"Hoje, a União Europeia é um monstro híbrido e
perigoso, controlado por uma burocracia que detesta a democracia e que acha que
“ela” é que sabe como se deve “governar” a Europa e cada país em particular."
OPINIÃO
As eleições que só servem para o
exacto oposto daquilo para que existem
JOSÉ PACHECO
PEREIRA 17/05/2014 - PÚBLICO
Hoje, a União Europeia é um monstro híbrido e perigoso, controlado por uma
burocracia que detesta a democracia e que acha que “ela” é que sabe como se
deve “governar” a Europa e cada país em particular.
Nas eleições
europeias não se discute a Europa porque a Europa que existe não interessa aos
seus apoiantes que seja discutida. E a discussão da Europa que se pretende
fazer, nas candidaturas do “arco da governação”, na comunicação social ainda
mais europeísta, nos meios dos negócios, no “arco dos fundos”, não tem objecto,
nem existe, é uma fábula. É a Europa virtual do wishfull thinking para os
bem-avontadados e aquela cuja retórica serve os empregos e os negócios dos que
estão “por dentro”.
A ficção mais
completa sobre a Europa é falarmos da União Europeia como sendo a Europa
fundada por Monnet, Schumann, Gasperi, Adenauer e outros. Não é. Esta acabou
algures na década de noventa, entre a queda do Muro de Berlim, a unificação
alemã, a entrada dos países do Centro e Leste para União, a guerra na
ex-Jugoslávia. Parece paradoxal que o processo de autodestruição da Europa
comunitária, tal como existia no pós-guerra, tenha tido origem naquele que
parece ter sido o seu maior sucesso: a “unificação” da Europa dividida pela
Guerra Fria, e a extinção da superpotência URSS, cujos tanques permaneciam onde
tinham parado no final da guerra. Mas, desde início, estava-se na pura ilusão.
A derrota da URSS na Guerra Fria deveu-se aos EUA, principalmente à
Administração Reagan, culminando um longo processo de resistência militar, de
“inteligência” e político, para qual a maioria dos países europeus, com
excepção do Reino Unido, pouco contribuiu e que, em vésperas da própria queda
do Muro, contestava recusando-se ao burden sharing que os americanos lhe
pediam. A principal contribuição europeia veio de um país que estava do lado
errado da Cortina de Ferro, a Polónia, e de uma força que a Europa laica
personificada na França, nunca valorizou, o Papa João Paulo II.
Os europeus
rejubilaram e um período de grandes ilusões e crescentes egoísmos substituiu o
realismo dos “pequenos passos” de Monnet. Passou a considerar-se os EUA o
objecto da competição europeia, num remake do gaulismo, acelerou-se a entrada
das nações do antigo Pacto de Varsóvia na União, mesmo quando elas estavam
escassamente preparadas, ou, pior ainda, quando as nações da União, como a
França, não estavam dispostas a dar-lhes o que tinham direito a receber. Pouco
a pouco, os efeitos da “unificação alemã”, em conjunto com a pressão da
globalização e a necessidade de encontrar uma nova fórmula política, que era de
natureza bem distinta daquela que fundara a Europa, visto que introduzia
critérios de desigualdade, começaram a fazer estragos no “espírito” inicial.
O Tratado de
Nice, o tratado maldito, foi o melhor retrato desse processo, onde se conjugava
uma fuga para a frente com um upgrade insensato e imprudente, das instituições
europeias, em que a retórica grandiloquente sobre a Europa escondia o retorno a
um cada vez maior egoísmo nacional. A Constituição, o mais alto ponto do
optimismo europeísta, soçobrou no fantasma do “canalizador polaco” – estava
tudo dito e explicado para quem o queria ver. Mas a maioria dos governantes
europeus não só não o queria ver como começou uma deriva antidemocrática na
União, em que o modus faciendi do Tratado de Lisboa é exemplar.
