Merkel e Rousseff foram duas das dirigentes espiadas pela NSA |
Brasil e Alemanha querem declaração das Nações Unidas sobre limites à vigilância
Documento de Angela Merkel e Dilma Rousseff denuncia escutas a líderes de países aliados e vigilância em larga escala
É uma proposta que poderá não sair do papel, mas é
também um sinal de que as revelações sobre os programas de vigilância da Agência
de Segurança Nacional (NSA) norte-americana estão a introduzir no discurso
político ideias que pareciam estranhas há poucos meses. Por iniciativa da
Alemanha e do Brasil, a Assembleia Geral da ONU vai decidir se a privacidade no
mundo digital merece ser protegida da mesma forma que a privacidade fora
dele.
A chanceler alemã, Angela Merkel, e a Presidente do Brasil, Dilma Rousseff,
basearam-se na Declaração Universal dos Direitos Humanos para apelarem aos 193
países-membros da ONU que aprovem medidas contra "as violações e os abusos que
podem ser cometidos pela vigilância de comunicações, incluindo a vigilância
extraterritorial".O documento não inclui medidas concretas e deverá ser ainda alterado durante a discussão. Para além disso, as votações dos 193 países não são vinculativas, ao contrário das decisões dos 15 membros do Conselho de Segurança. Um dos objectivos da iniciativa conjunta alemã e brasileira é que a ONU trabalhe no sentido de "estabelecer mecanismos de supervisão independentes nacionais capazes de garantir a transparência e a responsabilização da vigilância de comunicações por parte dos Estados e da intercepção e recolha de dados pessoais".
O documento não se refere especificamente a nenhum país, mas não é difícil adivinhar que foi motivado pelas revelações sobre os programas de vigilância da NSA, em particular as escutas telefónicas a Angela Merkel e a espionagem das comunicações de Dilma Rousseff.
Não há reacções oficiais, mas um representante da missão diplomática dos EUA disse que irá analisar "os méritos do documento".
A iniciativa da Alemanha e do Brasil junta-se às promessas de revisão das actividades da NSA feitas nos últimos dias pelo Presidente dos EUA e fazem parte de uma tentativa para resolver o desconforto diplomático provocado pela revelação das escutas à chanceler alemã.
Mas, para além das escutas e da obtenção de informações confidenciais entre países aliados - uma prática tão antiga como a existência de serviços secretos -, a capacidade de vigilância da NSA suscitou um debate sobre a privacidade das comunicações de qualquer pessoa que use um telemóvel ou um computador, mesmo que não seja suspeita de qualquer actividade criminosa.
"Alguém defende que nós não devemos recolher informações secretas sobre as opiniões dos líderes israelitas, mesmo que tenhamos um acordo de segurança intenso e íntimo com eles ao mesmo tempo?", questionava na edição de ontem do Financial Times Philip Zelikow, professor na Universidade da Virgínia e antigo conselheiro do Departamento de Estado norte-americano.
Quanto à capacidade da NSA de recolher informações sobre as chamadas telefónicas, os emails ou as mensagens no Facebook de milhões de cidadãos em todo o mundo, a questão é diferente.
"O que os nossos espiões não conseguem ver é que não estão a agir em prol dos nossos interesses nacionais a longo prazo", considera Jason Healey, um antigo especialista da NSA. "A futura prosperidade da nossa economia e da nossa sociedade está intimamente relacionada com todos aqueles uns e zeros do mundo digital e da Internet, mas isso está a ser posto em causa pela forma como os nossos serviços secretos se comportam, com uma completa impunidade", alerta Healey no Financial Times, referindo-se ao acesso directo da NSA aos servidores do Google e do Yahoo, alegadamente sem o conhecimento da empresas, revelado pelo The Washington Post na semana passada.
Para o The New York Times, que revelou ontem um novo documento obtido por Edward Snowden sobre operações em vários pontos do globo, fica claro que o argumento da luta contra o terrorismo "é uma estratégia de vendas enganadora para uma agência que tem uma agenda quase ilimitada". Apesar da defesa do registo de comunicações em larga escala feita pela Casa Branca, "a escala e a agressividade [da NSA] são de tirar o fôlego", conclui o jornal.
Ninguém sabe se a proposta de Angela Merkel e Dilma Rousseff ou as promessas de Barack Obama vão produzir mudanças significativas, mas é inquestionável que a NSA precisa de resolver vários problemas, principalmente o controlo das suas capacidades de vigilância.
Bobby R. Inman, director da agência entre 1977 e 1981, deixa uma proposta nas páginas do The New York Times: "O meu conselho seria tornar público tudo o que acharem que Snowden tem em sua posse. Seria um choque para a agência, mas as más notícias não se tornam melhores com o passar do tempo. Quanto mais cedo resolverem esta questão, mais depressa poderão começar a reconstruir-se."
