Necessidade, incompetência ou submissão?
Quantos de nós se têm interrogado sobre a necessidade
dos sacrifícios que nos estão a ser impostos por este Governo? Provavelmente, a
esmagadora maioria dos portugueses, sujeitos a um tratamento de choque que,
aparentemente, não terminará nos tempos mais próximos. Esta dúvida também veio
ter comigo, principalmente durante o primeiro ano em que a equipa governamental
liderada pelo atual primeiro-ministro desempenhou funções. Quando, perante os
insuficientes resultados alcançados nas metas que haviam sido fixadas, o então
ministro das Finanças resolveu insistir na mesma receita, com um orçamento
caracterizado pelo "enorme aumento de impostos" por si próprio referido, comecei
a ter imensas dúvidas sobre a tão propalada necessidade dos "cortes" nos
rendimentos das pessoas em que se traduzia o inusitado aumento.
O simples bom senso aconselhava a não repetir políticas incapazes de atingir
os resultados que visavam, a indagar os factos que tinham originado o seu
insucesso e a agir no sentido de os corrigir. E foi claro para todos o que
acontecera: a dose imposta na redução dos rendimentos fora tão exagerada que as
receitas esperadas ficaram bem abaixo do que se previra, uma vez que as empresas
diminuíram brutalmente as suas vendas por efeito da redução do consumo, o que
levou à explosão do desemprego com o correspondente aumento da despesa pública
resultante dos respetivos apoios sociais. No fim do ano, o défice continuou
demasiado elevado, apesar de o défice estrutural (não considerando a despesa
correspondente aos juros da dívida) se ter comprimido, o que não tem efeito
prático para as pessoas, já que a dívida pública aumentou e a postura oficial
dos governantes garante que toda a dívida é para pagar nos prazos acordados,
considerando ser blasfémia uma sua hipotética reestruturação. Tudo aconselharia a negociar com os nossos credores uma diminuição do ritmo do esforço exigido aos portugueses, portanto um aumento da duração dos períodos de vigência dos empréstimos com eles acordados, já que eles estarão tão ou mais interessados do que nós em receber de volta o que nos estão a emprestar. E, pelas declarações da principal força da oposição, teria sido possível reconstituir o bloco expressivo que combinou os termos iniciais do memorando de entendimento. Por outro lado, o cumprimento rigoroso por Portugal, no primeiro ano, da linha política defendida pelos três organismos que nos estão a ajudar poderia constituir forte argumento para a renegociação, o que seria reforçado pelo tão propalado prestígio que o então ministro das Finanças gozaria nos meios financeiros internacionais e, especialmente, pela sua própria convicção de que o modelo aplicado não resultava, conforme viria a reconhecer na carta aberta que deixou quando se demitiu, pouco tempo depois de ser aprovado o tal "enorme aumento de impostos". Ou seja, existindo uma alternativa deste tipo, e porventura outras que os especialistas tivessem conseguido descortinar, chegamos à conclusão de que não seriam estritamente necessários os tão brutais sacrifícios que nos estão a ser exigidos.
Sendo assim, que razões ditaram a insistência na linha de rumo que estamos a adotar? Quem estará mais interessado em reduzir o bem-estar dos cidadãos, agravando os impostos sobre as famílias e os particulares enquanto se defende o alívio dos impostos sobre as empresas? Com que finalidade?
Em recente conferência (1), afirmei que "os grandes beneficiários do tipo de globalização económica que o mundo vive pertencem a um grupo restrito de indivíduos que têm as alavancas do sistema financeiro e económico, controlando as relações de um com o outro, assim como o acesso dos países, das empresas e dos cidadãos a financiamentos de que necessitem. Alguns dos elementos deste conglomerado financeiro-económico circulam entre grandes empresas privadas, empresas públicas ou a mais alta administração dos Estados, instituições financeiras e organismos políticos, financeiros ou económicos internacionais, e são chamados por vezes a desempenhar cargos governamentais nos países, situação que, em casos frequentes, tem gerado suspeitas sobre que interesses defendem prioritariamente - os públicos ou os privados. Pelo seu lado, alguns políticos que desempenharam ou ainda desempenham importantes cargos de responsabilidade nos diversos órgãos de soberania deixam-se capturar pelos interesses desse conglomerado, desenvolvendo relações promíscuas com as funções de que foram ou estão investidos, o que pode resultar da inexistência de legislação que preveja estas situações ou da sua ultrapassagem.
A própria revista The Economist, defensora do capitalismo, no seu número de 11 de Agosto passado, considera alarmante a promiscuidade entre o mundo dos negócios e os governos, como afirma na sua crónica habitual do blog Shumpeter, cujo subtítulo é bem significativo: "Pessoas de negócios tornaram-se demasiado influentes nos governos". A certa altura afirma a Economist: "Pessoas de negócios têm todo o direito de influenciar os governos a seu favor, assim como os mais altos servidores do Estado têm direito de ocupar empregos no setor privado. Os governos terão de escolher as pessoas mais habilitadas para preencher importantes funções: por exemplo, não abundam pessoas que conheçam o sistema financeiro em profundidade. Mas os governos também se devem lembrar que os negócios têm atores que agem em função dos seus interesses e tentarão defraudar o sistema em benefício próprio".
Estes beneficiários do sistema político-financeiro-económico, com uma ética pouco recomendável, olham-se como componentes de uma classe superior e com direitos especiais em relação aos restantes cidadãos; vivem com padrões de vida de um nível inimaginável para as pessoas comuns; consideram-se merecedores dos mais elevados proventos financeiros e são indiferentes perante a miséria de muitos dos seus concidadãos; distinguem as pessoas pelo que possuem e não pelo que são, pelo que entendem que o seu "valor de mercado" é do nível mais elevado, mercado com que se encontram intimamente ligados e que é por si considerado como o real Deus ex maquina que determina todas as movimentações políticas".
Esta semana, vi confirmadas as minhas palavras por José Silva Peneda, membro do PSD, quando afirmou que "o poder político estava capturado pelo sistema financeiro", o que aliás tem vindo a ser referido por outros políticos igualmente experientes, como foi o caso de João Cravinho em conferência efetuada no ISCTE em 10 de maio do ano passado, ao declarar que "existe uma captura do poder político pelo poder económico".
Tudo visto, que fazer para pôr fim a esta captura?
Parece claro que, isolado, Portugal não poderá fazer inverter a situação, já que ela é de natureza global, excedendo as nossas capacidades. Mas certamente que poderemos dar a nossa contribuição para que seja corrigido o aberrante contexto que nos sufoca. Agindo particularmente no âmbito europeu, em associação com os nossos parceiros. Colaborando para que o sistema financeiro-económico passe a ser efetivamente regulado pelo poder político. Só assim será possível desenvolver políticas em função do interesse geral e não do interesse de meia dúzia de privilegiados que nos exploram.
1) Instituto Internacional Casa de Mateus, em 18 de Outubro de 2013
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