Eles coleccionam detalhes da
arquitectura portuguesa
"Old Portuguese Stuff" é um blogue dos jovens arquitectos
Catarina Santos e Alexandre Gamelas, que visam recolher detalhes
arquitectónicos típicos da realidade portuguesa
Texto de Ricardo
M. Alves • 27/05/2014 – PÚBLICO / P3
Do barroco ao
moderno, do puxador à escadaria, do Norte ao Sul de Portugal. Catarina Santos e
Alexandre Gamelas fotografam aqueles requintes dos edifícios que parecem
desaparecer num cenário alargado, mas que quando vistos à lupa revelam segredos
sobre a identidade de um país. Falamos com eles sobre o blogue Old Portuguese
Stuff, onde aglomeram esses registos, e sobre a realidade da arquitectura
portuguesa.
Para a reverência
que vocês têm pelos materiais que catalogam, Old Portuguese Stuff parece um nome
muito informal.
Catarina Santos —
Sim, é um bocado [risos]. Mas o âmbito do blogue é demasiado amplo para fechar
numa palavra que não seja genérica. Recolhemos detalhes arquitectónicos de
todas as correntes e formatos, o critério é apenas que esteja bem construído e
seja um retrato da realidade portuguesa.
Alexandre Gamelas
— Sim, e o que acontece muito em Portugal é o discurso sobre arquitectura ser
muito formal, muito académico. Enquanto estivemos a trabalhar nos Estados
Unidos havia um diálogo muito mais relaxado com a arquitectura.
Vocês começaram o
Old Portuguese Stuff quando ainda estavam a trabalhar em Nova Iorque — foi por
causa da saudade?
CS — Sim, foi
isso [risos].
AG — Também foi
isso, mas também foi uma ideia que nos surgiu naquele momento e naquele lugar
porque nos escritórios onde trabalhávamos havia uns cadernos que não se
encontram em Portugal. São pequenos compêndios de pormenores arquitecturais
como caixilhos, portas, corrimões. Como o trabalho que fazíamos lá era uma
arquitectura bastante tradicional, usávamos estas pequenas revistas como
ferramentas de trabalho, como referência. Claro que a nostalgia por Portugal
foi um grande motivador, mas a ideia para o blogue foi também construir uma
base de dados semelhante, que nos fosse útil a nós mas também a outros
arquitectos.
Isso explica um
pouco a transversalidade do blogue — vocês cobrem desde estruturas como
escadarias a detalhes como puxadores. Mas também cobrem muita área, com
fotografias do Norte ao Sul do país. As fotografias são todas recolhidas só por
vocês?
CS — Sim, todas
as fotografias são nossas. Temos alguma facilidade nessas viagens porque eu sou
da Batalha, e o Alexandre é da Guarda — acabamos por circular bastante. E
nessas viagens aproveitamos sempre para recolher algumas fotografias — algumas
viagens fazemos de propósito para recolher material, noutros casos são só
oportunidades que surgem durante passeios.
AG — Quando
começamos o blogue já tínhamos um arquivo enorme, porque sempre tivemos esse
gosto por tirar fotografias de detalhe em viagens.
Há algo de missão
aqui?
AG — Um pouco,
talvez. Acho que ainda temos muito material à espera de ser encontrado, há um
trabalho de memória que seria interessante fazer com o património que temos que
está abandonado ou até a ser destruído.
Vocês já voltaram
a Portugal há cerca de três anos. Como vêem a acção de recuperação que está a
ser feita — como por exemplo no caso dos projectos da Sociedade de Reabilitação
Urbana, aqui no Porto?
AG — Pois, por
onde começar...
CS — É assim, é
bom que se esteja a recuperar, porque durante muitos anos não se fez nada. Pelo
menos há um movimento de regresso à baixa e os agentes estão interessados em
recuperar. Só que muitas vezes essa recuperação não é a melhor.
Falta algum
respeito pelos materiais que se recupera?
CS — Sim, a
recuperação muitas vezes não respeita a arquitectura antiga. Muitas vezes se
destrói o que já lá estava para substituír por coisas novas que não estão muito
de acordo com o contexto.
AG — Como a
Catarina diz, essa onda de regresso à Baixa é uma coisa objectivamente boa. Mas
em relação às intervenções públicas, houve coisas muito graves que aconteceram.