"A Europa é suicidária. Mesmo quando o suicídio parece impossível. É uma coisa de que não nos devemos esquecer nunca."
Putin e o telemóvel da chanceler
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A Europa é suicidária. Mesmo quando o suicídio parece impossível. É uma coisa
de que não nos devemos esquecer nunca
2. Afastado este fantasma que a Forbes nos quis oferecer, há outro, certamente mais incómodo para os EUA. Escrevi há uma semana que os aliados europeus da América estavam a fazer o "teatro público" que se esperaria deles por causa da NSA. Na prática, prevaleceria a prudência, até porque, quando as comadres se zangam, acaba sempre por se saberem as verdades. E todos os dias temos sabido mais algumas. Que a França espia tudo o que pode, incluindo telemóveis, e coopera diligentemente com os serviços de escuta do Reino Unido. Que a Suécia não diz nada, nem a Holanda, porque fazem a mesma coisa, e que a Espanha fornecia sem estados de alma os seus dados aos americanos. Mas, na sexta-feira, um amigo meu que sabe muito de relações internacionais telefonou-me a dizer que a reacção alemã estava a ficar uma oitava acima do expectável. Afastada do jornal nesse dia, só quando cheguei a casa e dei por mim a ver as declarações do ministro alemão do Interior, me apercebi dessa "oitava". O ministro estava a admitir a possibilidade de um encontro com Snowden, na Alemanha ou na Rússia. É um acto de hostilidade para com os EUA, mesmo que pintado com as cores do "politicamente correcto" de que os alemães gostam tanto.
Uma decisão deste alcance, só a vimos em 2003, quando Gerhard Schroeder decidiu alinhar com Chirac e com Putin numa aliança a que chamaram eixo da paz contra a guerra no Iraque. A surpresa não estava nem no Presidente francês nem no russo. Estava no chanceler alemão, que, pela primeira vez desde a II Guerra, ousou pôr em causa a sua aliança fiel com os Estados Unidos, a quem devia o regresso ao estatuto de nação civilizada (mais do que à Europa) e a garantia de defesa contra os tanques e os mísseis soviéticos durante a Guerra Fria. Os tempos mudaram. Merkel apoiou Bush no Iraque. Hoje, ela é a chanceler de um país cada vez mais forte, ao qual a crise financeira deu a oportunidade de conquistar o estatuto de potência hegemónica europeia. Ao contrário de Schroeder, Merkel não perde a oportunidade de denunciar os abusos dos direitos humanos cometidos por Putin. Mas também é verdade que isso nunca pôs em causa as fortes relações económicas com a Rússia e a garantia de abastecimento energético. Teve o mérito de cultivar uma nova relação com a Polónia, que o seu antecessor ignorava quando negociou a construção do Nord Stream com Moscovo. Mas também é certo que, em matéria de relações com a Rússia, de política energética ou de segurança, a chanceler segue uma abordagem unilateral, ignorando os seus parceiros europeus.
Faltava ainda esta oitava a mais. Não é bom para ninguém. É mau para a Europa este comportamento alemão de "potência emergente", quando tanta coisa de essencial está hoje em causa para os europeus. A Europa não é só o euro. Uma Europa partida ao meio, entre os amigos da América e aqueles que prefeririam ficar na zona de poder alemão, é um cenário de pesadelo que porventura não irá acontecer. Mas é preciso sabermos onde estamos e para onde nos levam. E isso não se esgota numa zona euro construída à imagem e sob liderança alemã. Inclui as relações transatlânticas, a capacidade europeia de exercer uma política externa verdadeiramente comum, a solidariedade entre os seus membros.
De surpresa em surpresa, a Alemanha vai-nos mostrando o que quer ser neste mundo multipolar em profunda transformação. Mesmo que queira manter a aliança preferencial com a França, sem a qual não há Europa nem euro, quer boas relações com a Rússia, da qual é o maior investidor e do qual depende boa parte das suas importações energéticas. É o maior parceiro comercial da China, entre os europeus, e a uma grande distância. Alinha com o Brasil numa proposta conjunta nas Nações Unidas que limite os abusos à privacidade, da mesma maneira que votou ao lado de Dilma na resolução do Conselho de Segurança sobre a Líbia. Disse que queria salvar o euro e nós acreditamos, mas ainda lhe falta fazer muito para isso acontecer de um modo que seja bom para toda a gente.
