quinta-feira, 29 de maio de 2014

Eles coleccionam detalhes da arquitectura portuguesa


Eles coleccionam detalhes da arquitectura portuguesa
"Old Portuguese Stuff" é um blogue dos jovens arquitectos Catarina Santos e Alexandre Gamelas, que visam recolher detalhes arquitectónicos típicos da realidade portuguesa
Texto de Ricardo M. Alves • 27/05/2014 – PÚBLICO / P3

Do barroco ao moderno, do puxador à escadaria, do Norte ao Sul de Portugal. Catarina Santos e Alexandre Gamelas fotografam aqueles requintes dos edifícios que parecem desaparecer num cenário alargado, mas que quando vistos à lupa revelam segredos sobre a identidade de um país. Falamos com eles sobre o blogue Old Portuguese Stuff, onde aglomeram esses registos, e sobre a realidade da arquitectura portuguesa.



Para a reverência que vocês têm pelos materiais que catalogam, Old Portuguese Stuff parece um nome muito informal.
Catarina Santos — Sim, é um bocado [risos]. Mas o âmbito do blogue é demasiado amplo para fechar numa palavra que não seja genérica. Recolhemos detalhes arquitectónicos de todas as correntes e formatos, o critério é apenas que esteja bem construído e seja um retrato da realidade portuguesa.
Alexandre Gamelas — Sim, e o que acontece muito em Portugal é o discurso sobre arquitectura ser muito formal, muito académico. Enquanto estivemos a trabalhar nos Estados Unidos havia um diálogo muito mais relaxado com a arquitectura.

Vocês começaram o Old Portuguese Stuff quando ainda estavam a trabalhar em Nova Iorque — foi por causa da saudade?
CS — Sim, foi isso [risos].
AG — Também foi isso, mas também foi uma ideia que nos surgiu naquele momento e naquele lugar porque nos escritórios onde trabalhávamos havia uns cadernos que não se encontram em Portugal. São pequenos compêndios de pormenores arquitecturais como caixilhos, portas, corrimões. Como o trabalho que fazíamos lá era uma arquitectura bastante tradicional, usávamos estas pequenas revistas como ferramentas de trabalho, como referência. Claro que a nostalgia por Portugal foi um grande motivador, mas a ideia para o blogue foi também construir uma base de dados semelhante, que nos fosse útil a nós mas também a outros arquitectos.



Isso explica um pouco a transversalidade do blogue — vocês cobrem desde estruturas como escadarias a detalhes como puxadores. Mas também cobrem muita área, com fotografias do Norte ao Sul do país. As fotografias são todas recolhidas só por vocês?
CS — Sim, todas as fotografias são nossas. Temos alguma facilidade nessas viagens porque eu sou da Batalha, e o Alexandre é da Guarda — acabamos por circular bastante. E nessas viagens aproveitamos sempre para recolher algumas fotografias — algumas viagens fazemos de propósito para recolher material, noutros casos são só oportunidades que surgem durante passeios.
AG — Quando começamos o blogue já tínhamos um arquivo enorme, porque sempre tivemos esse gosto por tirar fotografias de detalhe em viagens.

Há algo de missão aqui?
AG — Um pouco, talvez. Acho que ainda temos muito material à espera de ser encontrado, há um trabalho de memória que seria interessante fazer com o património que temos que está abandonado ou até a ser destruído.



Vocês já voltaram a Portugal há cerca de três anos. Como vêem a acção de recuperação que está a ser feita — como por exemplo no caso dos projectos da Sociedade de Reabilitação Urbana, aqui no Porto?
AG — Pois, por onde começar...
CS — É assim, é bom que se esteja a recuperar, porque durante muitos anos não se fez nada. Pelo menos há um movimento de regresso à baixa e os agentes estão interessados em recuperar. Só que muitas vezes essa recuperação não é a melhor.

Falta algum respeito pelos materiais que se recupera?
CS — Sim, a recuperação muitas vezes não respeita a arquitectura antiga. Muitas vezes se destrói o que já lá estava para substituír por coisas novas que não estão muito de acordo com o contexto.
AG — Como a Catarina diz, essa onda de regresso à Baixa é uma coisa objectivamente boa. Mas em relação às intervenções públicas, houve coisas muito graves que aconteceram. Muitas vezes quando o estado intervém parece que apenas piora a situação. Mas isto não é uma coisa recente, já tem alguns anos. Temos nesta cidade o caso da Avenida dos Aliados, ou do empreendimento das Cardosas. As coisas estão mais limpas, mais arranjadas, mas perdem a identidade que tinham.