Hoje, a União
Europeia é um monstro híbrido e perigoso, controlado por uma burocracia que
detesta a democracia e que acha que “ela” é que sabe como se deve “governar” a
Europa e cada país em particular. Os parlamentos nacionais são para esses
burocratas o local da irracionalidade da política produzida pelos
“incompetentes” dos políticos. A troika foi uma das faces dessa burocracia, que
em Bruxelas, Frankfurt, e no Luxemburgo, está encostada ao poder do dia, como
sempre esteve. Neste caso, o poder do dia começou por ser um directório
França-Alemanha, hoje é só alemão. Se amanhã, por absurdo, fosse inglês ou
russo, a mesma burocracia lá estaria encostada a legislar sobre tudo e todos,
com uma única racionalidade: a Lei de Parkinson.
A burocracia é um
dos aspectos do monstro europeu. Manda muito, mas tem um comando que
interioriza como seu, até porque muitos aspectos desse comando encaixam bem no
seu modo de actuar. Esse comando reforça-se à medida que a democracia se
extingue no processo europeu. De há muito, nenhuma decisão fundamental da União
foi levada ao voto popular e, quando o foi, perdeu. A resposta de governos,
aliados aos grandes negócios que precisam da União como de pão para a boca, foi
retirar deliberadamente e com dolo o processo de decisão europeu do controlo
democrático. Esta é a história do Tratado de Lisboa, aprovado sobre a traição
de promessas referendárias feitas em muitos países europeus. A partir dessa
génese envenenada era só esperar que a União mostrasse uma face agressiva para
com alguns dos seus membros, o que aconteceu com a chamada “crise das dívidas
soberanas”, criada em grande parte pela sua própria resposta autoritária ao
caso da Grécia. A mesma Grécia que se tinha permitido entrar no euro sem para
tal ter condições, para maior glória da Europa.
Hoje, o debate
europeu centra-se na crise económica e nas sequelas da gestão do euro. Mas nem
sequer é a curto prazo o mais grave efeito da disformidade actual da União. A
mistura de autoritarismo e de aventureirismo conhece o seu maior risco e perigo
numa pseudopolítica externa da União, feita por proclamações de países que não
estão dispostos a gastar dinheiro para ter forças armadas credíveis e colocar
tropas no chão e por isso dependem sempre dos EUA. Isso não tem impedido a
União de um ciclo de intervenções insensatas e ignorantes da História, cujos
resultados agravaram as perspectivas da paz mundial. A Líbia feudalizada e
bárbara resultou de um ajuste de contas com um amigo especial, Kadhafi; a Síria foi empurrada para uma guerra civil
com clara interferência europeia, e o caso mais grave da Ucrânia, porque
envolve uma potência nuclear, onde a União brincou às barricadas para impor um
governo de uma parte do país contra a outra parte, provocando um processo de
destruição do próprio país e um reforço do expansionismo russo. Devia haver um
tratado que impedisse a União Europeia, mais os seus governos e a Baronesa, de
jogar aos grandes do mundo, quando não se tem força nem se pensa nas
consequências.
Esta Europa,
disforme e perigosa, não é de todo discutida nas actuais eleições europeias,
que são em si mesmas um claro sintoma de tudo o que está mal por essa Europa
fora, e pior em Portugal. À tentativa, na qual se gastam milhões de euros, de
fazer com que as pessoas se interessem pela Europa e pelas eleições, soma-se o
facto de não haver substância nem diferenças nas candidaturas principais. PS,
PSD e CDS são hoje Dupont e Dupond. Dependem dos seus grupos europeus, cada vez
mais poderosos numa dimensão que escapa ao escrutínio em cada nação. São uma
espécie de Internacional Europeia com regras de inclusão, bom comportamento e
exclusão, cada vez mais rígidas. Votam em conjunto no Parlamento Europeu em
tudo o que é fundamental.
Os portugueses
que vão às urnas vão, na sua esmagadora maioria, para punir ou defender o
governo. Os portugueses que nem isso fazem, e não vão votar, ficam em casa por
considerarem estas eleições inúteis. Votam na praia contra a ficção europeia,
porque consideram que, votando ou não, não serve para nada, quem manda é a
senhora Merkel e a troika e eles não vão a votos. Por isso, estas eleições,
pela positiva, não valem para nada a não ser para a política interna. Pela
negativa, vão ser mais um acto de deslegitimação da actual União Europeia,
pelos europeus que não consideram que haja qualquer reforço da democracia
nestas eleições.
Sem comentários:
Enviar um comentário