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Rascunho
de uma leitura “político-social” do “Brexit”
PAULO RANGEL
05/07/2016 – PÚBLICO
Não
há democracia nem humanismo que resista ao olvido de milhões de
seres humanos, cheios de razões e com uma boa parte da razão.
1. Na semana
passada, dei nota de como o interesse geral britânico foi hipotecado
às mais funestas e despudoradas ambições e invejas pessoais.
Faltava a essa nota o conhecimento – embora já lá morasse a
suspeição – de que, no melhor estilo da tragédia shakespeariana,
até Boris Johnson acabaria esventrado pelo seu mais directo aliado,
Michael Gove (a quem, de resto, não falta uma mulher com os soturnos
requintes de Lady Macbeth). Tu quoque Michael?
2. Decerto bem mais
importante é tentar compreender algumas das linhas de fractura
“política” e “social” e “político-social” do referendo
britânico, seguramente mais na tradição de um Montesquieu e de um
Tocqueville do que de um Marx. Para isso, temos de convir – ainda
que à guisa de mero esboço ou arrazoado – em duas ou três
asserções, tiradas das primeiras “conclusões” de sondagens,
estudos de opinião e outros instrumentos sociológicos. Parece claro
haver um conflito geracional: as gerações mais jovens preferiam
permanecer na União Europeia, as gerações mais idosas queriam
sair. Parece também cristalino que subsiste uma tensão social: num
país altamente assimétrico, as classes mais favorecidas
economicamente e mais esclarecidas culturalmente votaram pela
manutenção, as classes mais pobres e desfavorecidas e com menos
acesso à educação e à cultura optaram pela separação.
Finalmente, também parece haver uma fissura relativamente óbvia
entre a população cosmopolita urbana (designadamente da Grande
Londres) e a população dos subúrbios industriais abandonados, do
interior e do mundo rural. As votações na Escócia e na Irlanda do
Norte têm razões muito próprias – que merecem uma análise
detalhada e separada – e põem problemas políticos muito mais
graves e sérios do que a negociação do tão falado acordo
económico. O País de Gales, agora nas bocas do mundo por causa do
omnipresente futebol, carece de uma explicação particular, pois aí
abundam também motivos singulares. Mas hoje, deixemo-nos ficar pela
leitura mais geral – a tal “político-social” – que, ao fim e
ao cabo, se aplica basicamente à Inglaterra e não tanto aos outros
países que formam o Reino Unido. Curiosamente, e como procurarei
defender, aplica-se à Inglaterra como se aplica ao resto da Europa e
ao mundo ocidental em geral.
3. Se procurarmos
fazer um cruzamento, mesmo que tosco, daquelas três linhas de
fractura, aquilo que obtemos é um conflito entre dois mundos. Dois
mundos, note-se, que não são duas “classes” no sentido
“marxiano”. São bem mais do que isso, correspondem a duas
“representações” do mundo e da vida ou do “mundo-da-vida”
(Lebenswelt). De um lado, um mundo globalizado, viajado, com
literacia digital, cosmopolita, aberto, com rendimentos suficientes
para ter uma vida decente (ou que, pelo menos, o sujeito considera
“interessante” e “prometedora”). Do outro lado, temos um
universo de gente que foi sendo excluída pela globalização e pela
deslocalização, que não sabe usar um computador, nem recorre ao
“facebook”, ao “airbnb” ou à “uber”. São trabalhadores
que perderam o emprego ou qualidade no emprego com a “terciarização”
e “financeirização” da economia e que viram na entrada de
imigrantes a chegada de mão-de-obra barata, que baixava os salários
e diminuía os postos de trabalho. Aqui está também a classe dos
pensionistas, por natureza receosa e insegura, e que, durante a
crise, foi fortemente abalada pela ideia de insustentabilidade da
segurança social ou pela volatilidade dos fundos de pensões.
4. A descrição
feita nestes termos é assaz perigosa porque apela a uma valoração
moral ou, no mínimo, estética. Os cosmopolitas abertos seriam
obviamente os “bons” e os “belos” da história, que estão do
lado certo da modernidade, e os info-excluídos e isolacionistas
seriam os “atrasados” e os “feios” da narrativa, que
engrossariam as forças telúricas do conservadorismo. A primeira
obrigação de quem queira aqui fazer alguma leitura social e
política, com proveito e com honestidade, é abster-se desse
preconceito moral, cultural, social e estético. E aceitar, de uma
vez por todas, que, de facto, a globalização, a multiplicação da
mobilidade e a desterritorialização estão a criar estas duas
forças de tracção e que os que estão em aparente perda têm de
encontrar uma resposta política para essa perda e, em particular,
para o “esquecimento” ou a “ocultação” a que parecem
votados. São justamente estas massas esquecidas pelos cultores de
“emojis” que estão, em todo o mundo ocidental, a votar nas
forças populistas e extremistas – na Áustria, na França, na
Grécia, na Holanda, na Espanha, na Polónia – e a alimentar o
fenómeno norte-americano que dá pelo nome de Donald Trump.
5. Num certo
sentido, o Brexit representa menos um fenómeno britânico, inerente
a toda uma história e tradição de “autocontemplação”
nacional e de afirmação orgulhosa da singularidade, e espelha,
muito mais expressivamente, um fenómeno comum à civilização
ocidental. E, por isso, não deve ser visto apenas na equação
entrada ou saída da União, “soberanismo” ou “europeísmo”,
pretensa tecnocracia ou “devolução democrática”. Tem de ser
visto como o enfrentamento de duas placas tectónicas
“sócio-político-culturais”. Não tenho dúvidas de que o melhor
caminho é o do aprofundamento da internacionalização e do
cosmopolitismo e que a demografia – a quem já alguém chamou a
única “ciência social exacta” – e a tecnologia acabarão por
se impor. Mas estou bem ciente de que esse caminho não pode ser
feito à custa da marginalização e do apagamento de ordens sociais
inteiras que, em grande medida, foram pura e simplesmente esquecidas,
atiradas para o depósito de um qualquer museu antropológico.
As instituições
europeias, os governos nacionais e os partidos políticos precisam
urgentemente de “apreender” este outro lado do "Brexit".
Não há democracia nem humanismo que resista ao olvido de milhões
de seres humanos, cheios de razões e com uma boa parte da razão.
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