Opinião
Carta a Pacheco Pereira – parte II
A hipocrisia tem limites. E o caro Pacheco Pereira, com a idoneidade que o
caracteriza, deveria ter olhos para ver isso.
Permita-me então continuar esta carta de choque e algum pavor, caro amigo, companheiro e camarada Pacheco Pereira, após escutar a sua intervenção no encontro da Aula Magna. Nós tínhamos ficado no ponto em que eu defendi que não se pode sair em auxílio da geração nem-nem (nem estuda, nem trabalha) com políticas nim-nim – nem assim, nem assado, nem de qualquer forma compreensível para quem não se deixe seduzir por vendedores da banha da cobra, tipo António José Seguro.
O problema, portanto, não está no “atacar”, mas em
saber como nos devemos então “defender”, para nos opormos à troika e ao
Governo de uma forma que: a) esteja efectivamente nas nossas mãos; b) não exija
a saída do euro; c) não perore sobre haircuts e reestruturações sem ter
em conta que 35% da nossa dívida está na mão de investidores domésticos e apenas
22% em mãos estrangeiras (o resto, segundo estimativa do Deutsche Bank, é da
troika); d) perceba que, por muito escandalosos que sejam
swaps, PPP e trafulhices financeiras, Portugal continuaria
escandalosamente falido mesmo que eles não existissem.
O Pacheco Pereira tem sido muito claro na defesa de que, em alturas de
urgência e de crise como esta, é necessário escolher o lado da barricada em que
se quer estar. Certo. Só que hoje em dia, mais importantes do que as clássicas
trincheiras pró-governamental e antigovernamental são as trincheiras dos
programas políticos aplicáveis e a dos programas políticos lunáticos – e essas
trincheiras, como na guerra, cruzam-se com frequência. Ora, de que me serve
saltar todo ufano para a trincheira antigovernamental se depois ao meu lado
tenho um combatente por um programa político lunático? Isso só faz sentido numa
ocasião: quando se considera que abater o inimigo é mais importante do que
escolher o amigo. E sobre isso tenho a dizer o seguinte: olhando para os amigos
que Pacheco Pereira tinha sentados ao seu lado na Aula Magna, não admira que
pense assim.Eu não tenho espaço para estar aqui a analisar o currículo de vários companheiros de mesa de Pacheco Pereira, esses profundos indignados pela situação em que o país se encontra, mas passemos ao lado de Mário Soares para nos focarmos apenas num dos principais organizadores do evento e num dos seus últimos cargos públicos: Vítor Ramalho e a presidência do Inatel. E aqui, aconselho a todos os leitores as cinco páginas (pp. 98-102) que o livro Má Despesa Pública, de Bárbara Rocha e Rui Oliveira Marques, lhes dedica: de viagens a Bali a tradutores oriundos da Juventude Socialista de Setúbal, de cuja distrital o senhor Ramalho era presidente, passando pela famosa entrevista pela qual pagou cinco mil euros por ser sua obrigação “promover o Inatel”, o que dali emerge é o retrato do típico político profundamente dedicado à causa pública, no sentido em que ela sempre fez maravilhas por si.
E é por isso, caro Pacheco Pereira, que embora eu simpatize com o seu discurso e comungue de muitas das suas preocupações, não sou capaz de fingir um torcicolo para não ver quem está sentado ao meu lado. Sim, nós precisamos de uma outra política e de outros políticos. Mas não precisamos só disso. Precisamos de uma alternativa consistente. E precisamos – sempre, por razões de memória – de apontar o dedo a quem andou a enterrar o país para agora vir, de pança cheia, armar-se em porta-voz dos pobres e oprimidos. A hipocrisia tem limites. E o caro Pacheco Pereira, com a idoneidade que o caracteriza, deveria ter olhos para ver isso.
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