José Maria
Espírito Santo, o fundador, e os três filhos: Manuel, José e Ricardo
D.R.
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Esta é a primeira
parte da saga da família Espírito Santo, que a jornalista Inês Dentinho
publicou na revista do jornal O Independente em Fevereiro de 2000 e que o
Dinheiro Vivo volta agora a publicar
A Casa dos Espíritos. A história
da única família financeira portuguesa (I)
23/05/2014 |
10:05 | Dinheiro Vivo
Estava um calor
infernal naquele mês de Agosto de 1975, quando o marquês de Deleitosa mandou
abrir os portões da sua finca em Puebla de Montalbán. Iria abrigar os amigos
que durante a Guerra Civil de Espanha tinham acolhido a sua família, em Santa
Marta, sobre o mar de Cascais. A história repetia-se, quarenta anos depois.
Chegaram primeiro
as mulheres e as crianças. Dias mais tarde, a salto, alguns homens da família
Espírito Santo Silva, com dois ou três colaboradores mais próximos.
Para trás
ficavam, quatro meses na prisão e a história de duas gerações dedicadas à
construção do maior banco privado português. Num sopro, o processo
Revolucionário em Curso tomara o Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa
(BESCL), a Tranquilidade e os passaportes dos seus maiores accionistas. As
contas tinham sido congeladas e uma imprevidência estranha deixara-os com pouco
dinheiro fora do País.
A única dinastia
financeira de Portugal chegara ao fim. Aproximava-se a hora de cada um seguir o
seu caminho. Tal como nos romances de Thomas Mann, a decadência dos bisnetos fecharia
o ciclo de uma família que tivera projecção económica, social e cultural nas
três primeiras gerações.
Para os Espírito
Santo, os calores daquele Verão de 75 passam-se entre as sombras dos pomares de
Deleitosa, os mergulhos no Tejo e a sensação única de estarem juntos e a salvo.
Dão-se conta de que só se têm uns aos outros e mais uma colecção de amigos
influentes no estrangeiro. O próprio marquês dirige, nessa altura, o Banco
Exterior de Espanha. É sogro da duquesa de Badajoz, irmã do rei. E não faltam
telegramas de apoio dos Rockfeller, de Giscard d'Estaing, de D. Juan Carlos, do
conde de Paris, Richard Nixon e Bernardo de Holanda.
"Tínhamos
uma coisa muito importante: um nome capaz de abrir portas no estrangeiro"
explica José Manuel Espírito Santo. Mesmo sem o banco, mantinham-se no inner
circle mundial. Numa tarde, à volta da mesa, decidem continuar juntos. Como se
de uma jura se tratasse. E reerguer o grupo que o avô José Maria E.S.,
levantara do nada nos últimos anos de Oitocentos.
Dava origem a uma
família invulgar. Os Espírito Santo atravessam a crise da monarquia, o caos
republicano, o marasmo salazarista e o saque da revolução com a fleuma de quem
tem um caminho só seu. Imperturbável, até nas rupturas que a vida impõe a
qualquer clã. Têm morrido cedo, os seus chefes. Mas redescobrem-se entre si. Como
se tivessem combinado continuar a saga do homem que um dia nasceu incógnito, no
72 da Travessa dos Fiéis de Deus, em Lisboa.
O primeiro milhão
Foi em 1850,
"aos vinte dias do mês de Maio de mil oitocentos e cincoenta Baptizei -
José - que nasceu a treze do corrente ano, filho de Pays incógnitos,
apresentado nesta Igreja pela parteira Hipólita Joanna", dita o padre
Joaquim, coadjutor na igreja da Encarnação.
