - na maioria das fotos publicadas nos principais jornais internacionais
ele ficou de fora. E foi nesse momento, pela porta de serviço, que Barroso
conseguiu o sonho de qualquer bom mordomo: ser igual aos senhores que bajula.
Quando foi preciso escolher um presidente para a Comissão
Europeia, as potências europeias procuraram alguém que, que, pela sua
irrelevância política, não viesse a ser um perigo para o poder alemão e
francês. Como segunda ou terceira escolha, encontraram o primeiro-ministro que
tão bem recebera nas Lajes. A posição que tivera sobre o Iraque era
indiferente. O que contava era a sua disposição para moldar todas as suas
convicções aos interesses de quem pudesse alimentar as suas ambições. Ao
contrário doutros, Barroso aceitou interromper o seu mandato no governo
português, entregando o poder ao seu companheiro Santana Lopes. Chegado a
Bruxelas, não desiludiu. Até do apelido que sempre usara (Durão), por não ser
de pronuncia conveniente, ele abdicou.
Em Portugal, muitos foram os que apelaram ao provincianismo
nacional, dizendo que viria a ser benéfico para Portugal ter um português a
presidir a Comissão. Isso dificilmente seria verdade, se o presidente cumprisse
a sua função, que era a de zelar pelos interesses da Europa e não dum Estado em
particular. Mas seguramente não aconteceria com Barroso. Ele trabalharia para
quem tem poder e as suas origens seriam a ultima das suas preocupações. O
mordomo interioriza os valores dos seus senhores e quase sempre se envergonha
do lugar de onde vem. O seu orgulho é servir. Por isso mesmo Barroso foi o
líder europeu mais arrojado (mais do que a própria troika ou FMI) na pressão ao
Tribunal Constitucional português. Alguma vez Barroso se atreveria a dizer
coisas semelhantes sobre o sempre ativo Tribunal Constitucional alemão?
O último vez que José Manuel Barroso mostrou a sua vontade
de servir quem manda foi na semana passada. Perante a abertura de um processo
de análise à Alemanha, obrigatório por esta ter ultrapassado os excedentes
comerciais permitidos pelos tratados (6,5% em vez de 6%), o presidente da
Comissão tentou diminuir o alcance daquilo que parecia um acontecimento
interessante: as regras europeias também se aplicam à Alemanha, ideia peregrina
que causou algum incómodo em Berlim. Barroso desfez-se em desculpas: "Isto
não deve ser entendido como se a Europa estivesse contra a competitividade da
Alemanha. Pelo contrário, é muito bom para a Alemanha e para a Europa, sendo a
sua maior economia, que a Alemanha se mantenha como um país tão competitivo e
níveis de exportação e crescimento destes. Se posso dizer, gostaríamos até de
ter mais 'Alemanhas' na Europa".
Apesar da Alemanha fingir que não o compreende, ninguém terá
de explicar a Barroso o absurdo deste desejo. Por um lado, os excedentes
comerciais alemães, pelo menos na proporção dos últimos anos, criam uma pressão
para a valorização do euro, o que é uma tragédia para muitos países europeus,
impedindo qualquer ajustamento económico. Ou seja, são, para o euro, um
problema tão grave como o oposto. Por outro, o mercado interno europeu não é
compatível com excedentes nacionais destas dimensões. Por uma razão simples:
para alguém vender é preciso que alguém compre. Como nenhum Estado europeu pode
abdicar do enorme mercado em que está integrado, se todos decidirem que só
vendem e poupam, a economia paralisa e ninguém vende nem poupa. Este excedente
comercial alemão, é sabido, é, a par da absurda arquitetura do euro, um dos
maiores problemas económicos atuais da Europa. Que, como avisaram já tantos
economistas, ou é rapidamente resolvido ou destruirá o euro, a União Europeia
e, por consequência, a própria Alemanha. Tratar, como Barroso tratou, esta
questão como um mero pormenor técnico diz tudo sobre a forma como as
instituições europeias há muito desistiram de representar os interesses de toda
a Europa.
Esta vergonha em tentar que a Alemanha, por uma vez, cumpra
os tratados que impõe aos outros, que em tudo contrastam com a vigorosa
chantagem sobre os juízes do Constitucional português, são o retrato da Europa
e das suas instituições. Barroso, pela sua fraqueza de princípios, pela
ausência de coragem política e pela sua subordinação ao poder dos mais fortes
é, ele mesmo, nas funções que ocupa, um retrato do estado da União. Diz-se que,
depois de ter abandonado o País por um melhor emprego, quer ser eleito
Presidente da República portuguesa. Tal desejo só me deixaria muito espantado
se não olhasse para Belém e não encontrasse lá um dos poucos políticos que
ultrapassa Barroso na subordinação de todos os valores à sua própria ambição
pessoal. Mas, mesmo assim, até esta direita, deprimida com o estado em que os
dois partidos que a representam estão a deixar o país, é capaz de encontrar
melhor do que isto.
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