3. Como alguém escreveu, a Europa foi dormir uma sesta depois da cimeira da semana passada que só não teve uma agenda vazia graças à NSA. Continuamos à espera da "grande coligação" que a chanceler está a negociar com o SPD. E, por enquanto, ainda não parece estar em causa a decisão estratégica mais importante que a Europa tomou nos últimos tempos: negociar uma parceria transatlântica de comércio livre com os EUA, unindo os dois blocos económicos mais poderosos do mundo. Do lado de cá já há vozes a pedir o fim das negociações. Do lado de lá, o relatório publicado pelo Tesouro há alguns dias acusa o modelo económico alemão, assente nas exportações, de minar o crescimento europeu e, portanto, global com os seus superavits excessivos, conseguiu irritar bastante a chanceler. A zona euro adoptou um procedimento contra os desequilíbrios macroeconómicos segundo o qual um défice externo superior a 4 por cento desencadeia um alerta imediato, da mesma maneira que um superavit superior a 6 por cento. O que é mais curioso é que sobre isto há em Bruxelas um silêncio sepulcral, mesmo que o superavit alemão tenha sido no ano passado de 7 por cento. Maior do que o da China.
Obama precisa rapidamente de tentar retomar as rédeas do seu poder interno e internacional. Precisa de libertar a sua presidência da armadilha do Tea Party. Do mesmo modo, a Europa tem de dar mais atenção ao seu próprio Tea Party para evitar uma desagradável surpresa nas eleições europeias de Maio. É esse, porventura, o seu maior desafio. "É urgente uma grande batalha europeísta", dizia o primeiro-ministro de Itália ao El País. Não é assim que se consegue vencê-la. A Europa é suicidária. Mesmo quando o suicídio parece impossível. É uma coisa de que não nos devemos esquecer nunca, mas que os líderes europeus parecem estar a esquecer muito depressa.
Jornalista. Escreve ao domingo
1. Numa entrevista que fiz a Chris Patten há já algum
tempo sobre o estado do mundo e da Europa, houve uma resposta da qual nunca mais
me esqueci. Estávamos a falar das novas potências emergentes e das velhas,
quando lhe perguntei como via o papel da Rússia. A resposta foi mais ou menos
assim: "Lembra-se de algum coisa que tenha em sua casa com a etiqueta "made in
Russia"? Mas tem certamente várias coisas made in China de que se lembraria
imediatamente." Patten não subestimava o papel da Rússia, colocava-o apenas na
sua verdadeira dimensão. A Rússia não fabrica nada digno de nota, vive do gás e
do petróleo, tem uma população em rápido declínio, quanto mais não seja porque a
esperança de vida dos homens está ao nível do Terceiro Mundo. Ainda tem um
arsenal nuclear, mas está a anos-luz de poder acompanhar os EUA neste ou noutro
campo qualquer.
Vem isto a propósito da estranha escolha da Forbes, que classifica
Vladimir Putin como o homem mais poderoso do mundo, antes do Presidente
americano. Pode ser que Edward Snowden lhe dê, neste momento, uma "arma" para
enfraquecer os EUA e tentar dividir os dois lados do Atlântico, que é sempre a
base da sua estratégia. A Forbes fala também do seu papel para abrir
caminho a uma solução "diplomática" para a Síria que, até agora, permitiu
desmantelar as armas químicas mas ainda está muito longe de uma resolução. Que o
líder do país mais rico e mais poderoso do mundo, com uma nova leva de avanços
tecnológicos que deixam qualquer um com a cabeça à roda, que tem porta -aviões
em todos os mares do mundo, que ainda dispõe de um soft-power assinalável
e que está a oito anos da independência energética apareça em segundo lugar,
pode ser explicado com o objectivo de alimentar o mau momento que a sua
presidência está a passar. Não coincide com a realidade. Se no futuro vier a ser
ultrapassado, será por alguém com um nome chinês. 2. Afastado este fantasma que a Forbes nos quis oferecer, há outro, certamente mais incómodo para os EUA. Escrevi há uma semana que os aliados europeus da América estavam a fazer o "teatro público" que se esperaria deles por causa da NSA. Na prática, prevaleceria a prudência, até porque, quando as comadres se zangam, acaba sempre por se saberem as verdades. E todos os dias temos sabido mais algumas. Que a França espia tudo o que pode, incluindo telemóveis, e coopera diligentemente com os serviços de escuta do Reino Unido. Que a Suécia não diz nada, nem a Holanda, porque fazem a mesma coisa, e que a Espanha fornecia sem estados de alma os seus dados aos americanos. Mas, na sexta-feira, um amigo meu que sabe muito de relações internacionais telefonou-me a dizer que a reacção alemã estava a ficar uma oitava acima do expectável. Afastada do jornal nesse dia, só quando cheguei a casa e dei por mim a ver as declarações do ministro alemão do Interior, me apercebi dessa "oitava". O ministro estava a admitir a possibilidade de um encontro com Snowden, na Alemanha ou na Rússia. É um acto de hostilidade para com os EUA, mesmo que pintado com as cores do "politicamente correcto" de que os alemães gostam tanto.