José tomará o
nome de Maria, Mãe de Deus, sua madrinha de baptismo; do Espírito Santo, quando
se crisma; e Silva, talvez como seu pai. Carlos Damas, do arquivo histórico do
BESCL, segue a pista do conde de Rendufe, intendente-geral da Polícia. Atribui-lhe
a paternidade da criança nascida nos Fiéis de Deus. Tem até um retrato do
fidalgo pendurado numa das salas da Rua do Comércio. O conde era padrinho de
Maria Angelina, que criou o rapaz, a quem nunca fez passar as privações comuns
a estas crianças na Lisboa dickensiana do século XIX. "Mas factos só com
provas", adiantou o arquivista.
A verdade é que,
aos 19 anos, quando José Maria casa pela primeira vez, já é dado como cambista
estabelecido no 91 da Calçada do Combro. Um sucesso precoce que sugere apoio
familiar.
Começa por
distribuir cautelas da lotaria espanhola. Aproveita a enchente de carlistas,
que, na década de 70, procura abrigo em Lisboa. São anos difíceis para José
Maria E.S. O negócio envolve riscos que as crises financeiras de 1875-76 vêm
aprofundar. À febre bancária, seguem-se insolvências das casas de crédito.
Numa das suas
cartas, José Maria escreve: "Trabalho até às duas da noite e sendo 5 ou 6
da manhã, volto ao trabalho das facturas, pois o dia não me chega, às vezes
para fazer compras e vendas e cobrar outras vendas já feitas a prazo, de
bilhetes e prémios."
Os registos do
jovem cambista denunciam um controlo apertado nas contas e a caligrafia
irregular de quem pouco estudou. Doseia risco com minúcia. "Mais vale
perder pouco e cedo do que muito e tarde", escreve em Março de 1878,
descontente com o negócio dos cupões espanhóis. Dedica-se à compra e venda de
títulos nacionais e estrangeiros. Aproveita uma breve alta da economia. Mas
abusa da atenção. Assina jornais estrangeiros para estar mais informado do que
a concorrência. E nunca deixa de ir à Bolsa de Lisboa, todas as tardes, para
acompanhar a evolução das cotações.
Reinveste sempre.
Como se soubesse cedo onde vai chegar. Compra lotes no Passeio Público, que -
sabe - será arrasado para a abertura da grande Avenida da Liberdade. E descobre
Campo de Ourique, antes da hora. Arrenda ali a exploração de uma pedreira e
passa a vender lotes construídos. Em dez anos faz o seu primeiro milhão.
Regressa à banca.
Por várias vezes, José Maria E.S. desfaz as sociedades bancárias. Sabe que o
seu único capital de risco é a confiança dos depositantes. "My word is my
bond." E não tolera as dívidas dos sócios. Obriga-os ao acertar as contas
mas, curiosamente, volta a tomá-los como parceiros.
Na decada de
1890, o Ultimatum inglês, as conspirações republicanas e a falência de Baring
Brothers - banqueiros do Governo - desencadeiam uma crise financeira que leva
Portugal a abandonar o regime do padrão-ouro.
José Maria
obriga-se a uma pausa bancária (1889-97). O seu património soma já 500 contos
de reis. Uma fortuna. O cambista passa a comprar prédios por toda a cidade. Prefere
a Lapa, Arroios, Santa Engrácia, Santa Isabel e o Chiado. E não dispensa um
conjunto no Paço do Lumiar.
É nesse altura
que casa, pela segunda vez, com Rita Ribeiro. Uma mulher "muito mais nova
e muito bonita", que lhe dá quatro filhos: Maria, José, Ricardo e Manuel.
Estamos no início
do século XX. José Maria tem pouco mais de 50 anos, mas sente-se doente. Passa
temporadas cada vez maiores em Interlaken, nos Alpes suíços, de onde escreve a
sua mulher insistindo na disciplina de estudo dos três rapazes. Sobretudo nas
línguas. Manda o mais velho para a Merchiston Castle School, em Edimburgo. Quer
dar-lhe uma formação capaz de o preparar para o governo dos negócios.
