Irlandeses
Enquanto a desmistificação de
JFK se transforma num negócio rentável, sonha-se em Portugal com o destino
irlandês na crise da dívida
24 nov 2013 / Público/ Teresa de Sousa
Cinquenta anos depois da tragédia de Dallas, a
“desmitificação” de JFK parece estar a transformar-se num negócio rentável. Não
creio que vá perdurar, mesmo que acrescente novos dados sobre a figura que foi,
para muitas gerações, dentro e fora da América, a inspiração de que estavam à
espera.
JFK não era apenas o menino bonito com um pai rico e uma
mulher lindíssima que foi preparado desde cedo para entrar, um dia, na Casa
Branca. “Só imagem, sem qualquer substância”. JFK virou uma página da história
americana, sombria, pesada e pessimista, para passar a escrever outra,
idealista, optimista, confiante em si própria e nas virtudes únicas da
liberdade. Foi o arauto de uma nova geração, formada nas grandes universidades,
liberta do peso do complexo militar-industrial que comandava a política
americana (Eisenhower foi o primeiro a denunciá-lo). No auge da Guerra Fria, a
América debatia a “superioridade” económica e tecnológica do modelo soviético.
Já não nos lembramos disso, mas era assim. A URSS conseguira enviar para o
espaço uma cadela de nome Laika. Kennedy mudou de página porque desafiou os
americanos a provar de novo o seu valor. Transformou-se num ícone, sejam quais
forem as “revisões” do seu papel na política interna e internacional. A sua
juventude e falta de experiência podem tê-lo levado à Baía dos Porcos (operação
lançada pelo seu antecessor, Eisenhower). Acreditou que se podia entender com
Khrutchov e o líder soviético viu nisso um sinal de fraqueza. Aprendeu mas
manteve as suas convicções, que foram decisivas para ultrapassar o momento em
que o mundo esteve mais perto de uma guerra nuclear. Na “crise dos mísseis” de
Cuba (1962) conseguiu evitar o pior sem ceder a Moscovo mais do que o
necessário e sem ceder ao poder militar americano. Percebeu que o mundo era
cada vez mais interdependente e desafiou a América a assumir as suas
responsabilidades internacionais. Foi Johnson que fez aprovar as leis dos
direitos cívicos contra a segregação racial. Mas foi ele que disse aos
americanos que a Constituição estipulava que todos nascem livres e iguais. “O
Presidente Lincoln libertou os escravos há 100 anos e, no entanto, os seus descendentes
ainda não são totalmente livres”.” A retórica é, muitas vezes, a precondição
para a acção”, diz Simon Shama. O irmão Robert não queria o discurso porque
temia o seu efeito nos Estados do Sul, indispensáveis para a reeleição. Ele
fê-lo. Lançou o programa espacial americano que levaria rapidamente ao primeiro
homem na Lua. As suas intuições estavam certas. A sua energia alimentou os
sonhos de várias gerações. Foi também o primeiro Presidente a viver a era da
televisão. O pingo de suor de Nixon contra a sua juventude no debate que
precedeu a eleição foi o momento em que se percebeu que as regras do jogo
político estavam a mudar. “Não é difícil encontrar os momentos em que JFK mudou
radicalmente as coisas”, diz Shama. “É preciso entender qual foi o seu maior
papel: inspirar e encorajar o país a agarrar o futuro, um papel que desempenhou
melhor do que qualquer outro Presidente”, diz Robert Dallek no New York Times.
Foi o primeiro católico de origem irlandesa a ser eleito Presidente. Temos
ocupado os últimos dias a debater a decisão de Dublin de não recorrer a
qualquer programa cautelar para regressar aos mercados e se é boa ou má para
Portugal. Medimos a dureza da austeridade aplicada por eles e por nós. Sonhamos
com o mesmo destino. Vale a pena lembrar as razões pelas quais o Governo e o
Parlamento de Dublin decidiram arriscar esta “saída limpa”. Houve um debate
intenso que começou em Maio sobre qual era a solução com um risco menor. Acabou
por ser a incerteza sobre o que vai fazer a Europa e o que lhe pode acontecer
nos próximos tempos que ditou a decisão de uma saída sem rede. Como disse o
ministro das Finanças de Dublin. Neste clima de incerteza, a negociação de um
programa cautelar colaria de novo à Irlanda o libelo de país em crise.
