domingo, 17 de novembro de 2013

Há um ano que estamos à espera de Merkel. Vai ser preciso começar a fazer qualquer coisa rápidamente.


O FMI e os cabeleireiros

1. Numa semana cheia de más notícias, podemos começar cá por casa.
O relatório do FMI sobre a oitava e a nona avaliação do programa de ajustamento veio relançar o debate sobre os (baixos) salários em Portugal, que a instituição de Washington quer ver ainda mais baixos. Um amigo que acompanha de muito perto as negociações com a troika, dizia-me há dias, meio a brincar, meio a sério, que “eles ainda acham que as portuguesas continuam a ir demasiadas vezes ao cabeleireiro e que os restaurantes e pastelarias continuam demasiado cheios à hora do almoço”. Apesar da caricatura, há muito de verdade nisto. Não por causa dos cabeleireiros, mas por causa da incompreensão da realidade que partilham entre si os tecnocratas da troika. Deixem-me, então, tentar explicar o fenómeno dos cabeleireiros, que é exactamente ao contrário. A razão pela qual ainda é possível frequentar os cabeleireiros (apesar da queda acentuada de clientes) está nos baixos salários dos seus trabalhadores e é ainda um reflexo do relativo atraso económico do país. Em Portugal, é possível lavar e secar, com direito a escolher o champô e a usar um spray para levantar as raízes e pagar por isso 14 euros. Porquê? Não é porque o serviço é mau, mas porque o salário mínimo é tão baixo. Quando, por razões profissionais, tenho de ir ao cabeleireiro em Paris ou Berlim, só o sorriso da menina que me atende e me pendura o casaco já vale mais do que 14 euros. A partir daqui é sempre a contar. Quando chegarmos aí, iremos menos ao cabeleireiro e podemos considerara-nos um país rico. A lógica dos restaurantes é mais ou menos a mesma e a conclusão também: quando todos levarmos marmitas para o trabalho, aí sim, seremos ricos.
Mas esta realidade não encaixa nos modelos do FMI ou na cabeça dos alemães e, portanto, lá vamos nós na onda dos salários baixos, agora para o sector privado. Puro engano, se tivermos em consideração que as empresas privadas ajustaram pelo desemprego, a coisa mais trágica que uma família pode enfrentar, e também pela flexibilização dos salários. Dizia recentemente João César das Neves que, mais uma vez, a economia portuguesa revelava uma grande capacidade de ajustamento e de flexibilidade. É verdade. Mas não sairemos da crise se as instituições que nos aplicam a austeridade continuar a insistir que ganhamos competitividade e disciplina por via dos cortes de rendimentos que já são muito baixos. Esse não é o modelo que nos serve (nunca conseguiremos competir com os salários da China ou de Marrocos) e não foi para isso que passámos os últimos anos a qualificar os jovens para poder dar o salto para um padrão de desenvolvimento assente em mão de obra muito mais qualificada.