Imparável, ainda
aposta em África (1906). Tem açúcar em Moçambique e algodão em Angola. Investimentos
seguros, mesmo nos anos que anunciam a desordem republicana. José Maria E.S.
nunca se envolve no carrossel político que, há 20 anos, preenche a agenda do
País. Não tem qualquer contacto com a oligarquia política e económica do seu
tempo. É um homem que vive apenas para a construção de um império que quer
deixar aos filhos. Morre em 1915.
Só o seu
testamento denuncia uma timidíssima preferência política. Da metade disponível
da herança, distribui 30 contos por asilos e albergues de infância desvalida. Neles
se destaca a sociedade de beneficência do muito republicano José Estevão.
Um escândalo em
Lisboa
Com os mesmos 19
anos com que seu pai começara a trabalhar, José E.S. assume a liderança dos
negócios da família. Acompanhara as lides financeiras nos últimos dois anos e
tem uma estratégia. Traz de Inglaterra a ideia de lançar uma rede nacional de
balcões, como nunca se vira em Portugal. Uma teia parecida com a do Midland
Bank, que captasse os abastados depósitos da província. Muito em breve, os
velhos sócios de seu pai vão virar-se contra o rapaz.
As convulsões
políticas e cambiais na Primeira República sugerem aos mais conservadores menos
experiências. De 1914 a
1920, o custo de vida subira 14 vezes. Em 1918, Sidónio Pais é assassinado e um
ano depois surgem movimentos restauraccionistas no Norte. A violência, o
terrorismo e os golpes de Estado multiplicam-se, criando um clima de nervosismo
nos capitais.
Por outro lado,
os verdes anos de José E.S. oferecem aos seus sócios uma oportunidade única
para tomarem o controlo da casa bancária. O projeto de construção da importante
filial do Porto dará pretexto para um ultimato ao herdeiro. As múltiplas
condições eram "indiscutíveis" para os sócios. Como indiscutíveis
foram para José Espírito Santo. Sem resposta, a questão morreria num acordo,
três meses depois, que dava a posse integral da casa à família. A 9 de abril de
1920, lançava-se finalmente o Banco Espírito Santo, SARL. José E.S. chama então
uma nova equipa de colaboradores. São técnicos, advogados e comerciantes -
pessoas que estabelecem pontes com outros negócios. Quer a ligação do capital
financeiro ao capital comercial e industrial. Na mesma linha, fortalece as
companhias africanas.
Também na casa
dos Espíritos havia novidades. Depois dos estudos em Edimburgo, Ricardo casara,
em 1918, com Mary Cohen, uma bonita judia de 16 anos, filha de um conhecido
financeiro de Gibraltar. José E.S. pelo seu lado, apaixonara-se pela irmã, Vera
Cohen, também ela de uma beleza que fica na história. Mas Maria - a irmã mais
velha dos dois irmãos - "não aprova o namoro", que repete as
famílias. Programa um casamento mais pensado: Maria José Borges Coutinho seria
a mulher ideal para José E.S.
A ideia dos
amores contrariados resulta provisoriamente. José E.S. e Vera Cohen passam anos
separados. Ele casa e tem três filhos. Ela também casa, mas não chega a ser
mãe. Um dia, em 1932, recebe um recado. José E.S iria raptá-la nessa noite. Vera
Cohen "vai dormir a casa de umas tias de onde partem juntos, de comboio,
para Paris", conta Maria João Bustorff, [no ano 2000] presidente da
Fundação Ricardo Espírito Santo.
O escândalo ecoa
na pequeníssima Lisboa dos anos 30. À excepção do duque de Palmela, "todas
as portas se fecham ao novo casal". E a presidência do banco passa, de
imediato, para Ricardo E.S., a quem José E.S. vende todas as acções da
instituição de crédito. Salva-se, assim, a jóia do grupo.
José e Vera E.S.
instalam-se em Paris num apartamento Belle Epóque, em Passy. Priva com os
duques de Windsor e estabelece contactos internacionais úteis ao grupo em
Lisboa. Interessa-se por outras áreas financeiras. "A indústria dos
seguros apaixonava-me pela sua complexidade e diversidade." Desde sempre.
