Como
Ventura Terra moldou Lisboa: dos palacetes a S. Bento
Sobrinhos-bisnetos
comemoram os 150 anos do nascimento do arquiteto com visitas às suas
obras. Este é o Palacete Mendonça.
26 DE JULHO DE 2016
Lina Santos
"Estava fora de
portas, mas com a cidade a seus pés". A descrição de
Guilherme Pereira é factual. Estamos na loggia, a varanda do segundo
piso do Palacete Mendonça, e daqui o Parque Eduardo VII é um tapete
verde que se estende até ao rio Tejo. Quem passa na rua Marquês da
Fronteira, mesmo ao lado de outro Palacete, o Leitão, nem vê.
Oculto pela vegetação está um dos edifícios de maior relevo do
arquiteto Miguel Ventura Terra (1866-1919), exemplo quase intocado
das obras para privados que projetou ao longo da sua (não muito
longa) carreira.
A fachada do
Palacete Mendonça
| Orlando Almeida/
Global Imagens
Quando foi
inaugurada, a casa de Henrique Mendonça, roceiro em S. Tomé e
Príncipe, era um prodígio tecnológico: foi instalado aqui um dos
primeiros elevadores que se viram na capital. Passou da família para
a seguradora Império e, mais tarde, para a Universidade Nova de
Lisboa, que a deixará em setembro. O edifício e os três hectares
do jardim foram vendidos à Fundação Aga Khan por 12 milhões de
euros.
O lote do Palacete
tem um jardim com cerca de três hectares de área
| Orlando Almeida/
Global Imagens
Guilherme Pereira é
uma das cerca de 30 pessoas que no sábado, às 10.00 da manhã,
esperava ao portão pela visita guiada da arquiteta Júlia Varela,
cujos conhecimentos sobre Ventura Terra vêm do doutoramento sobre
arquitetura doméstica que está a preparar e que inclui este prédio.
Foi convidada pela associação Fórum Cidadania Lx em parceria com a
Associação Ventura Terra, fundada em 2012 por descendentes do
arquiteto.
Alda Terra e Luís
Leiva, sobrinhos-bisnetos do arquiteto, e outros interessados na
obra, dedicam-se a divulgar, preservar e resgatar o espólio
documental de Ventura Terra, um dos 13 filhos de João e Vitória
Guerra, nascido a 14 de julho em Seixas. É nesta localidade minhota
que fica a casa que desenhou para as suas férias. Foi adquirida pela
câmara municipal de Caminha em 2002 e entregue em regime de
comodato, por 30 anos, à Associação Ventura Terra (AVT).
Luís Leiva é quem
na associação mais se tem dedicado à empreitada de recuperação
da casa. Já têm projeto de recuperação para o edifício, em
franca "degradação", da autoria do arquiteto Carvalho
Araújo, de Braga. Explica que se vão candidatar a fundos
comunitários, que procuram "benfeitores" para a quantia
que estes apoios não cobrem e que esperam ter a obra pronta em 2020.
Ventura Terra com a
planta das cortes, numa pintura de Veloso Salgado, artista com quem o
arquiteto trabalhou em diversas obras
| Orlando
Almeida/ Global Imagens
Um ano de
comemorações
Em 2016, ano em que
se assinalam 150 anos sobre o nascimento do arquiteto, a associação
tomou em mãos a missão de pôr o nome de Miguel Ventura Terra no
mapa. Programou conferências, colabora na preparação de um
documentário realizado por Fernando Carrilho (a estrear entre abril
e junho de 2017) e promove visitas guiadas às suas obras com outras
entidades, como aconteceu com o Palacete Mendonça. "Era agora
ou nunca", afirma Paulo Faroleiro, responsável pela gestão do
campus da Nova SBE (School of Business and Economics), sobre a
possibilidade de conhecer por dentro o Palacete Mendonça.
