França
e as consequências políticas do terror
JOSÉ PEDRO TEIXEIRA
FERNANDES 17/07/2016 – PÚBLICO
O
equilíbrio entre liberdade e segurança sempre foi delicado. As
sociedades democráticas e abertas são uma criação frágil e
resultado de longas lutas do passado.
1. O atentado
terrorista de Nice, simbolicamente ocorrido a 14 de Julho, é um duro
golpe na França e nos seus valores seculares e democráticos. Em
Paris, nesse mesmo dia, no desfile comemorativo da tomada da
Bastilha, as forças militares e de segurança francesas procuravam
alimentar o orgulho nacional. Exibiam poder e autoconfiança perante
o Presidente da República, François Hollande, e os seus convidados,
nacionais e estrangeiros. Mas o atentado em Nice mostrou a
vulnerabilidade francesa transformando um dia de júbilo nacional,
numa noite de terror. A beleza da Baía dos Anjos e do Passeio dos
Ingleses deram lugar ao cenário de uma tragédia horrível.
2. Nice está cheia
de simbolismo histórico e cultural o que amplifica o sentimento de
revolta. Está indissociavelmente ligada à história de França e da
Itália. Foi local de nascimento de André Masséna, um dos generais
que mais glórias deu à Revolução Francesa. Foi também cidade de
nascimento de Giuseppe Garibaldi, unificador da Itália. No passado,
antes do turismo de massas, era um destino cosmopolita da
aristocracia europeia, sobretudo pelos seus invernos suaves. A
luminosidade e beleza mediterrânica da cidade, a região envolvente
da Provença e Côte d'Azur, atraiu pintores, escritores e cineastas.
Henri Matisse, Marc Chagall, Yves Klein, ou Guillaume Apollinaire,
são apenas alguns dos nomes que de imediato ocorrem. Nice faz a
simbiose entre o refinamento francês e o sentido estético italiano.
3. A realidade hoje
é substancialmente diferente. Para além das memórias gloriosas do
passado e de um turismo massificado, tem significativas populações
oriundas do Magrebe — Marrocos, Argélia e Tunísia. Algumas vieram
com as primeiras vagas de migração, ligadas à descolonização dos
anos 1950 / 1960. Outras, mais recentemente, fugindo dos conflitos ou
da pobreza do Sul do Mediterrâneo. Provavelmente, também por causa
disso, é um local de forte implantação da Frente Nacional (FN).
Marion Maréchal-Le Pen, neta de Jean-Marie Le Pen, é o principal
rosto da FN nesta região do Sudeste de França. Nas eleições
regionais de 2015, Marion Maréchal-Le Pen ganhou na primeira volta.
Perdeu, depois, na segunda volta, face ao candidato do centro-direita
tradicional, Christian Estrosi, mas ficou bastante próxima do
vencedor.
4. O autor do
atentado, Mohamed Lahouaiej Bouhlel, era de origem tunisina. Vivia
num bairro da periferia Norte de Nice. Tinha uma autorização de
residência em França e trabalhava como motorista numa empresa de
transportes. Já era conhecido da polícia, mas por actos de pequena
criminalidade comum, nada ligado a radicalismo político ou
terrorismo. O perfil do autor do ataque terrorista e o alvo escolhido
em Nice têm razoáveis semelhanças com os atentados de Paris e de
Bruxelas, ocorridos nos últimos meses. Por um lado, é a ligação
ao Sul do Mediterrâneo. Por outro lado, ambos visaram grandes
concentrações de pessoas — estádios, salas de espectáculos,
aeroportos, ou outros —, para provocar o maior número de vítimas
e amplificar o sentimento de pânico na população indefesa. Em
ambos os casos existem ligações ao Daesh (Estado Islâmico), sejam
elas directas, ou pela via da inspiração de acções individuais de
terror. Há uma rejeição absoluta da humanidade do outro nestes
actos de terror.
5. Em termos
simplificados, existem duas formas de olhar para o actual terrorismo
que flagela a França e a Europa. A primeira passa por destrinçar o
islamismo-jihadista, visto como uma ideologia política radical, do
Islão como religião. Embora use os textos religiosos, interpretados
de forma parcial e radical para fins políticos, não se confunde com
este. Nesta óptica, os autores de actos terroristas são uma pequena
minoria, radical e violenta, entre as comunidades muçulmanas. Os
próprios muçulmanos são também vítimas desse radicalismo
violento. Parte do problema está ainda nas intervenções do
Ocidente no mundo árabe-islâmico (Iraque, Líbia, etc.) e no
sentimento de revolta e vingança que geraram em muitos muçulmanos.