Tornara-se accionista da Tranquilidade Portuense, logo em 1918, e vai convencer
os irmãos a incluírem a empresa no grupo Espírito Santo.
Regressa a
Portugal em 1937, onde passa a viver os melhores seis meses de cada ano, no
Estoril. O seu irmão Ricardo devolve-lhe as acções ao preço de custo. "Coisa
que os irmãos Sousa, do Fonsecas, nunca conseguiram entender", comenta
Ricardo Salgado, actual presidente do grupo.
Até ao fim dos
seus dias, José E.S. será consultado sobre as grandes questões do grupo como
presidente do Conselho Geral do BESCL. É considerado o melhor técnico
financeiro de sempre da família. Domina a estratégia sem desconhecer a
oportunidade: "É a eminência parda do banco, quem realmente manda nas
questões fundamentais", explica Ferreira Neto, [no ano 2000] presidente do
BIC.
Exigente, quase
duro, José E.S não dá largas à bonomia tão repetida nos seus irmãos Ricardo e
Manuel. Assim parece. Mas quando morre, em 1968, entrega o terço disponível do
fartíssimo testamento a todos os empregados do banco e da Tranquilidade. Privilegia,
sobretudo, os que o serviram nos anos mais difíceis da Grande Guerra e da
década de 20.
Íntimo de Salazar
Mais afortunado
seria Ricardo E.S., de 1932 a
1955. Colhe os dividendos que a II Guerra Mundial traz a Portugal e à Suíça e
vive os melhores anos do regime num excelente trato com Salazar.
Seguindo os
conselhos do irmão mais velho, será o inventor da banca de retalho em Portugal,
antes de Cupertino de Miranda. Logo em 1937, compra o Banco Comercial de
Lisboa. "A fusão foi deitar uma parede abaixo e descobrir que havia um degrau
de diferença entre os pisos", lembra um funcionário. Mas não só. O
Comercial dava aos Espíritos um corpo financeiro apto para fazer músculo com os
benefícios da guerra. As importantes transacções internacionais, sobretudo de
volfrâmio, passam pelo BESCL e dão-lhes uma base para crescer.
As teses de
Fernando Rosas e António Louçã atribuem uma tendência germanófila a Ricardo
E.S., durante a II Guerra Mundial. Sabe-se que o banqueiro foi preso pela
Resistência francesa, em Abril de 1945, e António Telo atribui essa prisão aos
negócios do BESCL com a Alemanha. Mas, pelo seu lado, Carlos Damas, do arquivo
histórico do BESCL, vai publicar em breve outra tese sobre a travessia do Banco
nos anos da guerra ["O Banco Espírito Santo", Vol. I, Lisboa BES,
2004]. E guarda cartas - que não mostra - de israelitas americanos agradecidos
pelo apoio recebido na aflitiva escala de Lisboa.
Atribui-se ao
sangue judeu das irmãs Cohen a ajuda que o banco terá dado aos judeus que por
cá passavam, rumo às Américas. Mary convertera-se ao cristianismo para casar
com Ricardo E.S. Mas, quando morreu, tinha escondido, do lado do coração, um
alfinete com mais de vinte medalhas de santos onde se via o brilho de uma
pequena estrela de David.
Os arquivos do
BESCL, que poderiam ajudar a esclarecer a questão, foram sendo destruídos por
sucessivas vagas de aproveitamento de espaço.
Certo é que o bom
trato social de Ricardo e Manuel E.S. transformam o grupo num íman de
interesses internacionais. Pelas casas dos três irmãos passam todas as cabeças
coroadas europeias que tinham procurado refúgio em Portugal. A pedido de
Salazar, Ricardo E.S. recebera também os duques de Windsor, durante o mês de
Agosto de 1940. Hitler entra em Paris e Churchill ainda não destinara o governo
das Bahamas ao antigo rei de Inglaterra.
