OPINIÃO
Duas constatações e cinco enganos
TERESA DE SOUSA
18/05/2014 - PÚBLICO
A troika foi-se embora, o que é uma boa coisa. O maior risco é a economia
não crescer.
Comecemos por duas constatações preocupantes. A primeira, revelada de forma
inequívoca nesta campanha eleitoral, é a sensação de apatia dos portugueses
perante aquilo que lhes aconteceu.
Contrariando
todas as expectativas, mas também o desejo de muitos, a contestação às doses
maciças de austeridade que nos foram impostas, foi relativamente fraca, ao
ponto de a própria CGTP ter tido a necessidade de mudar o seu padrão para
pequenas acções mais frequentes. Uma única vez toda a gente foi para a rua,
sobretudo a classe média: para reagir ao anúncio de uma enorme transferência de
riqueza directamente dos assalariados para os patrões através da alteração das
contribuições para a TSU. Passos teve de recuar. E isso leva-nos à segunda
constatação. Portugal conseguiu esta coisa extraordinária de passar três anos
de duríssimo ajustamento sem conseguir estabelecer um consenso de médio prazo
para encontrar outro rumo para o país. As razões percebem-se mas não servem de
justificação. Passos chegou ao Governo como “um homem com uma missão”: acabar
com uma cultura de condescendência alimentada e praticada pelos dois grandes
partidos e pelas respectivas elites, que considerava confortavelmente
“instaladas”. Tencionava fazê-lo, fosse qual fosse o preço. As suas gafes não
eram gafes nenhumas: desde o país de “piegas” até à emigração de jovens bem
qualificados. Chegou a dizer que o desemprego podia ser uma oportunidade,
imitando a crença liberal dos anos 80 e 90, quando a economia ainda estava de
boa saúde (nas democracias ocidentais) e os emergentes ainda não se viam ao
longe. No início, este “choque liberal”, pouco comum por estas bandas, até
chegou a parecer saudável. O resultado foi limitado nos aspectos positivos e
dramático nos negativos. Mas o consenso falhou também porque, do outro lado,
havia uma liderança fraca e, consequentemente, pouco virada para aguentar os
seus custos políticos. Passemos aos enganos.
Primeiro engano.
A culpa do nosso desastre, em 2011, tinha um nome: José Sócrates. Aliás, à direita
como à esquerda. Era demasiado simples. Sócrates fez muita coisa bem-feita no
seu primeiro mandato. Não foi capaz de reagir à crise financeira que se abateu
sobre a Europa e aproveitou a onda de Bruxelas para gastar e gastar (que agora
é convenientemente negada) para inverter os esforços de redução do défice e
regressar a um discurso ideológico, que nunca foi o seu, de defesa de um Estado
Social do passado. O PS de António José Seguro fez o mesmo por omissão. Passos
participou no logro porque isso lhe deu jeito na campanha que o levou ao poder
em 2011. Portas também. As coisas começaram mal de raiz. Com Sócrates ou sem
Sócrates, o discurso de Governo sobre a crise atribuiu todos os nossos males a
nós próprios, ignorando a responsabilidade europeia. Temos a nossa quota-parte
de culpa, que não é pouca. Mas a incapacidade de Berlim para reagir à crise da
Grécia e a ineficácia de Bruxelas tiveram uma culpa enorme. Angela Merkel
acabou por perceber que teria de salvar o euro sem expulsar ninguém e
aproveitando a crise para formatar uma união monetária verdadeiramente alemã. Mas
já estava “amarrada” à sua reacção inicial: o Tratado não prevê qualquer
bail-out, os preguiçosos e indisciplinados do Sul, que “têm mais férias e
trabalham menos horas” do que os alemães, que sofram a punição dos seus
desmandos. A partir daí não era possível dizer outra coisa aos alemães. Podia
ter estancado os efeitos mais negativos da crise da dívida logo em Atenas. Não
o fez. A doutrina oficial passou a ser “impedir o contágio”. Agravou-o, como
hoje sabemos. Grécia, Irlanda, Portugal, Espanha Itália. A partir daqui o caso
mudou de figura, levando o BCE de Mario Draghi a “interpretar” mais livremente
os seus poderes e a estancar a descida aos infernos. Passos não abdicou da
estratégia “punitiva” da chanceler que parecia feita à sua medida. Cumpriu o
que disse: ir mais além da troika. O seu credo absoluto: o crescimento seria a
consequência natural da austeridade, centrada na redução dos custos do trabalho
e na “destruição criativa” de sectores antiquados da economia (cafés,
cabeleireiros, construção civil). Fez duas grandes reformas: as que levaram a
uma muito maior flexibilização do mercado laboral, e os cortes nos salários da
função pública e nas pensões dos reformados. Os portugueses obedeceram-lhe (não
tinham outro remédio) e travaram o consumo. Ele veio dizer que não esperava
tanto. Depois, disse que o desemprego o apanhou de surpresa.