A vista da loggia, a
varanda do segundo piso que deixa ver toda a cidade até ao rio
| Orlando
Almeida/ Global Imagens
Aqui vai ficar,
depois de seis milhões de obras de reabilitação, a primeira sede
mundial da comunidade ismaelita, de acordo com o DN. "É uma
responsabilidade para este homem cosmopolita que é Aga Khan",
afirma Paulo Ferrero, do Fórum Cidadania Lx.
Entremos, pois.
Júlia Varela faz as honras do palacete: "Esta é uma obra
excecional desta época e do arquiteto Ventura Terra". Projeto
de 1900, inaugurado em 1909 e prémio Valmor, como se lê numa placa
no exterior. "Elogiam-lhe a loggia, no último piso, como um dos
elementos a que a arquitetura portuguesa devia estar atenta, por ser
adequada ao clima", conta a cicerone.
Estudos em Paris
Contextualizem-se os
tempos: Miguel Ventura Terra estuda na Academia de Beaux-Arts em
Paris, berço das vanguardas, trabalha com o arquiteto Victor Laloux
e regressa Portugal em 1896, após 10 anos de vida francesa. "Tem
uma formação cosmopolita e internacionalista, nos antípodas do
nacionalismo simbólico de Raul Lino", sublinha o professor de
Belas Artes Fernando Baptista Pereira, numa palestra integrada nas
comemorações, na quarta-feira, no liceu Maria Amália Vaz de
Carvalho (1915), outras das obras de Ventura Terra, na quarta-feira.
São dele, também o Liceu Camões e o Pedro Nunes (ambos de 1907).
"Sentimos que é a mesma pessoa a desenhar, mas não repete a
mesma fachada".
Estudioso de Raul
Lino, Baptista Pereira traça um paralelo entre ambos, e sublinha
aquela que é a grande diferença entre ambos. Raul Lino, que estuda
na Inglaterra e na Alemanha, morre em 1973, com 93 anos; Miguel
Ventura Terra, aos 53, vítima de uma crise de gota. "Mas curta
carreira não significa pouca obra", frisa.
Diretor de Edifícios
Públicos e Faróis depois de voltar de Paris, Ventura Terra assina a
capela do Palácio Nacional da Ajuda, uma das últimas encomendas
régias, vence (contra Raul Lino) o concurso para os pavilhões de
representação de Portugal na Exposição Universal de Paris, em
1900, faz a renovação do Palácio de S. Bento, e responde a quase
todos os programas públicos - da maternidade Alfredo da Costa à
filial do Banco de Portugal, no Porto, passando pelo plano geral de
melhoramento do Funchal, o teatro Politeama, o santuário de Santa
Luzia e uma sinagoga (ver texto ao lado). A estes acrescenta as
encomendas privadas para a classe burguesa endinheirada. "Quando
morreu era um homem rico", conta o professor Fernando Baptista
Pereira". Distribuiu a fortuna pela família e os mais
necessitados. A sua casa, na rua Alexandre Herculano (onde, aliás,
deixou várias obras), ficou para as faculdades de Belas Artes de
Lisboa e do Porto.
Foi um dos
presidentes do Grupo dos Amigos do Museu Nacional de Arte Antiga,
colabora na elaboração dos estatutos da Sociedade de Arquitetos
Portugueses e a partir de 1908 torna-se vereador na câmara de
Lisboa.
"É um
arquiteto para a cidade", resume Baptista Ferreira. E, no
entanto, tem permanecido na sombra. Não por muito mais tempo, numa
História da Arte "em revisão", acredita o professor de
História da Arte.
O elevador, um dos
primeiros da cidade de Lisboa, era uma inovação tecnológica
| Orlando
Almeida/ Global Imagens
Júlia Varela
frisa-o também. "Até há pouco tempo, muita gente não gostava
deste tipo de arquitetura, considerava-a demasiado clássica, mas ele
está virado para o futuro". "O programa habitacional muda
muito", defende a arquiteta, autora de Palacete Mendonça:
ecletismo, internacionalismo e progresso, publicado nos Cadernos do
Arquivo Municipal, em fevereiro. E, neste caso, responde ao gosto do
proprietário.
