Memórias, perigos e fronteiras na gestão dos museus e monumentos
Avolumam-se os sinais de mudança de tempo para os
museus e monumentos da área de Belém, talvez com extensão à Ajuda. O secretário
de Estado da Cultura, porventura pressionado pelo "buraco" do novo Museu
Nacional dos Coches (MNC), emitiu discreta nota dizendo que reuniu com alguns
responsáveis por equipamentos da zona. O presidente de entidade empresarial
gestora de algum do património público em Sintra, António Lamas, ofereceu a
"sua" solução (PÚBLICO 30.10.2013). E correm até já rumores sobre nomes a quem
assentaria bem a direcção da coisa que há-de nascer.
Falta apenas saber que coisa será essa, que tanto pode trazer o bom
tempo como a mais cavada borrasca. Por agora e para que não se repita o mesmo de
sempre, ou seja, fazer da "sociedade civil" mera figura de retórica e mais tarde
lamentar que a mesma tenha acordado demasiado tarde, convém avivar memórias,
prevenir contra perigos e sobretudo delimitar os territórios em que se contenha
a defesa do bem público e da cidadania.Quanto a memórias, acrescentamos às dos sucessivos planos oficiais para zona (todos prescientes, é claro, mas feitos à porta fechada), as duas únicas sessões de debate sobre o futuro dos museus e monumentos de Belém, em Maio de 2009 (organização do ICOM Portugal) e Janeiro de 2010 (organização conjunta do ICOM Portugal e da INDUSCRIA), que reuniram a quase totalidade dos seus gestores, primeiro entre si apenas e depois em debates públicos muito participados, de que resultaram numerosas sugestões operacionais (desde logo quase todas as que António Lamas agora apresenta) e conceitos estratégicos (como o de fazer de Belém um "Distrito dos Museus", inscrito no planeamento municipal). Bem sei como na altura estas iniciativas associativas foram ignoradas pelo poder instituído no Palácio da Ajuda, que reservadamente recriminou a posteriori a participação de alguns dos seus subordinados e publicamente se limitou a proclamar aos quatro ventos que tinha projectos já amadurecidos... tão amadurecidos que devem ter apodrecido. Recordo ainda os materiais resultantes de sessão extraordinária da secção de Museus do Conselho Nacional de Cultura realizada em Maio de 2010, por convocatória incómoda de parte dos seus membros, tendo como ponto único da ordem de trabalhos a análise da "reorganização dos museus do eixo Belém-Ajuda". Ou seja: existe ampla reflexão; só falta querer pôr todas as pessoas e forças sociais à mesma mesa.
Quanto a perigos. É fora de dúvidas que há muito a fazer nos museus e monumentos de Belém-Ajuda e que uma maior articulação ou até gestão integrada poderia trazer benefícios reais, mais que não fosse por acabar de vez com as quintinhas em que se encerram as diferentes entidades tutelares. Mas acautelemos um dos primeiros e mais óbvios logros: o de sobretudo visar encontrar verbas para manter aberto o futuro MNC, retirando-as, com a agilidade que o respeito pelas regras da contabilidade pública dificulta ou mesmo impede, das receitas geradas pelo Mosteiro dos Jerónimos e Torre de Belém. Algo semelhante ao que se diz ter sido o negócio feito em Sintra, onde as receitas muito avultadas do Palácio da Vila serviram para cobrir os prejuízos muito inferiores do Palácio de Queluz, num ganho líquido considerável que, juntamente com as maiores facilidades de procedimento administrativo e até de gestão de pessoal (incluindo regimes de precariedade laboral inaceitáveis e que ficam mal ao Estado favorecer), criaram à partida condições de sucesso - isto sem diminuir o inegável e gratificante êxito da gestão actual, contrariamente aliás às anteriores (e o tempo nos dirá se às futuras). Existem depois riscos mais subtis. Um deles é o de, para usar metáfora agrícola, converter jardins de flores em campos de batatas. E nem sequer me refiro aqui aos desvios que na ânsia de gerar receitas conduzem a disneyficações superficiais, que podem (embora seja discutível que devam) ser prosseguidas em monumentos, mas seriam intoleráveis em museus com colecções vastas, recheadas de "tesouros nacionais". Penso sobretudo que no caso de Belém, contrariamente ao de Sintra, algumas das entidades a envolver possuem vida e cultura organizacional próprias, dispõem de capacidades instaladas e constituem "marcas" identitárias que seria culturalmente criminoso anular ou sequer diminuir, sob o argumento da maior rentabilidade de gestões centralizadas.
Quanto a fronteiras de bem público e cidadania. Prevenidos os perigos referidos anteriormente, que de modo algum são insuperáveis, tenho para mim que do ponto de vista estritamente técnico a eventualidade de criação de uma entidade de direito privado (ainda que de capitais públicos, que em todo caso podem ser privatizados, como até os correios e a água se admitem sê-lo) poderá constituir uma mais-valia, talvez valiosa, capaz de trazer a muitos profissionais o "suplemento de alma" de que estão carentes. Será um desafio que, pessoalmente, acho valer a pena, embora aceite estar a ceder aqui ao egoísmo que fatalmente assalta quem, como eu, possui uma vida profissional de décadas no mais antigo museu da zona de Belém. O problema é que não consigo em mim separar o profissional do cidadão, mais a mais tendo feito a opção (porque de opção se trata) de seguir a via do movimento associativo. E sendo assim tenho de perguntar o que vai acontecer a todos os museus e monumentos espalhados por esse país fora, que serão sempre ultra-deficitários e jamais atrairão o espírito empresarial, quando as poucas "jóias da coroa" susceptíveis de produzirem receita tiverem sido alienadas? Reforçará então o Estado o orçamento para lhes acorrer ou pura e simplesmente desistirá de ter uma política nacional? É que a ninguém escapa a falácia de dizer que entidades do tipo Monte da Lua não custam nada ao Orçamento do Estado. Custam e muito, em receitas líquidas perdidas, ou será que isto não conta ? E, já agora, como pode compatibilizar-se uma tal deriva com o regresso do património cultural à esfera da administração directa do Estado, conforme decorre da evolução para Direcção-Geral? Poderá também algum quartel ou ramo das Forças Armadas ser entregue a gestão privada? Por mim não tenho dúvidas: No dia em que aos Palácios da Pena, da Vila em Sintra, de Queluz... se juntarem o Mosteiro dos Jerónimos, a Torre de Belém, alguns museus nacionais, todos entregues a gestão privada, haverá quem fale em progresso, mas outros, entre quais eu me incluo, dirão que se recuou tanto que pode ter sido quebrado o contrato social. Ora, as mudanças de regime começam assim. E as convulsões sociais que as acompanham também. Só não se sabe como acabam.
Presidente do ICOM Portugal
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