Entre o Eixo e a
Aliança inglesa, Salazar balance. Em Abril de 1944, o presidente do Conselho
está submetido a uma enorme pressão. Há desassossego no ar, novos rumores de
greves, escassez de pão e são encontradas bombas relógio nas linhas férreas que
conduzem a Espanha.
Mas a maior
pressão vem de fora. Churchill quer uma definição de Portugal e Berlim aguarda
a resposta de Lisboa. É do banqueiro que Salazar obtém mais uma informação
preciosa: o embaixador do III Reich "confessa a Ricardo Espírito Santo que
será retirado de Lisboa se for imposto à Alemanha um embargo total", como escreve
Franco Nogueira.
Ricardo E.S. é
íntimo de Salazar. Tanto quanto o presidente do Conselho tem intimidade com
alguém. "Quem cooptava os amigos era Salazar", precisa Augusto
Athaíde. "Governava com a sua equipa ministerial mas contava com uma
segunda estrutura que ouvia à hora do chá."
Se os irmãos
Sousa - do Fonsecas - eram mais chamados para dar crédito às obras do Regime,
Ricardo E.S. é o banqueiro mais ouvido pelo presidente do Conselho. O que não
deixa de ser estranho. O banqueiro representava tudo o que Salazar queria à
distância. Era viajado, riquíssimo, boémio, esteta, independente e entrara
directamente para o topo da sociedade lisboeta.
Em Ricardo E.S.,
por outro lado, também não se adivinha qualquer interesse em Salazar que escape
à navegação económica e financeira dos Espíritos. "Portugal é a excepção.
À sua maneira, cada um é profundamente nacionalista, amante de Portugal",
diz quem os conheceu.
Apego à estética
Desde os 16 anos
que Ricardo E.S mostra interesse por tudo quanto é português. É gozado em casa,
pelos irmãos, quando faz a sua primeira compra: um tapete de Arraiolos do
século XVIII, "em péssimo estado". Numa tasca de Torres Vedras ouve o
barulho de uns talheres mais pesados na cozinha e quer saber do que se trata. A
sua segunda compra é esse conjunto de prata do século XVIII, com estojo de
tartaruga.
A jornalista
francesa Christine Garnier escreve: "Acometido por uma espécie de febre,
de frenesim, deitou-se a viajar pelo mundo em busca de quadros, móveis antigos,
joias, pratas, porcelanas e bibelots raros [...] Sempre que encontra no
estrangeiro alguma coisa bela com a marca de Portugal, apressa-se a comprá-la
para a trazer, com amor, de volta ao seu País."
Conta-se até que,
durante a guerra, Ricardo escapou de um atentado da Resistência francesa,
descontente com tamanhas transacções. Terá sido salvo pelo dono de uma fundição
de Oeiras, com melhores contactos na mesma Resistência.
Junta a maior
colecção de peças portuguesas e francesas do País. Em 1947, compra o Palácio
Azurara, às Portas do Sol, onde instala os objectos nacionais. Antes de morrer,
em 1953, oferece o museu ao Estado, com uma escola de restauro. Escandaliza-se
com o estado do património português e previne maiores estragos.
Na mesma linha,
entende o génio de Amália Rodrigues e dá-lhe mundo. As suas casas são palco
para gente do teatro, da música e da cultura. Num compromisso raro entre boémia
e tradição, Mary Cohen dá abrigo a tamanha existência. Tem mundo. "Era
considerada uma das mulheres mais cultas e elegantes de Lisboa. Pierre Balmain
tinha o seu manequim em Paris. Na Primavera e no Outono mandava-lhe amostras e
modelos com comentários e recomendações", conta a neta, Maria João
Bustorff.