O palacete foi
encomendado por Henrique José Monteiro de Mendonça (1864-1942),
proprietário da roça Boa Entrada, em S. Tomé e Príncipe. Embora
não saiba exatamente o que o levou a contratar Ventura Terra,
sabe-se que o arquiteto era o mais reputado da cidade. Em 1900 tinha
em mãos a renovação das Cortes e outras obras de grande dimensão.
Júlia Varela conduz
os visitantes até à porta cocheira, sublinhando o que o pode passar
despercebido: "Ventura Terra aproveita o desnível para a porta
da cave, mantendo a simetria no piso nobre". O grupo avança
para essa entrada que seria de serviço mas igualmente importante,
que permitia aos donos e visitantes chegar de carro ou coche.
Dentro, uma
surpresa: uma zona de circulação secundária, como era costume
então, através de uma escadaria. "Mas tem uma nobreza e uma
dimensão que não permite chamar assim", diz Júlia Varela.
Encaixa uma das inovações tecnológicas: o elevador hidráulico,
"um dos primeiros a funcionar em Lisboa", sublinha Júlia
Varela. Veio de Paris, como outros elementos da construção -
puxadores, aquecimento, portadas. Abundam as madeiras exóticas.
Casa de banho museu
Bem-vindos ao piso
nobre, o "piso de representação". O gabinete que um dia
pertenceu a Henrique Mendonça conserva os móveis originais. O
mobiliário, madeira, embutido nas paredes, feito à medida, é
clássico como o arquiteto gostava, e tinha aprendido. "Não é
apenas uma citação historicista", nota a arquiteta.
O hall de entrada,
zona de recepção e de festas tem madeiras por todos os lados. Por
cima das portas, a ornamentação circular deixa adivinhar que ali
esteve mais qualquer coisa. "Era para bustos", diz António
Sérgio Rosa de Carvalho, historiador de arquitetura. "Revisita
estilos, mas é arquitetura moderna. Tem uma grande erudição no
estilo misturada com o funcionalismo de casa", nota o
especialista, concordando com a descrição da arquiteta Júlia
Varela: "O que parece historicismo está virado para o futuro".
Esta é a casa de um
homem rico. O que aqui se passa é motivo de interesse da imprensa na
época e a casa reflete os gostos do início do século XX. À
Renascença da sala de jantar, segue-se uma sala, branca e dourada,
com um piano, estilo Luís XV, outra Luís XVI e, finalmente, uma
sala Império. Ao fundo, no jardim de inverno, grandes janelas e
cenas de caça retratadas nos painéis de azulejos da autoria de
Manuel Gustavo Bordalo Pinheiro, filho de Rafael Bordalo Pinheiro,
que também trabalhou no Palacete Mendonça. O chefe artístico das
Faianças das Caldas da Rainha é o autor do friso da sala de
refeições.
Restam cadeiras,
aparadores, mesas e uma casa de banho "que é um museu",
concordam, à vez, António Sérgio Rosa de Carvalho e Paulo Ferrero.
É a divisão que servia o quarto principal, no primeiro piso.
Azulejos pintados à mão e autoclismo de porcelana, de Paris.
Os quartos
distribuem-se em torno do vão central, com três telas de grandes
dimensões atribuídas ao pintor régio Bento Coelho da Silveira, e a
iluminação natural de uma claraboia, um elemento típico destes
tempos.
Em setembro, a
Universidade Nova deixa o local ao mesmo tempo que o Fórum Cidadania
Lx e a Associação Ventura Terra retomam as visitas à obra do
arquiteto: a 17 de setembro no liceu Maria Amália e a 24 às
moradias do Estoril. Em dezembro, a AVT espera confirmar as visitas
aos imóveis da rua Alexandre Herculano, um dos maiores conjuntos da
sua obra, que inclui a sua casa e a sinagoga por ele desenhada. Com a
associação esperam ter também "uma palavra a dizer sobre as
intervenções que são feitas."
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