Vereador do Urbanismo
criticado por se manter em gabinete de arquitectura
19 nov 2013 in Público
Patrícia Carvalho
Correia Fernandes diz que será “vereador quatro anos ou
menos, mas arquitecto a vida toda”. Autarca diz que já questionou a Ordem dos
Arquitectos e que esta lhe confirmou que não há incompatibilidade
O vereador do Urbanismo na Câmara do Porto, Manuel Correia
Fernandes, não vai suspender o exercício da actividade como arquitecto nem
abandonar a sociedade familiar de arquitectura e promoção imobiliária que tem o
seu nome. A decisão do socialista está a motivar acesa discussão na blogosfera,
sobre a eventual incompatibilidade de funções, mas Correia Fernandes garante
que já questionou a Ordem dos Arquitectos (OA) e que esta lhe assegurou que não
há incompatibilidade de funções.
O caso foi espoletado pelo também arquitecto José Pulido
Valente no blogue A Baixa do Porto e tem suscitado uma troca de argumentos
entre vários intervenientes, incluindo o próprio Correia Fernandes. Na
sexta-feira, após cinco dias de debate, Pulido Valente citou o artigo 46.º do
estatuto da OA que refere que o exercício da profissão é incompatível, entre
outros cargos, com o de “presidente ou vereador de câmara municipal no âmbito
do que a lei determine”. Correia Fernandes opõe que o termo “no âmbito do que a
lei determine” faz aqui toda a diferença.
“Eu já pedi um parecer à Ordem há quatro anos, quando fui
eleito vereador da oposição, e pedi outro agora, para o caso de assumir funções
de vereador com pelouro. O estatuto refere ‘no âmbito que a lei determine’ e a
lei tem sofrido várias alterações. A última actualização refere apenas que
estas situações precisam de ser comunicadas ao Tribunal Constitucional e à
assembleia municipal”, refere. Correia Fernandes garante que já comunicou o
caso ao TC e que vai ainda enviar para aquele órgão uma lista de todos os
projectos que tem “em carteira”. A Assembleia Municipal do Porto será informada
na primeira sessão, agendada para amanhã. Munido de um parecer positivo da OA —
que também deu, segundo o vereador, um aval positivo ao facto de este ser
ainda, e até às eleições de 19 de Dezembro, o presidente da assembleia geral da
Ordem —, Correia Fernandes aguarda ainda por outro parecer que pediu aos
serviços da câmara.
Mas garante que a sua decisão está tomada. “Eu até podia
sair da sociedade, mas prefiro ser claro. Acordei
O vereador Correia Fernandes também preside à assembleia da
secção norte da Ordem dos Arquitectos com os meus filhos que não faríamos
trabalho para a cidade do Porto, excepto os que estão a correr. E se por
qualquer razão ponderosa aceitarmos algum trabalho na cidade, só o farei se
todos os elementos vierem a público e forem escrutinados. Além disso, nesses
casos, o processo passará para as mãos do presidente da câmara. Não estou
disposto a deixar de poder exercer a minha profissão. Eu sou vereador [do
Urbanismo] quatro anos, se calhar menos, mas sou arquitecto a vida toda”, diz.
Vários casos
O presidente da secção regional do Norte da OA, José
Fernando Gonçalves, confirma que têm sido solicitados vários pareceres sobre
casos similares e que o sentido tem sido o mesmo: “Há cada vez mais arquitectos
em cargos dirigentes em câmaras e, de facto, o que diz a nossa assessoria
jurídica é que a lei não impede o exercício da arquitectura nesses casos”. O
responsável acrescenta que, deontologicamente, há “um dever de isenção — e de
certeza que o arquitecto Correia Fernandes está a par disso — que diz que os
arquitectos não se devem colocar em situações de conflito entre o público e o
privado”. Ou seja, esclarece: “O arquitecto não pode ser julgador e julgado.
Não pode, em qualquer circunstância, avaliar os seus próprios projectos”, diz.
Correia Fernandes diz estar consciente que a sua decisão
“pode ter custos”, mas garante que a questão foi discutida com a maioria
independentes-PS no executivo e que não lhe foi levantado qualquer obstáculo.
