Por Gustavo Cardoso
07/11/2013 in Público
"O Estado é necessário para
assegurar a possibilidade de todos viverem uma vida decente e em dignidade,
mesmo se não puderem ter muito sucesso no mercado, e também a possibilidade de
os cidadãos gerirem com sucesso as tarefas partilhadas e colectivas que entenderem."
O título deste artigo tem algumas semelhanças com o título
da obra de Hergé, Tintin no país dos sovietes, mas a semelhança termina aí.
Jurgen Habermas não é um repórter personagem de banda desenhada, mas sim um
filósofo e sociólogo, e ao contrário de Hergé, que não esteve na Rússia quando
desenhou essa primeira obra do seu herói Tintin, Habermas esteve na passada
semana em Lisboa e conhece bem o nosso país, a Alemanha e a Europa.
Portugal é hoje tão conhecido na Europa, como destino
turístico, como o é por ser um país onde as reformas estruturais, guiadas por
Bruxelas, Frankfurt e Washington (embora aqui com menor peso e vontade), devem
ser aplicadas para reduzir o déficit do Estado e reequilibrar o sistema
bancário.
No entanto, apesar das cimeiras, das coberturas televisivas
e artigos de jornal, a Europa não se conhece bem a si mesma. Não se conhecendo
a si mesma, a Europa vive o presente omitindo o seu passado longínquo – isto é
a última guerra mundial e o motivo porque nos juntámos nesta União. Continua a
olhar o presente a partir de um passado mais recente – o dos anos noventa
quando acreditava poder ser relevante a nível global. E olha para o futuro de
uma forma auto-centrada, isto é, pensa o que será amanhã em função dos seus
interesses nacionais e não do interesse nacional enquanto partilha de
interesses comuns.
Porque não se conhece a si mesma, a Europa também continua a
acreditar, estranhamente, mas não em contradição com uma visão auto-centrada,
que todos os países são parecidos e que as singularidades são desprezíveis. Daí
que não se aperceba de como há países extremamente desiguais e países
extremamente menos desiguais.
E que em muitos desses países, como em Portugal, o que os
caracteriza, são desigualdades estruturais (que em dado momento a Europa havia
decidido ajudar a corrigir) e cujas actuais propostas de reformas estruturais
estão a acentuar. Isto porque a ordem é para manter as desigualdades, porque as
políticas que guiam a acção estão assentes numa normatividade neoliberal na
qual a desigualdade é a norma, e a norma resulta da ideia de que apenas os que
tiverem sucesso no mercado merecem melhorar a sua vida.
Resumindo, estamos hoje neste local incerto porque a ideia
de um modelo social europeu se perdeu algures quando muitos acharam que
deveríamos, de algum modo, assumir comportamentos ou expressar valores
neoliberais no nosso dia a dia e quanto
ao nosso futuro.
A ideia de que nos podemos todos ter tornado neoliberais é
poderosa e não é da autoria de Habermas, mas sim de Colin Crouch no seu livro
Making Capitalism Fit for Society. Mas porque acha Crouch que mesmo os que
votam à esquerda sem ter partido, ou que se consideram socialistas no sul da
Europa, ou sociais-democratas no norte da Europa, ou são verdes ou mesmo
comunistas, se podem ter tornado, sem o perceber, neoliberais? E, se tal
aconteceu, de que modo tal explica o porquê da Europa estar hoje como se
encontra? E o que fazer se não gostamos da imagem que surge quando nos olhamos
ao espelho?
Como sugere Crouch, embora a Terceira Via, protagonizada
pelos trabalhistas de Blair, possua claras limitações, também possuirá pelo
menos uma virtude: a de nos alertar para a exaustão e impossibilidade de
regressar aos velhos projectos.
Mas a mais importante limitação, presente nas diferentes
terceiras vias experimentadas, reside em ter-se aceite, durante largos períodos
governativos, o capitalismo de forma acrítica. E, ao fazê-lo, termos ignorado
os problemas criados aos cidadãos pela acumulação desmesurada de poder por
parte de empresas globais, na tentativa de remunerar sempre cada vez mais os
seus accionistas e conselhos de administração – basicamente, dando corpo à
receita para a criação de crises como aquela em que nos encontramos hoje.
Segundo Crouch tornámos-nos "todos" neoliberais
quando acreditámos que algo que em teoria parecia fazer sentido, isto é, que
podemos ter estados fortes com um papel limitado na garantia da
operacionalidade dos mercados, podia ser aplicado na prática. E que, apenas por
via da aplicação política de uma teoria, se garantiria que a esperança, que faz
com que a vida valha a pena ser vivida, continuasse a guiar as sociedades
europeias.
