O ginásio do liceu é um espelho das más condições em que toda a escola se encontraMesmo nas salas de aula, a degradação é bastante evidente.
A luta pelo centenário Liceu de Camões não acaba ao cair do pano
Professores, pais e alunos juntam-se para uma gala de solidariedade no Coliseu dos Recreios. Deixam uma promessa: não vão deixar cair a escola centenária
O sismógrafo antigo oferecido pelos alemães nas
décadas de 1930 ou 1940, quando Hitler estava no poder, ao então "Lyceu" de
Camões está impecavelmente arrumado no armário na velha sala de Física. Hoje é
quase uma peça de museu mas se houvesse um terramoto como o que abalou Lisboa em
1755 talvez o pequeno aparelho ainda funcionasse. O edifício é que dificilmente
ficaria de pé.
Em 104 anos, o primeiro liceu - agora escola secundária - construído de raiz
em Portugal nunca teve obras de fundo e as marcas do tempo estão a pôr em risco
a segurança dos que o frequentam. Enquanto esperam por uma intervenção que
ninguém sabe quando (e se) irá avançar, professores, pais e alunos, actuais e
antigos, não baixam os braços.Na terça-feira às 21h30, sobem ao palco do Coliseu dos Recreios para tentar angariar pelo menos 20 mil euros - tanto quanto custa esta iniciativa patrocinada por privados - para a reparação urgente das janelas e do escudo que está sobre a porta principal, em risco de queda. Entre concertos, peças de teatro, dança e testemunhos de actuais e antigos alunos - entre eles Durão Barroso, Mariano Gago, Nicolau Breyner, Luís Miguel Cintra ou Júlio Isidro - a organização quer mostrar que o edifício projectado por Ventura Terra, monumento de interesse público, é feito de mais do que paredes e tectos a cair.
Obras suspensas
A requalificação a cargo da Parque Escolar chegou a ter início marcado para Agosto de 2011 mas foi suspensa, sem data para avançar. O projecto do arquitecto Falcão de Campos custa 18 milhões de euros. Um valor que "não está previsto" no orçamento da empresa pública para 2014, adianta ao PÚBLICO o seu gabinete de comunicação, não revelando quando é que a intervenção poderá avançar.
Nada de novo para o director da escola, João Jaime Pires. Há dois anos que este professor de Matemática, apenas um dos muitos rostos da luta pela requalificação do liceu, percebeu que o projecto "morreu na praia". "Não é um problema de dinheiro. Há um critério escondido do qual ninguém fala", lamenta. O director considera que o liceu foi "usado" pela Parque Escolar para "prolongar" a sua actividade. "Só faz sentido haver Parque Escolar enquanto houver edifícios de grandiosidade como o Camões para requalificar."
Por ter forma de tridente, com uma fachada principal e três blocos perpendiculares sem uma fachada traseira, o liceu apresenta "risco real" de ruína em caso de sismo, garante o engenheiro João Appleton, envolvido no projecto de redução de vulnerabilidade sísmica. No subsolo do liceu passa uma linha de água, o que torna os terrenos pouco consistentes. "As fundações estão a poucos metros de profundidade", aumentando a fragilidade do edifício.
Num relatório, o Laboratório Nacional de Engenharia Civil atesta o "mau estado de conservação" do edifício e a "extrema vulnerabilidade" do ginásio. Também a autarquia detectou "anomalias" que oferecem "risco para a saúde pública" e "insegurança" para os alunos.
Espaço de liberdade
No ano passado, a associação de pais conseguiu dinheiro para pintar as paredes das salas. Comprou telas para tapar as janelas sem persiana porque os alunos não viam o quadro, com a luz do sol, diz a presidente da associação, Paula Soares, que mesmo assim matriculou as duas filhas na secundária. Porquê? Por ser das poucas escolas apenas com ensino secundário em Lisboa, porque os alunos têm "espaços de reflexão, ciclos de cinema, projectos de solidariedade" e "saem do liceu a saber pensar".
"O que é realmente importante é a estrutura do edifício, sem corredores, com as salas de aula viradas para o pátio, um espaço de liberdade", resume por seu turno João Jaime Pires. E sublinha que, apesar das más condições do edifício, todos os anos há uma enchente de alunos a querer entrar na escola. Actualmente, estudam no Camões 1700 alunos do 10.º ao 12.º ano, incluindo ensino nocturno e cursos profissionais.
Os anos pesam no Camões e isso vê-se por todo o lado. Nas paredes rachadas, nos tectos forrados de cortiça a desfazer-se, nas janelas que deixam passar o frio, no ginásio - palco de festas, projecções de cinema e discursos, sala de ginástica - cheio de infiltrações.
Era no ginásio que antigamente se faziam os exames de admissão ao liceu. O apresentador Júlio Isidro, que entrou para o Camões aos dez anos, em 1955, recorda bem o seu. Teve "zero erros" no ditado. Era o aluno número 27 de uma turma de 42. Lembra-se que era obrigatório usar gravata e proibido correr no pátio. "Às vezes dava dois passos e olhava com medo para as galerias para ver se estava o reitor, com a sua gabardina cinzenta e o chaveiro a tilintar pendurado no dedo."
Hoje os alunos têm mais liberdade mas continuam sem poder correr. O campo de jogos está fechado há oito anos porque o muro que o circunda cedeu. De edifício modelar à época em que foi inaugurado, em 1909, o Camões passou a liceu remediado. As salas de estudo, por exemplo, ficam na antiga casa do reitor, onde este vivia com a família. O fim da figura do reitor foi uma das conquistas de Abril. Nos corredores do liceu respirava-se o mesmo medo que se vivia nas ruas, durante o Estado Novo. "Tínhamos aqui a PIDE", conta Júlio Isidro. Às quartas-feiras e sábados à tarde, os alunos - o liceu foi unicamente masculino entre 1936 e 1971 - tinham de participar nas paradas da Mocidade Portuguesa ou chumbavam por faltas. O apresentador recorda o fascínio que, inocente, tinha por toda a encenação. "Usávamos uns calções caqui apertados por um cinto com um S na fivela, que significava Servir Salazar." A camisa verde e a gravata compunham o resto da farda. "Chamávamos-nos piolhos verdes."
Júlio Isidro foi aluno de notáveis como Vergílio Ferreira e Mário Dionísio. Recorda que falou uma única vez com o reitor, para ser interrogado sobre um "acidente" no laboratório de Química. Ricardo Silva, aluno do 12.º e um dos fundadores do Movimento Camoniano (grupo de alunos que dinamiza a escola, a par da associação de estudantes), não imagina o que seria não poder falar com o director. "Não existe distância" entre alunos e direcção, afirma. A gala de terça-feira envolve toda a comunidade escolar em torno de um objectivo comum, gravado na faixa pendurada à entrada da escola, que cita um verso de Camões: "É fraqueza desisir da cousa começada".
Sem comentários:
Enviar um comentário