Terceiro engano.
É preciso confessar que muita gente, quando olhou para o programa da troika,
pensou que estava ali um programa de reformas que já deveríamos ter feito há
muito. Vistas as coisas, o PSD até estaria em melhores condições de o aplicar,
na medida em que se revia ideologicamente nele. Não foi preciso muito tempo
para se perceber que tinha erros de previsão enormes (que tiveram custos
humanos brutais). Normalmente os burocratas funcionam assim. É por isso que são
precisos políticos. Quando tudo começou a sair “ao lado”, Gaspar foi-se embora
e Paulo Portas fez uma cena. Passos ficou imperturbável: “Eu não abandono o
barco”. Foi quem tirou mais partido da crise política de Junho passado,
incluindo o líder socialista. Não corrigiu nada. A não ser o seu discurso já
bastante “eleitoral”: entrou no Governo como um liberal, apresenta-se agora
como um “social-democrata”, o que nos faz duvidar um pouco das suas convicções.
Pôs a Europa de lado, para além de bater a pala à chanceler. De onde virá o
crescimento da economia? Ninguém sabe. Mas não vai chegar, de certeza, da
desvalorização dos salários. Precisamos de investimento externo como do pão
para a boca (dado o endividamento privado que anda à volta dos 250 por cento do
PIB). Precisamos de crescer muito mais do que 1 por cento porque é essa é a
condição de pagarmos a dívida. Os investidores estrangeiros olham para nós como
um país de salários europeus (e não marroquinos), com mão-de-obra qualificada e
estabilidade fiscal, onde a burocracia não seja um bloqueio. A pergunta é: que
razões os atrairiam em detrimento de outros locais? Para isso tínhamos de ter
uma estratégia (e não apenas esse amor ao funcionamento perfeito dos mercados,
que a crise financeira provou ser falsa, em grande medida). Nem o Governo nem o
PS parecem ter resposta. Estaria aqui a matéria-prima para um consenso a 10
anos.
Quarto engano.
Foi talvez o mais generalizado. O tremendo efeito da globalização (com a
entrada em cena das potências emergentes) sobre as economias desenvolvidas foi,
durante muito tempo, atenuado com o acesso barato ao crédito, disfarçando o aumento
das desigualdades. Quando este modelo se esgotou, com a crise do subprime, foi
preciso encontrar outras formas de manter as economias desenvolvidas
competitivas. O anterior modelo traduziu-se em Portugal num crescimento apoiado
num gigantesco sector da construção civil e afins, que se alimentava dos bancos
e os bancos alimentavam-se dele, financiando a casa própria nos subúrbios (o
que exigia um carro). O negócio foi óptimo para a banca e péssimo para a
economia. A crise pôs tudo isto em causa. Nada disto foi levado em consideração
por um Governo que acusava os cidadãos de andarem a fazer férias a crédito, mas
que não é capaz de falar para uma parte da nossa economia que já deu a volta há
algum tempo e que não assenta na pobreza de ninguém. Mais uma vez, a realidade
passava ao lado porque era inconveniente.
Quinto engano. O
PS passou a vida a dizer que havia alternativas. E havia, pela razão simples de
que a própria troika, com relevo para o FMI, admitiu que os seus “PowerPoint”
estavam errados. O problema é que o PS não é uma figura estranha ao “consenso
europeu” que sempre existiu entre os dois grandes partidos. Sabe que, para nos
mantermos no euro (o objectivo comum de ambos), temos de mudar muitas coisas
mesmo que algumas sejam desagradáveis. O que deveria facilitar o consenso
acabou por impedi-lo. Passos manteve-se acrítico sobre a Europa, muito
diferente, que já começou a emergir desta crise. Seguro apresentou
ideias-feitas que a crise tornou obsoletas. Sobre tantos enganos (e a palavra é
moderada), é muito difícil ser optimista. Vamos ver a resposta dos eleitores no
próximo domingo. Corremos o risco de ser um cartão vermelho à classe política. E
vamos ter de olhar para os resultados europeus para percebermos o que nos
espera. A troika foi-se embora, o que é uma boa coisa. O
maior risco é a economia não crescer.
Jornalista
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