“Quando a coligação se proporcionou, comuniquei ao executivo que aceitaria o
cargo, mas que queria continuar a exercer a minha profissão. Não houve qualquer
problema.”
A discussão começou no blogue A Baixa do Porto, a 10 de
Novembro, quando José Pulido Valente questionou: “Seria muito interessante
saber como é que o novo vereador do Urbanismo resolveu o problema da
incompatibilidade entre o emprego e o exercício da profissão”. O arquitecto
frisou que o colega e vereador trabalha com os filhos na Manuel Correia
Fernandes Arquitectos & Associados e levantou dúvidas sobre como é que o
responsável pelo Urbanismo irá compatibilizar isso, concluindo: “Por mim na
situação do MCF não tinha aceitado o lugar para que não houvesse dúvidas, dado
que haverá sempre quem pense que haverá maneira de os corruptores se
apresentarem como anjinhos impolutos e mais que santos cheios de correcção e
lisura... À mulher de César...”.
Nos dias seguintes, Pulido Valente trocou argumentos com
Tiago Azevedo Fernandes, o administrador do blogue, e defensor que a situação
de Correia Fernandes não tem de ser problemática: “A solução não é evitar
assumir responsabilidades públicas, é exercer o cargo com absoluta
transparência, disponibilizando online toda a documentação relevante sobre os
processos em que intervier.”
O próprio Correia Fernandes contribuiria para o debate, ao
responder a José Pulido Valente, na sexta-feira: “Se algum efeito produziu em
mim o escrito de JPV foi o de me ter feito alicerçar melhor a convicção de que
o serviço público implica o escrutínio público de quem o presta sem que para
isso tenha de camuflar a realidade. Agradeço, por isso, ao JPV, o ter-me feito
consolidar a decisão de que serei arquitecto como sempre fui e vereador como
sou agora, neste país que desconfia sempre de si próprio.”
Questão já se colocou na câmara da capital
As dúvidas levantadas agora sobre a situação de Correia
Fernandes na Câmara do Porto são as mesmas que, em 2007, rodearam Manuel
Salgado na Câmara de Lisboa. Este arquitecto era então o “número
dois” da lista do socialista António Costa às eleições intercalares para a
Câmara de Lisboa e a questão surgiu ainda durante o período de campanha
eleitoral. Ao contrário de Correia Fernandes, Manuel Salgado decidiu cessar
toda a actividade profissional enquanto exercesse o cargo de vereador do
Urbanismo. Numa declaração pública, o arquitecto assumiu ainda que se
desvincularia da empresa de que era sócio e onde trabalhavam familiares seus, a
Risco, e que esta se comprometia a não aceitar “novas encomendas de promotores
privados de projectos (...) sujeitos a licenciamento ou autorização da câmara”.
O ainda vereador com o pelouro do Urbanismo (mas já não vice-presidente) da
Câmara de Lisboa justificava, na altura, a sua decisão, escrevendo: “Não podem
subsistir dúvidas sobre a imparcialidade e a transparência das relações dos
titulares dos órgãos municipais e as empresas que em Lisboa podem actuar”.
O Quarteirão das Cardosas e os valores do património
O colóquio “Porto Património Mundial: Boas Práticas de Reabilitação Urbana”, realizado recentemente, veio reforçar aos olhos do público um facto já conhecido nos meios académicos e profissionais ligados ao Património: o da recente e desastrosa intervenção no quarteirão das Cardosas, amparada na indiferença complacente de organismos de tutela e do próprio poder autárquico.
A demolição de edifícios com valor histórico e
cultural, agora substituídos por construções novas, ou o esventramento de outros
para fins de fachadismo, são sinónimos de um modelo de “reabilitação” avesso ao
envolvimento das populações (num centro histórico cada vez mais despovoado, mas
progressivamente “gentrificado”) e orientado em função de interesses
imobiliários, que assim vão ditando um novo modelo de cidade, ao arrepio dos
princípios da teoria da conservação inscritos em documentos normativos
internacionais, dos quais Portugal é co-signatário.