Muitas vezes quando o estado intervém parece que apenas piora a situação. Mas
isto não é uma coisa recente, já tem alguns anos. Temos nesta cidade o caso da
Avenida dos Aliados, ou do empreendimento das Cardosas. As coisas estão mais
limpas, mais arranjadas, mas perdem a identidade que tinham.
A acção típica de
levantar a calçada portuguesa e substituí-la por blocos de granito.
AG — Sim, as
intervenções do estado são muito agressivas. Casos assim mereciam uma acção
mais conservadora, algo que se limitasse a uma limpeza de imagem. Desta maneira
os espaços ficam com uma cara lavada, é certo, mas é uma cara que já não é a
deles. Corremos o risco de, repetindo-se demasiadas vezes essa acção, a cidade
perder o seu tom característico. Isto é uma situação que não se verifica quando
a intervenção é feita a título indivdual pelos proprietários, aí há menos
perigo de se perder património. As más acções aqui são minoritárias, o efeito
nocivo dilui-se.
As fachadas
azulejares são outro exemplo de algo que não é propriamente preservado.
AG — Sem dúvida.
Nesses casos até se faz algo ainda pior — pelo menos para nós que somos
puristas — que é produzir industrialmente réplicas dos azulejos pintados à mão
que lá estavam. Mas nota-se logo a diferença na técnica estandardizada, o
efeito final é quase uma coisa irónica, grotesca. O edifício parece uma casa de
banho.
CS — É um pouco o
valor que achamos que o blogue tem, o de preservar esse tipo de detalhes que
aos poucos vão desaparecendo e sendo adulterados. E isso acaba por chamar a
atenção a essas falhas na recuperação.
O que é que acham
que contribuiu para essas especificidades da arquitectura portuguesa? Foi o
isolamento do período do Estado Novo?
AG — Essa é uma
boa questão. Eu acho que sim, que essa especificidade na história do nosso país
nos deu algo de único, que não se encontra em cidades espanholas, francesas ou
britânicas. É também por isso que nos damos ao trabalho de captar esses
pormenores, porque temos tendências actuais de recuperação que são substituír
as janelas por caixilhos para vidro duplo em PVC, encher o interior de pladur e
está feita a recuperação. É algo económico por ser massificado. Nós tentamos
desenvolver um trabalho diferente, desenhamos janelas como elas eram desenhadas
há um século.
O que também
caracteriza a arquitectura tradicional portuguesa é a cultura artesã — acham
que é algo que se está a perder?
CS — Agora já
está a haver mais procura outra vez. Mas há uma ou duas décadas atrás não era
de todo o que se fazia, por isso muito conhecimento entretanto desapareceu. Mas
ainda vamos a tempo de recuperar, de dinamizar de novo a produção artesã — ela
ainda não desapareceu completamente.
AG — Sim, já
começa a haver uma procura generalizada. Mas a título de exemplo, nós no ano
passado estávamos a recuperar um apartamento e procuramos peças de substituição
fabricadas através do mesmo processo. Ainda encontramos algumas, mas noutros
casos a frase que mais ouvíamos era "esse senhor já morreu". A gente
chegava à loja de ferragens, escolhíamos determinado tipo de puxador, e quando
tentávamos encomendar em grande número diziam-nos sempre "o senhor que
fazia isso já morreu, não se arranja mais". As fábricas fecham, os moldes
vendem-se, não deixaram aprendizes.
Sendo que zonas
como este centro histórico do Porto são classificadas pela UNESCO como
património da humanidade, a recuperação das práticas artesanais não deve também
caber às entidades públicas ou mesmo comunitárias?
CS — Acho que se
houver procura isso vai reaparecer novamente. Aquele período nos anos 90 em que
se perdeu mais dessa arte deveu-se a falta de procura. Se a procura aumentar,
acho que ainda vamos a tempo de ver o ressurgimento das práticas artesanais.
O mercado livre
também pode funcionar para o bem, então.
AG — Exacto! Mas
sobretudo acho que deve haver da parte das entidades públicas menos preocupação
em construir e mais preocupação em regular. Dentro dos limites do razoável, obrigar
os proprietários à recuperação criteriosa dos edifícios. Acho que aí teríamos
uma acção mais natural em que o património estaria protegido.
Texto editado por
Andréia Azevedo Soares
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