Tornámos-nos neoliberais, sem o escolher, quando assumimos
que tínhamos de aceitar alguma forma de capitalismo neoliberal; mas errámos
quando confundimos esta aceitação com a sua transposição para a esfera da
governação e enquanto valor de governo das sociedades.
No entanto, o “neoliberalismo” presente na governação de uma
parte substancial dos países europeus é muito mais um neoliberalismo de
favores, em que tanto as elites económicas quanto as políticas estão em
concertação para proteger interesses por si definidos, do que um puro
neoliberalismo promotor de um contexto
de liberdade de escolha e de acesso aos produtos dos mercado à maioria das
populações.
Os pensamentos de Habermas ou Crouch mostram-nos que as
ideias e a sua ligação com a actuação política na economia, sociedade e
fiscalidade não desapareceram. Estão activas e em combate com outras formas de
pensar. Por outras palavras, a tecnocracia, no contexto da governação europeia,
surgida como forma de fazer política, fazendo de conta que as ideias políticas
estão ausentes e que há apenas teorias de gestão e de relações públicas, a
serem aplicadas por pessoas que as sabem aplicar, não se tornou ainda na única
forma de fazer política.
De alguma forma as propostas tecnocráticas, mesmo quando
legitimados nas urnas europeias sob a forma de programas de reestruturação e
austeridade, estão essencialmente imbuídas de uma lógica programática
neoliberal. O neoliberalismo político não é sobre dar aos consumidores maiores
escolhas em mercados competitivos, mas sim sobre como aumentar o poder dos mais
poderosos no mercado e também da concentração de privilégios em poucos
indivíduos. Daí que, em vez de ser a aplicação à realidade de um conjunto de ferramentas
baseadas em uma pura teoria económica, seja efectivamente um movimento
político.
Um capitalismo sem um Estado para o salvaguardar dos seus
excessos, cria as condições para o seu próprio falhanço e crises duradouras, as
quais, por sua vez, minam a própria credibilidade dos estados e dos sistemas
políticos e económicos.
O capitalismo viciou-se no neoliberalismo mas, como em todos
os vícios, a euforia do momento acaba sempre por comprometer a sustentabilidade
do médio prazo.
Daí, que Crouch sugira que devemos lutar por uma versão de
capitalismo de coordenação económica de mercado em vez de uma ortodoxia incapaz
de reduzir as desigualdades e promover crescimento económico. Essa é a forma de
capitalismo que melhor serve os cidadãos e, se quisermos ir mais longe, também
é aquela que vai ao encontro do interesse da maioria dos actores económicos
porque sustém a viabilidade do próprio capitalismo.
Um capitalismo de coordenação económica de mercado que,
aceitando o valor e a prioridade dos mercados na economia, aceite também as
suas limitações e deficiências. O que implica igualmente fazer a pergunta:
quando e como se torna o Estado necessário? E, consequentemente, uma tentativa
de resposta: o Estado é necessário para assegurar a possibilidade de todos viverem
uma vida decente e em dignidade, mesmo se não puderem ter muito sucesso no
mercado, e também a possibilidade de os cidadãos gerirem com sucesso as tarefas
partilhadas e colectivas que entenderem. No fim de contas, o que Crouch
sustenta é a necessidade de um reactivar dos movimentos políticos existentes
perante a necessidade de serem capazes de representar a parte da sociedade com
menor distribuição de rendimento e riqueza, ou seja, a maioria da população
europeia.
É essa a escolha política que os governos precisam de
encarar e responder: estar do lado dos interesses individuais de pessoas e de
algumas organizações ou dos interesses dos indivíduos e da sua liberdade de
organizar o seu futuro? É também essa a escolha dos governos Europeus a que
Habermas se refere quando diz que precisamos de sair da lógica de interesse
próprio de curto prazo que marca o comportamento de quase todos os governos.
No geral, o que podemos concluir sobre a Europa e o seu
futuro é que a voz popular talvez tenha alguma razão, ou seja, a culpa é mesmo
dos políticos. Como sugere Habermas, a culpa é dos que hoje, ocupando lugares
de poder, não apelam à mudança usando o melhor de nós; e apenas buscam
manter-se no poder apelando ao que de pior há em cada um de nós.
O autor é docente do ISCTE-IUL em Lisboa e Investigador do
Centre d'Analyse et Intervention Sociologiques (CADIS) em Paris.
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