Demolir património classificado do Centro Histórico que ostenta a categoria de Património da Humanidade, numa cidade outrora pioneira no arranque da reabilitação de centros históricos em Portugal, através da experiência do CRUARB, mas hoje particularmente afectada pela crise, é condenável tanto do ponto de vista patrimonial, como pelo que acarreta em termos de exclusão social, ao favorecer a destruição do tecido social e das relações económicas (com destaque para o comércio tradicional, tão marcante na história da cidade) pré-existentes, obliterando a História e as marcas identitárias que são referência de actuais e futuras gerações.
O património pode e deve ser factor de desenvolvimento e bem-estar para as populações que o herdaram e/ou produziram e que com ele se identificam. É possível e desejável conciliar valores de memória (antigo) com os de novo (uso), tal como Riegl os definiu, sem que para isso seja necessário lançar mão de operações de desfiguração com custos imorais.
A intervenção no património histórico ao abrigo de slogans que usurpam a essência do que deveria ser a boa preservação patrimonial, para aplacar consciências mais sensíveis – “construímos hoje o património do futuro” – contradiz e inverte todas as conquistas alcançadas nos últimos 20 anos, quer no âmbito académico, evidenciado pelo número de cursos de Conservação e Reabilitação Arquitectónica (onde pontuam a FAUP e a FEUP) e da Conservação e Restauro e Estudos do Património (onde a Escola das Artes da UCP se destaca na zona norte), quer no profissional, tal como o comprovam o aumento exponencial de técnicos qualificados e agremiações profissionais.
A preservação do Património Urbano depende mais do que nunca de soluções sustentáveis que passem pela promoção dos valores históricos e artísticos associados ao edificado, idealmente apoiadas em actividades económicas que integrem as populações no respectivo território, que excluam cenários pré-fabricados para turista ver.
A autora é docente da Escola das Artes – Arte e Restauro, da Universidade Católica Portuguesa, no Porto, e membro do ICOMOS Portugal - Comissão Nacional Portuguesa do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios
Demolir património classificado do Centro Histórico que ostenta a categoria de Património da Humanidade, numa cidade outrora pioneira no arranque da reabilitação de centros históricos em Portugal, através da experiência do CRUARB, mas hoje particularmente afectada pela crise, é condenável tanto do ponto de vista patrimonial, como pelo que acarreta em termos de exclusão social, ao favorecer a destruição do tecido social e das relações económicas (com destaque para o comércio tradicional, tão marcante na história da cidade) pré-existentes, obliterando a História e as marcas identitárias que são referência de actuais e futuras gerações.
O património pode e deve ser factor de desenvolvimento e bem-estar para as populações que o herdaram e/ou produziram e que com ele se identificam. É possível e desejável conciliar valores de memória (antigo) com os de novo (uso), tal como Riegl os definiu, sem que para isso seja necessário lançar mão de operações de desfiguração com custos imorais.
A intervenção no património histórico ao abrigo de slogans que usurpam a essência do que deveria ser a boa preservação patrimonial, para aplacar consciências mais sensíveis – “construímos hoje o património do futuro” – contradiz e inverte todas as conquistas alcançadas nos últimos 20 anos, quer no âmbito académico, evidenciado pelo número de cursos de Conservação e Reabilitação Arquitectónica (onde pontuam a FAUP e a FEUP) e da Conservação e Restauro e Estudos do Património (onde a Escola das Artes da UCP se destaca na zona norte), quer no profissional, tal como o comprovam o aumento exponencial de técnicos qualificados e agremiações profissionais.
A preservação do Património Urbano depende mais do que nunca de soluções sustentáveis que passem pela promoção dos valores históricos e artísticos associados ao edificado, idealmente apoiadas em actividades económicas que integrem as populações no respectivo território, que excluam cenários pré-fabricados para turista ver.
A autora é docente da Escola das Artes – Arte e Restauro, da Universidade Católica Portuguesa, no Porto, e membro do ICOMOS Portugal - Comissão Nacional Portuguesa do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios
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