O Governo irlandês sabe que corre um risco, se a sua aposta
no crescimento económico for travada por circunstâncias externas. Acredita que
essa é a única saída segura para a Irlanda poder libertar-se do peso da dívida.
E crescimento é uma palavra cujo significado os irlandeses conhecem bem. Eram
um dos países mais pobres da Comunidade Europeia até finais dos anos 80.
Decidiram mudar de caminho. A economia cresceu em média seis por cento ao ano
de 1987 a
2007, facto que lhes mereceu o título de “Tigre Celta” e que levou toda a gente
a discutir o “milagre irlandês”. No mesmo intervalo de tempo, passaram de 64
por cento do rendimento médio per capita da União para 136 por cento. No início
da crise o salário mínimo valia 1400 euros. Não desceu muito.
Já muito se escreveu sobre este “milagre” e sobre as
condições que o permitiram. Antes de 1987, estagnação, desemprego, défice e
dívida (125 por cento) eram as palavras que definiam a economia irlandesa. Em
1987, o reeleito Governo do Fianna Fail (o partido governou quase sempre a Irlanda
desde a independência) decidiu mudar de rumo, lançando um programa de redução
do peso do Estado na economia. O seu principal rival, hoje no Governo, apoiou.
Não me esqueço de uma frase de um académico irlandês que veio às “Novas
Fronteiras”, organizadas pelo PS antes das eleições de 2005, para explicar esse
caminho: “Foi duro, até fechámos hospitais”.
A segunda coisa fundamental que fizeram foi apostar na
educação e na formação, aproveitando o dinheiro de Bruxelas. Combateram o
desemprego jovem de uma maneira inteligente e decisiva para o futuro:
incentivaram o seu regresso à universidade para completarem os diplomas com o
conhecimento das tecnologias do futuro. A redução do peso do Estado
permitiu-lhes apostar numa taxa de IRC altamente competitiva que nem a troika
conseguiu mudar (12,5 por cento). A educação mais a taxa, mais a pertença à
Europa e ao euro, mais o inglês, transformaram a Irlanda no destino principal
das multinacionais americanas das novas tecnologias mas também das
farmacêuticas e outras indústrias de ponta, para entrar no mercado europeu.
No processo, conseguiram ganhos de produtividade enormes.
Com a globalização, transformaram a sua posição periférica no centro de
intersecção das duas grandes “placas” da economia mundial: EUA e União
Europeia. A crise financeira rebentou a bolha imobiliária, originada como
noutros sítios pelo crédito fácil, o Governo viu-se obrigado a intervir na
Banca (instado por Berlim e outras capitais que tinham lá grandes
investimentos). A austeridade teve de ser servida em doses gigantescas. Os
rendimentos das pessoas baixaram abruptamente (ainda que de muito mais alto)
quando, ao mesmo tempo, as casas que compraram valiam quase metade. Renovaram o
“segredo” do “milagre económico”: entenderam-se para sair do buraco, negociando
a repartição dos sacrifícios e mantendo um razoável consenso político e social.
É verdade que os partidos irlandeses têm pouco a ver com os
nossos: a sua base é histórica e não ideológica, porque nasceram na guerra
entre De Vallera (Fianna Fail, mais radical) e Michel Collins (Fine Gael),
quando da assinatura do Tratado com o Reino Unido que pôs fim à guerra pela
independência, em 1921. São ambos partidos moderados de centro-direita. Um
amigo que conhece bem a realidade irlandesa dizia-me que o Governo de Enda
Kenny (que se coligou com o Partido Trabalhista) tratou e continua a tratar os
sindicatos “nas palminhas”. Sempre “disposto a negociar e sempre disposto a
explicar”. O “motor” da sua economia continua intacto. Cépticos, desanimados,
furiosos com os bancos, endividados, os irlandeses protestam mas percebem que
têm de ir por aí. É verdade que a economia portuguesa tem pontos fortes que a
tornam menos vulnerável aos movimentos das multinacionais e dos quais esta
crise quase nos fez esquecer. Mas, a partir daqui, é fácil perceber qual é a
maior diferença.
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