2. Dito isto, os sinais que chegam de Bruxelas, de Berlim ou de Paris (Hollande tem de fazer rapidamente qualquer coisa) foram, nestes últimos dias, bastante preocupantes. Os mais preocupantes vieram justamente de Berlim. Demonstram uma vez mais que o empenho europeu de Angela Merkel é um empenho muito relativo, acentuando a deriva alemã no sentido de uma “interpretação britânica” dos seus interesses, como escrevia a Reuters numa análise recente. Ora, com muito mais poder do que o Reino Unido para ditar o nosso futuro, a “britanização” da Alemanha (ou seja, aproveitar da Europa o que interessa e alijar o que não lhe interessa) teria (terá?) um efeito muito mais destruidor para o projecto europeu.
As negociações para a “grande coligação”, que devem estar concluídas no final do mês, não perspectivam nada de bom. Merkel está irredutível quanto à união bancária e quanto à rigidez da austeridade. O SPD pode cair na tentação de ceder na Europa (contrariando o seu discurso) para ganhar alguma coisa na política interna. Se não conseguir um salário mínimo nacional ou qualquer coisa que possa apresentar aos militantes como verdadeiramente “de esquerda”, arrisca-se a ver o acordo chumbar num referendo interno que, em má hora, prometeu.
Na semana passada a tímida mas inevitável iniciativa da Comissão para abrir “uma averiguação profunda” à economia alemã por poder estar a violar a regra segundo a qual superavits da balança corrente com o exterior acima de seis por cento podem pôr em causa os equilíbrios macroeconómicos da zona euro. A Comissão teve de agir porque o Tesouro americano divulgou um relatório denunciando a situação e os seus riscos para a Europa e para o mundo. Barroso disse, com muito jeitinho, que não se tratava de pôr em causa o modelo alemão mas de saber se a Alemanha queria fazer alguma coisinha pela economia europeia. O excedente alemão é de sete por cento e já superou o da China. A decisão da Comissão já mereceu a resposta do costume. “Então nós somos bons e ainda nos criticam por cima?”. Os cinco sábios que aconselham o Governo já exortaram Merkel a não alterar a sua política. Há razões de peso que por vezes não levamos em conta para apostar na poupança e não no investimento e no consumo. Uma delas é o envelhecimento rápido da população alemã. O problema é que aquilo que os alemães conhecem não corresponde a toda a verdade. Se as exportações alemãs não param de crescer (mesmo que mais para fora da Europa), isso também se deve ao euro, que é uma moeda mais fraca do que seria o marco nos dias de hoje. A Alemanha tira um enorme proveito deste factor. O problema é que o excedente alemão tende a valorizar o euro, aumentando ainda mais as dificuldades dos países como Portugal, a França, a Itália para relançar a sua economia. Angela Merkel, de cuja boa vontade ninguém duvida mas da qual continuamos à espera, perdeu a sua margem de manobra para convencer os alemães do interesse que têm no euro e na Europa, quando dedicou o primeiro ano da crise a dizer-lhes que os países cá de baixo passavam demasiado tempo na praia (ou no cabeleireiro), que eram indisciplinados e não gostavam de trabalhar. Caiu numa armadilha da qual agora não consegue libertar-se. E esta é apenas a versão mais benévola do que se passa em Berlim.
Finalmente, em matéria de más notícias, o simples facto de a CSU da Baviera e o próprio SPD admitirem que se possa recorrer ao referendo para questões como maior transferência de soberania para Bruxelas, alargamento da União ou novas ajudas financeiras, é um sinal do qual não estávamos à espera. Os alemães ainda se lembram da forma como Hitler chegou facilmente ao poder. Ou, pelo menos, lembravam-se. A Alemanha declara-se hoje um país normal, o que quer que seja que isto signifique. Não está garantido, nem de perto nem de longe, que esta normalidade, somada à crise europeia, à descrença na Europa que se generaliza e alimenta os partidos extremistas, e às feridas abertas na coesão e na solidariedade do projecto europeu, não venha a acabar bastante mal. Para todos, incluindo a Alemanha.

3. Em pano de fundo, as perspectivas para a economia europeia foram revistas em baixa pela Comissão. A Alemanha desacelera, a França cai, a Itália também, provando que a receita aplicada aos países com ajuda mais a persistência nas políticas de austeridade em toda a parte está a impedir a economia europeia de descolar desta estagnação envergonhada. A receita da senhora Merkel pode ser óptima para o longo prazo. Mas, como já avisava Keynes, no longo prazo estamos todos mortos. No curto prazo o que verificamos é que a economia britânica começou a descolar de tal forma que o Banco de Inglaterra já admite subir as taxas de juro num futuro próximo. A economia americana crescerá este ano 2,8 por cento. Resta o BCE, que não tem de se preocupar com a inflação mas com a deflação (à japonesa), que vai ter de fazer ainda mais para estimular algum crescimento. Há um ano Draghi salvou temporariamente o euro, para dar tempo aos governos de fazerem o trabalho que era preciso para resolver a crise. Há um ano que estamos à espera de Merkel. Vai ser preciso começar a fazer qualquer coisa rapidamente.
Jornalista

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