O apego à
estética e a proximidade com o presidente do Conselho levam Ricardo E.S. a
atitudes inesperadas. Quando Salazar decide comprar uma residência oficial em
S. Bento, em Abril de 1939, o banqueiro surge como mecenas do Estado. "Para
guarnecer a parte oficial contribui Ricardo Espírito Santo, que, sem
conhecimento de Salazar, fornece gratuitamente algumas peças de sua propriedade
pessoal", escreve Franco Nogueira.
Será pouco
provável que o minucioso político não tenha conhecido a origem dos objectos de
arte. A relação com o banqueiro era demasiado próxima, como se repara num
"pormenor de interesse" que o biógrafo de Salazar escreve sobre
Christine Garnier, a quem se atribui um romance com o presidente do Conselho. "Todas
as despesas de C.G. - transportes, hotéis, viagens, presentes - eram
integralmente pagas pelo bolso de Salazar. Geralmente eram liquidadas por
Ricardo Espírito Santo, a quem Salazar reembolsava por cheques, cujos talões
encontrei entre o seu espólio." Na lista dos seis homens que Garnier
"julga poderem informá-la sobre o Chefe do Governo", estão, à cabeça
Mário de Figueiredo, Manuel Cerejeira e Ricardo Espírito Santo.
O fim de um ciclo
São múltiplos os
investimentos estratégicos que unem Salazar a Ricardo E.S. O presidente do
Conselho conta com o banqueiro para preparar o financiamento da Ponte sobre o
Tejo e para fundar a TAP e a Sacor. A última, com o romeno Sein e Queirós
Pereira. "O Estado precisava que as empresas nacionais desenvolvessem a
autonomia do País", explica Carlos Damas, do Arquivo Histórico do BESCL. Também
o Hotel Ritz foi uma encomenda feita por Salazar a Ricardo E.S. e Manuel
Queirós Pereira. Fazia falta em Lisboa um hotel com categoria para receber as
mais ilustres personalidades estrangeiras.
Mas nem sempre os
dois homens se entenderam. Divergiram, pelo menos, em três grandes questões. No
pós-guerra, o banqueiro insistiu na necessidade absoluta de Portugal aceitar o
Plano Marshall; Espírito Santo sentiu os limites impostos pelo presidente do
Conselho a investimentos no estrangeiro; e não reconheceu grandes vantagens
oficiais no desenvolvimento económico das províncias ultramarinas. "Salazar
era um grande financeiro mas à pequena escala", define Ricardo Salgado.
Jaime Nogueira
Pinto adianta: "Salazar aceitara, por necessidade de confiança e
mobilização de capitais, a ascensão destes grupos económico-financeiros, embora
os mantivesse nos limites da sua actividade específica, cortando-lhes o passo
na intervenção política. Controlava-os como um árbitro, mantendo relações
pessoais com alguns dos seus chefes, as quais eram sobretudo de 'cortesia', em
que eram guardadas distâncias e intimidades."
Nada que evitasse
os Espírito Santo de atingir, na segunda geração, o olimpo económico-financeiro
do seu país. Quando Ricado E.S. morre, o BESCL é o primeiro banco privado
português. Destaca-se: tem o dobro dos depósitos em relação ao segundo. E não
só.
A extensa
necrologia do banqueiro das artes, publicada nos jornais de 3 de Fevereiro de
1955, é eloquente: além do BESCL, despedem-se de Ricardo do Espírito Santo e
Silva a Sacor, a TAP, a Cidla, a sociedade agrícola de Cassequel, a sociedade
de algodões de Moçambique e as oficinas gráficas, a que se poderiam juntar
outras empresas como a Tranquilidade, a Previsão e também a Companhia Geral
Resseguradora. Mas também o Sporting Club de Cascais, a Academia dos Amadores de
Música e a Fundação que leva o seu nome. Durante o percurso fúnebre sobrava
povo nas ruas que ligam a Basílica da Estrela ao Cemitério dos Prazeres.
Fechava-se o
primeiro ciclo ascendente da família Espírito Santo Silva.
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