Alimentaram a engrenagem da violência que se acabou por virar contra
a Europa e Ocidente. A segunda vê a raiz do problema no próprio
Islão. Considera-o em rota de colisão com a modernidade secular
europeia e ocidental. Vê a maioria dos que seguem essa religião /
cultura como dificilmente integráveis, ou não integráveis de todo.
Considera que são o terreno onde, sejam quais forem as razões para
isso, germina o terrorismo na Europa. Argumenta que é sempre entre
indivíduos nascidos, ou expostos ao Islão, como religião ou
cultura, que são recrutados os terroristas, por grupos como o Daesh,
a Al-Qaeda ou outros. Quando actuam de forma isolada, é porque
estiveram expostos aos seus valores, forma de pensar e de ver o mundo
em rota de colisão com a europeia e ocidental.
6. Conforme
partirmos de uma ou de outra visão, chegamos a respostas diferentes
para o terrorismo. Mas o seu impacto vai mais além. Estas duas
visões projectam-se nas políticas de segurança, migratórias e de
integração. A primeira focaliza a reacção fundamentalmente nos
islamistas-jihadistas. É compreensiva e não discriminatória face
ao Islão em geral e as comunidades muçulmanas, vistas como não
problemáticas, em si mesmas. Não defende restrições a migrações
de populações muçulmanas, nem políticas de assimilação
cultural. A segunda toma como objectivo da resposta os indivíduos e
grupos islamistas-jihadistas que praticaram os actos de terror. Ao
mesmo tempo, sustenta uma atitude bem mais dura face ao Islão em
geral e às comunidades muçulmanas. Vê-as como potencialmente
problemáticas por ser no meio destes que normalmente surgem os que
recorrem à violência e ao terror. Nesta óptica, isso ocorrerá
pelo tipo valores e práticas culturais seguidas, bem como pela
(auto)exclusão destas do resto da sociedade. Para além da restrição
a novas migrações, especialmente de muçulmanos, a integração
implica políticas de assimilação cultural. No extremo, propõe-se
“cortar o mal pela raiz”, mesmo que à custa de valores
democráticos e pluralistas.
7. A resposta
francesa tem sido fundamentalmente de acordo com a primeira visão. É
a forma mais consentânea com uma sociedade democrática, aberta e
pluralista. Mas uma sociedade aberta tem os seus inimigos e o
terrorismo é um dos maiores. O facto, em si mesmo, de os atentados
terroristas continuarem e provocarem grande número de vítimas
indiscriminadas, tem consequências políticas sobre as próprias
sociedades abertas. Levam a uma crescente sensação de insegurança.
Alimentam a percepção, ainda que esta possa ser incorrecta, de
falta de resultados no combate ao terrorismo. Mas há uma
circunstância ainda mais delicada para as sociedades abertas.
Usualmente, os atentados são perpetrados por indivíduos que não se
(auto)identificam com o país do qual têm a cidadania, ou que nele
residem como migrantes, sejam quais forem as razões. A reivindicação
desses actos hediondos de terror em nome de uma religião / ideologia
não europeia amplifica o problema. Quanto mais atentados ocorreram
com este perfil, mais a opinião pública estará propensa a medidas
securitárias mais duras e restrições ao Islão. Naturalmente que
esta radicalização da opinião publica agrada à (extrema-)direita
e à direita populista.
8. O equilíbrio
entre liberdade e segurança sempre foi delicado. As sociedades
democráticas e abertas são uma criação frágil e resultado de
longas lutas do passado. Precisam de um comprometimento permanente do
cidadão com estas. Os islamistas-jihadistas querem destruí-las, a
partir do exterior e interior. Mas um excesso de reacção pode levar
também à sua (auto)destruição. O problema é que o espaço
político para respostas que não põem em causa os princípios das
sociedades abertas — incluindo o delicado equilíbrio entre
liberdade e segurança —, está a estreitar-se, cada vez mais. O
tempo político é desfavorável a uma luta de longa duração contra
o terrorismo. Pior: o terror está a tornar-se o novo normal. Tudo
isto abre a porta a um quadro mental onde uma abordagem securitária,
mesmo que comprometendo os princípios de uma sociedade aberta, é
vista como a única capaz de resolver o problema. As acções
terroristas estão a fazer com que uma parte substancial da população
se torne predisposta a políticas de “cortar o mal pela raiz”. As
eleições presidenciais francesas de 2017 vão ser críticas,
especialmente se houver mais atentados de envergadura.
Investigador
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