OPINIÃO
O dia da censura
JOSÉ PACHECO PEREIRA
24/05/2014 - PÚBLICO
Será que tudo isto se pode dizer? Um minuto antes da meia-noite sim, depois
talvez não porque pode perturbar a paz dos espíritos, agora até prolongada e
protegida por um novo prazo.
Hoje é o dia
absurdo em que, mesmo que queira falar de certas coisas, não posso falar delas.
Hoje é um dia em que há censura em nome do mesmo princípio com que houve
censura durante quarenta e oito anos: proteger a paz dos espíritos dos
portugueses para que eles se portem bem.
É um absurdo em democracia e este absurdo
soma-se a outros que começam a impregnar o tempo e o modo das campanhas
eleitorais, acrescentando-se à já enorme decadência daquilo que foi uma das conquistas
da democracia – a possibilidade de fazer livremente propaganda das suas ideias,
programas e pessoas.
A culpa é de
muita gente, do legislador em primeiro lugar, que podia mudar profundamente uma
legislação eleitoral que já se revelou ultrapassada e perversa, e não o quer
fazer porque isso prejudicaria os grandes partidos. É da Comissão Nacional de
Eleições, que soma medidas contraditórias, algumas insensatas e caóticas,
actuando pontualmente e sem nexo. É da comunicação social, que se revela muito
tesa (e bem) para actuar em conjunto quando os seus interesses económicos estão
em causa, e revela uma estranha complacência com esta forma de censura.
Significa que o
faz por respeito pela lei? Nem isso, até porque a uma lei iníqua se pode
responder com a desobediência cívica e custa-me a perceber por que razão a
comunicação social recusa em conjunto esta forma de censura, que viola todos os
critérios editoriais e jornalísticos, os únicos que deviam presidir à cobertura
de uma campanha eleitoral. E faz ainda pior: responde às deliberações da CNE
agravando ainda mais a já baixa qualidade da cobertura da campanha introduzindo
critérios que favorecem as candidaturas dos grandes partidos, como já aconteceu
nas autárquicas em detrimento das candidaturas independentes.
Não é possível
tornar igual durante quinze dias o que é diferente durante anos, nem essa
pseudo-igualdade dá qualquer vantagem aos pequenos partidos. Bem pelo
contrário, acentua a sua pequenez e torna-os bizarros e folclóricos, que é
também o modo de aproximação que favorece o incidentalismo da cobertura
política dos nossos dias. Nem tem sentido que a igualdade nas campanhas – que
deve ser assegurada por outros mecanismos, como seja, por exemplo, um efectivo
controlo dos gastos em campanha, com uma severa limitação do seu montante,
assim como dos financiamentos por debaixo da mesa – seja assente no abandono
dos únicos critérios que devem presidir à reportagem política, o interesse
editorial e jornalístico. Haveria assim uma competição pelo interesse e pela
atenção dos media, que não evita desigualdades e injustiças, mas pode favorecer
quem tenha alguma coisa para dizer. Nos países civilizados e democracias
estabilizadas, ninguém espera que a cobertura do Labour inglês e dos
Conservadores seja “equilibrada” com a do Monster Raving Loony Party, nem que
haja silêncios pré-eleitorais obrigatórios.
O resultado conjugado
de todos estes factores, que desaguam no mesmo pântano, é que é difícil ter uma
campanha eleitoral pior do que a actual. Os candidatos e a campanha foram ao
nível zero da política e encontraram na comunicação social o parceiro e o
espelho ideais. Eles reduziram a campanha a encenações para a televisão e a
televisão vai lá obediente cobrir aquilo que sabe que não tem nenhum valor
informativo. E não venham agora hipocritamente queixar-se de que “ninguém
discute a Europa”, quando nem candidatos nem jornalistas desejam a “chatice”
desse debate quando há tanto incidente e anedota mais interessante!
