segunda-feira, 26 de maio de 2014

Nova lei. Na hora de subir a renda não há história que defenda o património


Nova lei. Na hora de subir a renda não há história que defenda o património
Por Marta Cerqueira
publicado em 27 Maio 2014 in (jornal) i online

Dois anos após a lei das rendas, o i foi ver como sobrevivem duas casas históricas de Lisboa. 

Ateneu e Grémio Literário aumentaram as quotas ou encontraram novas formas de exploração
Passar do oito ao oitenta é um eufemismo quando em causa estão os mais recentes aumentos de renda que surgiram com a nova lei. Para algumas colectividades ou instituições em Lisboa, os valores chegam a ser 30 vezes superiores aos que antes eram praticados. O Ateneu da Madre de Deus, na freguesia do Beato, é um desses exemplos. De 15 euros passou agora para 500, sabendo-se de antemão que para o ano a renda vai subir aos 1500 euros, com actualizações anuais sucessivas. O Grémio Literário, na Baixa da cidade, é outro caso. De uma renda de 364 vai passar para 6127 euros.

A solução para já passa por actualizar também o valor das quotas dos sócios, que quase não subiam há vários anos. Mas se o Ateneu ainda prevê usar como estratégia a dinamização de novas actividades, o Grémio Literário, na Rua Ivens, corre o risco de mudar de instalações, já que passou de um contrato sem termo para um prazo de cinco a sete anos.

A nova administração do Ateneu herdou não só a renda actualizada como um espaço com mais de 20 divisões a precisar de obras. "O facto de o Ateneu ter classificação de interesse municipal ajudou a uma negociação da renda, mas, apesar de o aumento ser mais gradual do que estava previsto, continua a ser muito difícil acompanhar essa subida", contou ao i Cristina Almeida.

A presidente, tal como a restante equipa, agarraram neste espaço por se considerarem "filhos do Ateneu": "Crescemos aqui, somos filhos de antigos sócios e até a minha escola primária funcionava nestas instalações", recorda, justificando a vontade de reerguer uma casa com quase 70 anos e que estava em vias de fechar por falta de interessados na sua exploração.

VOLUNTARISMO O Ateneu tem cerca de 700 sócios, mas só 200 pagam quotas de forma regular. A nova administração vai aumentar o valor, que há vários anos está fixado em 12 euros anuais: "Queremos promover o espaço no plano cultural e aproveitar o café que temos disponível, tirando partido da carência deste tipo de espaços na freguesia." Com custos fixos a rondar os 850 euros, a associação sobrevive de subsídios da junta de freguesia e principalmente do empenho dos sócios, que trabalham de forma voluntária. "Só nos falta dormir cá."

Já a vice-presidente lamenta a falta de aproveitamento que o espaço teve nos últimos anos e que levou à sua degradação. "Durante anos, isto servia a uma dezena de sócios que usavam o espaço para ver a bola e beber cerveja", conta Ana Rodrigues, que também dá aulas de Ballet, uma das actividades a decorrer actualmente no Ateneu. Na estratégia da equipa está a promoção de aulas de Dança e Música, a exploração do café e da esplanada e o aluguer das instalações para eventos. "As pessoas têm de ter consciência de que não é possível usufruir de um espaço destes por apenas um euro por mês, os valores têm de ser actualizados", avisou Cristina Almeida.

Com uma área de 600 m2, a actualização da renda pode até nem parecer desproporcional. O presidente da Associação de Inquilinos Lisbonenses lembra, no entanto, o valor acrescido destas instituições. "Pagar 500 ou 1500 por toda aquela área pode parecer insignificante, mas tem de ser tida em conta a importância do espaço na dinamização de toda uma freguesia, dando apoio a jovens e idosos recorrendo só ao trabalho voluntário", ressalvou ao i Romão Lavadinho, defendendo na actual legislação um carácter excepcional para associações e colectividades: "Com esta alteração não digo que teria de ser o proprietário a suportar os custos de uma renda baixa, devia sim ser o governo a subsidiar uma parte, tendo em conta que estas entidades substituíram um trabalho social, cultural, desportivo e até científico que deveria ser da responsabilidade do Estado."

INDEPENDÊNCIA O recurso a subsídios seria a última opção no caso do Grémio Literário, localizado na Baixa de Lisboa. "Queremos manter a independência que nos caracteriza, mas, considerando a alteração que tivemos nos custos fixos, vai ser difícil suportar esses encargos", explicou ao i José Macedo e Cunha, presidente da instituição. De uma renda de 364 euros, que era actualizada anualmente "de uma forma quase insignificante", passaram para os actuais 6127 euros, por uma área de 1800 m2.

"O valor antigo estava desactualizado, mas a verdade é que investimos no espaço mais de um milhão de euros e se esse valor fosse dividido pelo número de meses de renda já não seria considerado ridículo", ressalvou o presidente, acrescentando que as grandes reparações, antes suportadas pelo Grémio, vão passar agora a ser agora encargos do senhorio. Com 1050 sócios, a solução mais imediata passou pelo aumento das quotas de 380 para 420 euros anuais. No entanto, apesar do esforço, os últimos dois anos foram os primeiros em décadas com resultados negativos: "Temos algumas reservas que nos vão ajudar a aguentar uns anos, mas não sei durante quanto tempo mais."

A alteração dos prazos do contrato imobiliário é uma das grandes preocupações da administração do Grémio. De um contrato sem termo passaram a ter prazo de cinco anos, extensível a sete por se tratar de uma instituição cultural. Com este pressuposto, o senhorio pode vir a utilizar o edifício para um qualquer projecto imobiliário.

"É impensável um espaço como o Grémio ficar em risco. Uma mudança de instalações levaria a uma perda de valor do espaço", defendeu, recordando o espírito de uma instituição fundada por figuras históricas como Almeida Garrett ou Alexandre Herculano "e que serviu de cenário aos 'Maias', de Eça de Queirós, também ele um sócio do Grémio". Para José Macedo e Cunha, até a renda do espaço tem história, tendo em conta que numa instituirão com 168 anos as primeiras mensalidades foram pagas em ouro.

Já em 2006, antes da última alteração da lei das rendas, tinha sido acordado com o senhorio um aumento progressivo, que levaria a que só em 2020 se pagasse cerca de 3 mil euros, o que, mesmo assim, representaria só metade do valor actual. "Vivemos dos sócios, mas os pedidos de ajuda têm limites. Numa altura de crise, estas são as primeiras despesas em que as pessoas cortam", alertou. Apesar de o número de sócios não se ter alterado muito ao longo dos anos, tem-se registado uma "ligeira diminuição", além de uma menor frequência do espaço, criado exclusivamente para usufruto dos sócios.


A nova lei do arrendamento urbano já levou ao fecho de algumas instituições consideradas míticas, quer pelo seu valor cultural, quer pela sua importância para a cidade. Exemplo disso é o Cinema King, em Lisboa, que fechou as portas em Novembro do ano passado, depois de a renda ter passado de 4 mil para 12 mil euros. No que diz respeito ao comércio, Romão Lavadinho considera "preocupante" a situação das baixas de Lisboa e do Porto. "As lojas e os restaurantes mais antigos estão quase todos de portas fechadas", alertou o presidente da Associação de Inquilinos de Lisboa, acrescentando: "É por isso que chamamos a isto a lei dos despejos."

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