O guião da reforma do Estado contado às criancinhas
Um dia, depois de muito enganar a aldeia com um
ataque do lobo, Pedro viu-se sozinho perante a fera que lhe dizimou o rebanho.
Um dia, depois de tanto prometer o anúncio da reforma do Estado, Paulo viu-se
abandonado perante um monte de papéis que todos trataram de demolir e poucos
quiseram ler. A mensagem de Paulo, como a de Pedro, não foi ouvida por não ter
credibilidade. Paulo, como Pedro, anunciou e recuou vezes de mais nas promessas
para que pudesse ser arauto do que quer que seja, quanto mais de uma reforma do
Estado. Paulo Portas é hoje o Pedro da história do lobo, o mensageiro que já não
consegue suscitar confiança na aldeia. Podia ser o mais genial estadista do
século, podia ter na mão a mais extraordinária reforma do Estado desde Mouzinho
da Silveira que o sucesso da iniciativa estava escrito nas estrelas. O país não
tem paciência para o ouvir. A sua iniciativa seria um monumento à "arte de
perder tempo e ocupar espaço", como escreveu Leonete Botelho no PÚBLICO.
Prometida em Outubro de 2012, anunciada em Novembro para Fevereiro de 2013,
diferida para Maio, garantida em Junho, jurada para Setembro, apontada para 13
de Outubro, depois para 23 mas apenas revelada esta semana, a reforma
esgotara-se antes de ser anunciada. No dia anterior à apresentação, já Fernando
Santos, director adjunto do JN, vaticinava que "o guião da reforma do
Estado está fadado a constituir-se num mero testamento político do Governo".
Depois de tantos avanços e recuos, para que a reforma tivesse condições mínimas de sucesso teria de vir de um governo com a credibilidade imaculada. Seja qual for a perspectiva, o desdém, a frieza, a impaciência ou até mesmo a arrogância com que a reforma foi recebida mostram que o Governo não cumpre essa condição. Por muito que tente dar prova de vida, só se arrasta com o seguro de vida do ajustamento. Em alguns ministérios faz-se o trabalho de casa, estuda-se, perspectiva-se o futuro. Em outros caiu-se no torpor que empurra a política para fora e faz entrar cães, gatos, gravatas e imbecilidades afins. Depois dos chumbos do Tribunal Constitucional ao Orçamento de 2013 e, principalmente, depois da crise política do princípio do Verão, ficou claro que este Governo teria de recuar para as trincheiras. Já não tem capacidade operacional para a ofensiva política.
Mas é no topo, na esfera de Portas e de Passos que está a maior fragilidade. Há um passado que lhes tolhe os movimentos e um futuro que, por excesso de desconfiança e falta de afecto, não conseguem projectar. Toda e qualquer proposta de governação com uma vírgula de ousadia esbarra neste muro. Quando Portas diz que os cortes não são reformas nem as reformas são cortes, merece a pergunta que Miguel Gaspar lhe colocou no Público Online: "Então por que passaram o tempo a cortar em vez de reformar?" O anúncio do guião era um desastre anunciado. Como se provou.
O problema maior deste acto falhado é que Portugal precisa de repensar o Estado. Precisa de um ponto de partida. Falta saber se esse grau zero da discussão se pode fazer com um guião que pareceu a André Macedo, do DN, "uma loja dos 300 onde, no meio de ideias copiadas, avulsas e superficiais, encontramos um ou outro ponto que é possível debater, mas apenas por causa do nosso desespero colectivo". Mas se a opinião maioritária segue a análise de Macedo e de Pacheco Pereira, que, ontem, no PÚBLICO, considerava o guião "pomposo, mistificador e assustadoramente vazio", houve algumas opiniões discordantes. Como a de Daniel Bessa, que, com a sua indiscutível autoridade e prestígio, escreveria no Expresso que o documento tem "princípio, meio e fim", que é "uma boa surpresa" e que todos o deviam ler para escapar à influência dos ""priores" das várias "religiões" em acção no nosso mercado de serviços políticos". Se é verdade que o palavreado soberanista, o moralismo do fracasso e da ameaça da bancarrota, a expiação de culpas no passado de Sócrates - ou, simplesmente, o calvário a que este Governo se sente condenado - já se tornaram insuportáveis, também é verdade que há ali propostas que deviam ser, pelo menos, enunciadas.
O problema é que as palavras e as boas ideias não valem por si, muito menos em política. E valem ainda menos quando o Governo se sente remetido à posição heróica do resistente (o historicismo do discurso de Passos é disso prova) e o PS se regala num persistente instinto necrófago. Na reforma do Estado, no cenário pós-troika, no debate do Orçamento, Portugal derrapa na sua infeliz condição e na ausência de expectativas. Como escreveu no DN Manuel Maria Carrilho, esse avatar destes tempos miseráveis, "a lengalenga acontece porque as ideias deram lugar à gelatina opinológica, e a meritocracia à ruminação idiotológica". Seja.