Uma decisão deste alcance, só a vimos em 2003, quando Gerhard Schroeder decidiu alinhar com Chirac e com Putin numa aliança a que chamaram eixo da paz contra a guerra no Iraque. A surpresa não estava nem no Presidente francês nem no russo. Estava no chanceler alemão, que, pela primeira vez desde a II Guerra, ousou pôr em causa a sua aliança fiel com os Estados Unidos, a quem devia o regresso ao estatuto de nação civilizada (mais do que à Europa) e a garantia de defesa contra os tanques e os mísseis soviéticos durante a Guerra Fria. Os tempos mudaram. Merkel apoiou Bush no Iraque. Hoje, ela é a chanceler de um país cada vez mais forte, ao qual a crise financeira deu a oportunidade de conquistar o estatuto de potência hegemónica europeia. Ao contrário de Schroeder, Merkel não perde a oportunidade de denunciar os abusos dos direitos humanos cometidos por Putin. Mas também é verdade que isso nunca pôs em causa as fortes relações económicas com a Rússia e a garantia de abastecimento energético. Teve o mérito de cultivar uma nova relação com a Polónia, que o seu antecessor ignorava quando negociou a construção do Nord Stream com Moscovo. Mas também é certo que, em matéria de relações com a Rússia, de política energética ou de segurança, a chanceler segue uma abordagem unilateral, ignorando os seus parceiros europeus.
Faltava ainda esta oitava a mais. Não é bom para ninguém. É mau para a Europa este comportamento alemão de "potência emergente", quando tanta coisa de essencial está hoje em causa para os europeus. A Europa não é só o euro. Uma Europa partida ao meio, entre os amigos da América e aqueles que prefeririam ficar na zona de poder alemão, é um cenário de pesadelo que porventura não irá acontecer. Mas é preciso sabermos onde estamos e para onde nos levam. E isso não se esgota numa zona euro construída à imagem e sob liderança alemã. Inclui as relações transatlânticas, a capacidade europeia de exercer uma política externa verdadeiramente comum, a solidariedade entre os seus membros.
De surpresa em surpresa, a Alemanha vai-nos mostrando o que quer ser neste mundo multipolar em profunda transformação. Mesmo que queira manter a aliança preferencial com a França, sem a qual não há Europa nem euro, quer boas relações com a Rússia, da qual é o maior investidor e do qual depende boa parte das suas importações energéticas. É o maior parceiro comercial da China, entre os europeus, e a uma grande distância. Alinha com o Brasil numa proposta conjunta nas Nações Unidas que limite os abusos à privacidade, da mesma maneira que votou ao lado de Dilma na resolução do Conselho de Segurança sobre a Líbia. Disse que queria salvar o euro e nós acreditamos, mas ainda lhe falta fazer muito para isso acontecer de um modo que seja bom para toda a gente.
3. Como alguém escreveu, a Europa foi dormir uma sesta depois da cimeira da semana passada que só não teve uma agenda vazia graças à NSA. Continuamos à espera da "grande coligação" que a chanceler está a negociar com o SPD. E, por enquanto, ainda não parece estar em causa a decisão estratégica mais importante que a Europa tomou nos últimos tempos: negociar uma parceria transatlântica de comércio livre com os EUA, unindo os dois blocos económicos mais poderosos do mundo. Do lado de cá já há vozes a pedir o fim das negociações. Do lado de lá, o relatório publicado pelo Tesouro há alguns dias acusa o modelo económico alemão, assente nas exportações, de minar o crescimento europeu e, portanto, global com os seus superavits excessivos, conseguiu irritar bastante a chanceler. A zona euro adoptou um procedimento contra os desequilíbrios macroeconómicos segundo o qual um défice externo superior a 4 por cento desencadeia um alerta imediato, da mesma maneira que um superavit superior a 6 por cento. O que é mais curioso é que sobre isto há em Bruxelas um silêncio sepulcral, mesmo que o superavit alemão tenha sido no ano passado de 7 por cento. Maior do que o da China.
Obama precisa rapidamente de tentar retomar as rédeas do seu poder interno e internacional. Precisa de libertar a sua presidência da armadilha do Tea Party. Do mesmo modo, a Europa tem de dar mais atenção ao seu próprio Tea Party para evitar uma desagradável surpresa nas eleições europeias de Maio. É esse, porventura, o seu maior desafio. "É urgente uma grande batalha europeísta", dizia o primeiro-ministro de Itália ao El País. Não é assim que se consegue vencê-la. A Europa é suicidária. Mesmo quando o suicídio parece impossível. É uma coisa de que não nos devemos esquecer nunca, mas que os líderes europeus parecem estar a esquecer muito depressa.
Jornalista. Escreve ao domingo
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