Porque é que
hoje, no balanço da campanha, no “dia da reflexão”, eu não o posso dizer? Se eu
quiser escrever que foi penoso ver a “rua” dos candidatos, em particular, os da
maioria, será que o posso dizer? Será que posso dizer que a “rua” desses
candidatos foi uma completa mistificação para obter imagens televisivas,
daquilo que foi um dolo total, um não-acontecimento, feito de toca e foge, para
não haver sarilhos, será que o posso dizer? Será que posso escrever que foi
também penoso ver os líderes do PSD, chamados à campanha pelo mestre da
coreografia mediática, numa pirueta do tipo das que os seus discípulos na
comunicação social gostam muito, e totalmente vazia de significado político, e
depois terem tanta vergonha dos candidatos e da campanha que chegaram às suas
imediações pestíferas... para irem apoiar o candidato luxemburguês ou dizerem
que “votem A ou B, o que conta é votarem”? Será que posso falar da indigência
dos candidatos da maioria, a fazer campanha contra um primeiro-ministro do
passado, como se agora o PS resolvesse fazer uma campanha contra Santana Lopes?
Ou, do vai-não-vai de Mário Soares, à campanha do super-homem da Juventude
Socialista de peito feito em que uma caneta inscreve a fogo ou a sangue uma
cruz? Ou de como o selfie do PS é uma afronta aos direitos humanos da câmara
fotográfica que teve de rebaixar a sua condição de telefone inteligente para
minimizar o ar de parvos dos fotografados, que é o aspecto que os selfies dão
às pessoas? Será que posso hoje falar em nome dos direitos da máquina, obrigada
a estas violências? Será que posso escrever que a campanha de Marinho e Pinto,
a única campanha dos pequenos partidos que, por puros critérios jornalísticos,
devia ter uma muito maior cobertura, até porque o seu populismo é uma “fruta da
época” que exige atenção, foi a mais prejudicada de todas por critérios que
favorecem sempre PSD, CDS, e PS? Será que posso dizer que a campanha mais
verdadeira, menos enganadora, aquela em que o que há é o que se viu, foi o
retrato cruel da solidão política do POUS, no momento em que as televisões
filmaram solitária, com a mesma faixa sempre reciclada, Carmelinda Pereira à
porta de uma fábrica? Ou dizer aquilo que é evidente que a única campanha que
não teve medo da “rua” foi a da CDU, porque é o que é, e a mais não se sente
obrigada? E está hoje, como sempre, melhor entre os velhos de Serpa, do que a
do PSD-CDS que nem sequer já tem o “cavaquistão”?
E a Europa? A
Europa vai levar em cima com a enorme abstenção, que esse é o único voto que é
sobre a Europa, sobre o estado actual da União e os seus mandantes, visto que
todos os outros são contra ou a favor do Governo. Duvido que, com excepção da
minha amiga Teresa de Sousa, haja alguém que vá lá votar por qualquer coisa
vagamente europeia, a que nem a alma de Jean Monnet dá hoje vida.
Será que tudo
isto se pode dizer? Um minuto antes da meia-noite sim, depois talvez não,
porque pode perturbar a paz dos espíritos, agora até prolongada e protegida por
um novo prazo a partir do qual se podem conhecer os resultados, não aquele em
que as urnas fecham em Portugal, mas aquele em que os últimos eleitores de
Reggio de Calábria vão votar. Trata-se de mais uma imposição, a da hora
“europeia” de encerramento das urnas, que é aceite em Portugal sem lei, apenas
pela obediência a uma ficção, a de que um eleitor de Limerick vai ficar muito
impressionado pelos votos no senhor Seguro (logo no senhor Shultz) na ocidental
praia lusitana.
Claro que, como é
óbvio, no momento em que escrevo este artigo, já sei alguns resultados de
outros países, onde não se aceitam estas restrições sem sentido, destinadas a
dar corpo a uma coisa que não existe: um eleitorado europeu com motivações
europeias que unem o cidadão que vota em Arezzo com o que vota em
Knokke-le-Zoute ou na Lourinhã. Basta aliás enumerar estes nomes de honestas
terras europeias para perceber toda esta ficção. E será que posso falar disto
hoje, quase como obrigação da consciência, ou não posso ter consciência neste
“dia de reflexão”?
Historiador
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