A Justiça é cega mas em Portugal é também surda, muda e um nadinha lerda. Soube-se esta semana que uma diligência judicial que numa parte muito substancial provocou a degradação das relações entre Portugal e Angola afinal estava já há meses arquivada. Bem pode a procuradora-geral vir agora dizer que a lei não obriga a tornar público o arquivamento de diligências dessa natureza, ou que a lei será mudada para evitar a repetição de situações semelhantes: não há razões para ficarmos tranquilos.
No seu esplêndido autismo, a procuradoria assistiu impávida e serena a declarações humilhantes de um ministro ou a declarações agressivas de um chefe de Estado estrangeiro sobre o nosso país sem que ninguém se tivesse dado ao trabalho de avisar, calma, esse foco de infecção que contagia as relações estratégicas com Angola está ultrapassado.
Mas, afinal, Joana Marques Vidal "ignorava, aparentou ou fingiu ignorar aquilo que Rui Machete parecia conhecer bem de mais?", como pergunta Fernando Madrinha no Expresso? Será que o procurador que acompanhou a diligência relacionado com o procurador-geral de Angola lê as notícias? E, lendo-as, será que não se sentiu no dever de comunicar a sua decisão de arquivamento à sua superiora hierárquica? E tendo-o feito, não teria havido possibilidade de se fazer uma fuga de informação, agora sem se violar o segredo de Justiça, para tentar acalmar as hostilidades com Luanda?
Ao deixar o conflito diplomático arder em lume brando quando sabia que uma das suas ignições deixara de existir, a Procuradoria acaba a minar a argumentação dos que insistem numa política externa influenciada por valores. Com comportamentos destes por parte das instituições nacionais, com que dedo ficam para apontar os vícios das instituições angolanas?
O arquivamento de um processo não é suficiente para que se calem suspeitas ou serenem os ânimos |
Ainda Angola, no meio das nossas tristezas
Editorial / PúblicoO arquivamento de um processo não é suficiente para que se calem suspeitas ou serenem os ânimos
Entre o desolador anúncio, em forma de "guião", da
muito propalada reforma do Estado e a aprovação (sem aplausos) do Orçamento para
2014, continua a pairar sobre a sociedade portuguesa, e não só a política, o
fantasma de Angola. Moçambique devia preocupar-nos mais, devido ao perigoso
reacender de uma guerra julgada já morta; ou mesmo a Guiné-Bissau, ainda imersa
numa instabilidade que não vê melhoras no horizonte próximo. Mas é Angola que,
rica por fora e pobre por dentro, nos ocupa o quotidiano com processos, ameaças
veladas, indignações de pacotilha e acusações de vassalagem ou dependência
vindas de sectores variados. Não é a Angola dos negócios a limpo, das parcerias,
dos interesses comuns, dos direitos humanos por respeitar ou consolidar que nos
ocupa o tempo. É a Angola de uns senhores que, mesmo antes de haver contra eles
qualquer acusação e sem terem sido constituídos arguidos, usam as suas fortunas
para encomendar pareceres com que pretendem defender-se de eventuais acusações
de crime. Até aqui, depois de os jornais terem noticiado o que já toda a gente
sabia (que havia investigações judiciais a correr em Portugal que envolviam,
entre acusadores e acusados, angolanos e portugueses), os duelos foram
políticos. Ouviu-se Rui Machete, ouviu-se José Eduardo dos Santos e fizeram-se
ouvir opiniões avulsas, umas a atiçar as brasas da fogueira, outras a tentar
sossegar os ânimos. Depois, milagre!, descobriu-se que o processo que envolvia
uma das "altas individualidades" chamadas ao caso tinha sido arquivado. Não
ontem nem hoje, mas há dois meses. Sabendo de tal facto, tinha-se poupado muita
tinta, e muitos amuos, mas pelos vistos as informações em Portugal correm
demasiado devagar. Nuns casos, que noutros são demasiado lestas. Seja como for,
agora uma comitiva portuguesa liderada pela presidente da Assembleia da
República se prepara para rumar a Angola em viagem oficial, não deixa de ser
cómodo que uma tal notícia surja a público. Afasta suspeitas. Acalma os ânimos
mais exaltados. Põe um pequeno ponto final numa querela inútil. Será assim? Ou,
pelo contrário, ajudará a que se mantenham as suspeitas quando os pormenores que
chegaram aos jornais são de modo a sustentá-las? Independentemente da identidade
dos potenciais envolvidos, do seu posto ou responsabilidade, a assunção da
inocência seria mais bem defendida num despacho judicial competente do que num
mero arquivamento. Pelo menos por cá. E por enquanto. Não é com pareceres de
penalistas, por mais nobres que sejam, nem com requerimentos nervosos a mil e
uma instâncias, que se trava o que devia ser feito: esclarecer as acusações em
causa. Em Angola há quem clame por justiça, apontando o dedo aos prevaricadores.
Cá, Rui Machete diz que as relações entre Portugal e Angola se resolvem "com o
tempo e a vontade dos homens". Talvez, mas a verdade e a justiça seriam mais
úteis.
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