A acção típica de levantar a calçada portuguesa e substituí-la por blocos de granito.
AG — Sim, as intervenções do estado são muito agressivas. Casos assim mereciam uma acção mais conservadora, algo que se limitasse a uma limpeza de imagem. Desta maneira os espaços ficam com uma cara lavada, é certo, mas é uma cara que já não é a deles. Corremos o risco de, repetindo-se demasiadas vezes essa acção, a cidade perder o seu tom característico. Isto é uma situação que não se verifica quando a intervenção é feita a título indivdual pelos proprietários, aí há menos perigo de se perder património. As más acções aqui são minoritárias, o efeito nocivo dilui-se.

As fachadas azulejares são outro exemplo de algo que não é propriamente preservado.
AG — Sem dúvida. Nesses casos até se faz algo ainda pior — pelo menos para nós que somos puristas — que é produzir industrialmente réplicas dos azulejos pintados à mão que lá estavam. Mas nota-se logo a diferença na técnica estandardizada, o efeito final é quase uma coisa irónica, grotesca. O edifício parece uma casa de banho.
CS — É um pouco o valor que achamos que o blogue tem, o de preservar esse tipo de detalhes que aos poucos vão desaparecendo e sendo adulterados. E isso acaba por chamar a atenção a essas falhas na recuperação.

O que é que acham que contribuiu para essas especificidades da arquitectura portuguesa? Foi o isolamento do período do Estado Novo?
AG — Essa é uma boa questão. Eu acho que sim, que essa especificidade na história do nosso país nos deu algo de único, que não se encontra em cidades espanholas, francesas ou britânicas. É também por isso que nos damos ao trabalho de captar esses pormenores, porque temos tendências actuais de recuperação que são substituír as janelas por caixilhos para vidro duplo em PVC, encher o interior de pladur e está feita a recuperação. É algo económico por ser massificado. Nós tentamos desenvolver um trabalho diferente, desenhamos janelas como elas eram desenhadas há um século.

O que também caracteriza a arquitectura tradicional portuguesa é a cultura artesã — acham que é algo que se está a perder?
CS — Agora já está a haver mais procura outra vez. Mas há uma ou duas décadas atrás não era de todo o que se fazia, por isso muito conhecimento entretanto desapareceu. Mas ainda vamos a tempo de recuperar, de dinamizar de novo a produção artesã — ela ainda não desapareceu completamente.
AG — Sim, já começa a haver uma procura generalizada. Mas a título de exemplo, nós no ano passado estávamos a recuperar um apartamento e procuramos peças de substituição fabricadas através do mesmo processo. Ainda encontramos algumas, mas noutros casos a frase que mais ouvíamos era "esse senhor já morreu". A gente chegava à loja de ferragens, escolhíamos determinado tipo de puxador, e quando tentávamos encomendar em grande número diziam-nos sempre "o senhor que fazia isso já morreu, não se arranja mais". As fábricas fecham, os moldes vendem-se, não deixaram aprendizes.


Sendo que zonas como este centro histórico do Porto são classificadas pela UNESCO como património da humanidade, a recuperação das práticas artesanais não deve também caber às entidades públicas ou mesmo comunitárias?
CS — Acho que se houver procura isso vai reaparecer novamente. Aquele período nos anos 90 em que se perdeu mais dessa arte deveu-se a falta de procura. Se a procura aumentar, acho que ainda vamos a tempo de ver o ressurgimento das práticas artesanais.

O mercado livre também pode funcionar para o bem, então.
AG — Exacto! Mas sobretudo acho que deve haver da parte das entidades públicas menos preocupação em construir e mais preocupação em regular. Dentro dos limites do razoável, obrigar os proprietários à recuperação criteriosa dos edifícios. Acho que aí teríamos uma acção mais natural em que o património estaria protegido.


Texto editado por Andréia Azevedo Soares

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