sábado, 24 de maio de 2014

Cais do Sodré. A rua rosa que veio pintar de negro as noites dos moradores


Cais do Sodré. A rua rosa que veio pintar de negro as noites dos moradores
Por Marta Cerqueira
publicado em 24 Maio 2014 in (jornal) i online
A rua principal do Cais do Sodré, em Lisboa, encheu-se de bares e restaurantes nos últimos anos. O que é bom para o comércio tornou-se um pesadelo para os moradores
Com uma garrafa de plástico de litro e meio a passar de mão em mão, Cláudia e David chegam ao Cais do Sodré à 1h30. "Hoje escolhemos vodka com sumo de pêssego, mas gosto mais da mistura de sumos com vinho", conta ao i o jovem de 19 anos, referindo que o seu grupo de amigos leva quase sempre bebida feita em casa para sair à noite. "Apesar de nesta zona as bebidas não serem muito caras, nunca fica tão barato como estas misturas feitas por nós, além de que assim podemos ficar na rua a conversar", acrescenta. Também na rua, à porta do bar Black Tiger, encontramos David e Vasco, de copo de cerveja na mão. Em letras garrafais são anunciadas imperiais a 50 cêntimos, "as mais baratas do Cais do Sodré", garantem os proprietários. "Como nesta zona os bares não são muito grandes e raramente se paga entrada, acabamos por entrar só para ir buscar bebidas e ficamos cá fora a conviver", explicou David, que, tal como o amigo, trabalha num hotel do Cais do Sodré. "O cenário destas ruas de manhã, quando entramos cedo, é deprimente. Temos lixo por todo o lado, um cheiro a urina horrível e mendigos a dormir nas esquinas", referiu Vasco, acrescentando que isso o leva a ter mais cuidado com o lixo e o ruído que provoca enquanto frequentador da zona.

O especial cuidado deste grupo de amigos não é comum às centenas de pessoas que todas as noites enchem o Cais do Sodré. Parte da Rua Nova do Carvalho fechou ao trânsito apenas há três anos, altura em que se apostou na abertura de bares e restaurantes, com esplanadas montadas numa rua que foi pintada de cor-de-rosa. No entanto, ao levantar a cabeça, tirando os olhos da cor da rua, é possível ver estendais de roupa e luzes acesas que denunciam a presença de moradores numa das zonas nocturnas mais movimentadas de Lisboa.

O INFERNO E O MOVIMENTO Isabel Sá da Bandeira vive no Cais do Sodré desde 2006, altura em que encontrou a casa dos seus sonhos numa zona que era considerada calma. No entanto, a realidade do seu dia-a-dia no bairro já a fez esquecer os tempos áureos do bairro. Actualmente queixa-se de não conseguir dormir, dos graffiti nas paredes das casas, das corridas de caixotes do lixo a meio da noite, da sujidade e do mau cheiro constante. "Os bares que estavam abertos quando me mudei para cá eram antigos e, se havia algum problema, passava-se tudo lá dentro. Até já conhecíamos as prostitutas que frequentam a zona. Nunca fomos importunados", explicou ao i. O "inferno diário", como lhe chama, que vive desde que a rua passou a ser apenas pedonal, já a levou a pensar mudar de casa. "Já tinha instalado vidros duplos mas tive de comprar uns ainda mais fortes. O barulho das pessoas nas ruas parece que nos entra pela casa dentro", lamenta. Isabel já presenciou cenas de sexo dentro do seu prédio e em cima dos carros estacionados à sua porta. "Quase temos que pedir licença para entrar em casa, onde normalmente estão pessoas a beber, a conversar até altas horas e que não se inibem de usar a nossa porta de casa como casa de banho", referiu. Além disso, há muito que Isabel deixou de se sentir segura a viver na zona. "Os carros aparecem vandalizados todos os dias. Só este mês já tive de ir trocar os limpa-pára--brisas do meu carro duas vezes. As pessoas nem roubam, é pelo simples prazer de estragar", acrescentou.

Também Ana Andrade, que vive na Praça de São Paulo há 16 anos, acha que a publicidade feita à chamada "rua cor-de-rosa" levou a uma aglomeração de pessoas que não era a prevista. "Criou-se uma identificação com a rua como se fosse um prolongamento dos bares", afirmou. Ana já viu sair do seu prédio muitos vizinhos que optaram por ir viver para uma zona mais calma da cidade. "Aplaudimos a iniciativa de revitalizar o bairro, que poderia ter sido feita em muitas vertentes. Tenho pena que só a vertente da vida nocturna tenha sido posta em prática", critica.

Uma das principais preocupações dos moradores prende-se com a falta da chamada vida de bairro. "O comércio tradicional acabou. A loja de electrodomésticos é hoje uma loja de conveniência e as pastelarias às quais íamos com frequência estão agora fechadas durante o dia para estarem abertas até às 4h da manhã, a funcionar como se de um bar se tratasse", esclareceu.

Os moradores consideram que a zona passou a ser o novo Bairro Alto, mas com piores condições. "O Cais do Sodré é quase o fim da linha da noite. As pessoas chegam cá quando os bares do Bairro Alto fecham, às 2h da manhã, e já bastante bêbadas", lembrou Ana.

Isabel e Ana são duas das moradoras que ajudaram a criar o movimento Aqui Mora Gente, que pertence à Associação de Moradores do Bairro Alto (AMBA). Com perto de cem pessoas, o grupo tem trabalhado junto da junta de freguesia e da câmara municipal para ver algumas das suas exigências satisfeitas. Para Ana "não existe vontade política". "As autarquias têm conhecimento das queixas mas até agora não fizeram nada. Sentimos que fomos abandonados", concluiu.

COMÉRCIO A CRESCER Nestes últimos três anos, o Cais do Sodré viu abrir dezenas de novos espaços, de cafés a restaurantes, lojas e bares. Muitos também alteraram o seu conceito original, de modo a adaptarem-se ao comércio mais nocturno. Graça Maria é sócia do Cantinho do Prazer há 28 anos. O que durante anos funcionou como salão de jogos passou agora a café/bar aberto todos os dias até às 4h da manhã. "Dá gosto trabalhar aqui agora. Antigamente havia menos gente e por isso era uma zona muito insegura", contou ao i.

Tal como explica Gonçalo Riscado, da Associação Cais do Sodré, o licenciamento zero "veio acabar com a burocracia, mas trouxe graves problemas quanto à especificação dos espaços nocturnos". Para Gonçalo, o novo regime, que veio simplificar a abertura e a modificação de estabelecimentos comerciais de restauração, "dificulta a distinção entre o que é um café, um bar e uma discoteca". Apesar de ser proprietário de dois espaços nocturnos do Cais do Sodré, é o primeiro a pedir legislação e fiscalização mais apertada. "Se um café fica aberto até tarde tem de ter espaço para ter as pessoas lá dentro. Actualmente, qualquer buraco se pode transformar num bar aberto até de madrugada", garantiu, acrescentando que "o excesso de pessoas na rua acaba por ser mau para todos: moradores e comerciantes".


As preocupações de Isabel, Ana e Gonçalo não impedem que às 2h da manhã de uma quarta-feira com chuva o entra e sai dos bares seja constante, com o ruído das pessoas a abafar o pouco que se ouve das músicas dos bares.

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