domingo, 17 de julho de 2016

França e as consequências políticas do terror


França e as consequências políticas do terror
JOSÉ PEDRO TEIXEIRA FERNANDES 17/07/2016 – PÚBLICO

O equilíbrio entre liberdade e segurança sempre foi delicado. As sociedades democráticas e abertas são uma criação frágil e resultado de longas lutas do passado.

1. O atentado terrorista de Nice, simbolicamente ocorrido a 14 de Julho, é um duro golpe na França e nos seus valores seculares e democráticos. Em Paris, nesse mesmo dia, no desfile comemorativo da tomada da Bastilha, as forças militares e de segurança francesas procuravam alimentar o orgulho nacional. Exibiam poder e autoconfiança perante o Presidente da República, François Hollande, e os seus convidados, nacionais e estrangeiros. Mas o atentado em Nice mostrou a vulnerabilidade francesa transformando um dia de júbilo nacional, numa noite de terror. A beleza da Baía dos Anjos e do Passeio dos Ingleses deram lugar ao cenário de uma tragédia horrível.

2. Nice está cheia de simbolismo histórico e cultural o que amplifica o sentimento de revolta. Está indissociavelmente ligada à história de França e da Itália. Foi local de nascimento de André Masséna, um dos generais que mais glórias deu à Revolução Francesa. Foi também cidade de nascimento de Giuseppe Garibaldi, unificador da Itália. No passado, antes do turismo de massas, era um destino cosmopolita da aristocracia europeia, sobretudo pelos seus invernos suaves. A luminosidade e beleza mediterrânica da cidade, a região envolvente da Provença e Côte d'Azur, atraiu pintores, escritores e cineastas. Henri Matisse, Marc Chagall, Yves Klein, ou Guillaume Apollinaire, são apenas alguns dos nomes que de imediato ocorrem. Nice faz a simbiose entre o refinamento francês e o sentido estético italiano.

3. A realidade hoje é substancialmente diferente. Para além das memórias gloriosas do passado e de um turismo massificado, tem significativas populações oriundas do Magrebe — Marrocos, Argélia e Tunísia. Algumas vieram com as primeiras vagas de migração, ligadas à descolonização dos anos 1950 / 1960. Outras, mais recentemente, fugindo dos conflitos ou da pobreza do Sul do Mediterrâneo. Provavelmente, também por causa disso, é um local de forte implantação da Frente Nacional (FN). Marion Maréchal-Le Pen, neta de Jean-Marie Le Pen, é o principal rosto da FN nesta região do Sudeste de França. Nas eleições regionais de 2015, Marion Maréchal-Le Pen ganhou na primeira volta. Perdeu, depois, na segunda volta, face ao candidato do centro-direita tradicional, Christian Estrosi, mas ficou bastante próxima do vencedor.

4. O autor do atentado, Mohamed Lahouaiej Bouhlel, era de origem tunisina. Vivia num bairro da periferia Norte de Nice. Tinha uma autorização de residência em França e trabalhava como motorista numa empresa de transportes. Já era conhecido da polícia, mas por actos de pequena criminalidade comum, nada ligado a radicalismo político ou terrorismo. O perfil do autor do ataque terrorista e o alvo escolhido em Nice têm razoáveis semelhanças com os atentados de Paris e de Bruxelas, ocorridos nos últimos meses. Por um lado, é a ligação ao Sul do Mediterrâneo. Por outro lado, ambos visaram grandes concentrações de pessoas — estádios, salas de espectáculos, aeroportos, ou outros —, para provocar o maior número de vítimas e amplificar o sentimento de pânico na população indefesa. Em ambos os casos existem ligações ao Daesh (Estado Islâmico), sejam elas directas, ou pela via da inspiração de acções individuais de terror. Há uma rejeição absoluta da humanidade do outro nestes actos de terror.

5. Em termos simplificados, existem duas formas de olhar para o actual terrorismo que flagela a França e a Europa. A primeira passa por destrinçar o islamismo-jihadista, visto como uma ideologia política radical, do Islão como religião. Embora use os textos religiosos, interpretados de forma parcial e radical para fins políticos, não se confunde com este. Nesta óptica, os autores de actos terroristas são uma pequena minoria, radical e violenta, entre as comunidades muçulmanas. Os próprios muçulmanos são também vítimas desse radicalismo violento. Parte do problema está ainda nas intervenções do Ocidente no mundo árabe-islâmico (Iraque, Líbia, etc.) e no sentimento de revolta e vingança que geraram em muitos muçulmanos. Alimentaram a engrenagem da violência que se acabou por virar contra a Europa e Ocidente. A segunda vê a raiz do problema no próprio Islão. Considera-o em rota de colisão com a modernidade secular europeia e ocidental. Vê a maioria dos que seguem essa religião / cultura como dificilmente integráveis, ou não integráveis de todo. Considera que são o terreno onde, sejam quais forem as razões para isso, germina o terrorismo na Europa. Argumenta que é sempre entre indivíduos nascidos, ou expostos ao Islão, como religião ou cultura, que são recrutados os terroristas, por grupos como o Daesh, a Al-Qaeda ou outros. Quando actuam de forma isolada, é porque estiveram expostos aos seus valores, forma de pensar e de ver o mundo em rota de colisão com a europeia e ocidental.

6. Conforme partirmos de uma ou de outra visão, chegamos a respostas diferentes para o terrorismo. Mas o seu impacto vai mais além. Estas duas visões projectam-se nas políticas de segurança, migratórias e de integração. A primeira focaliza a reacção fundamentalmente nos islamistas-jihadistas. É compreensiva e não discriminatória face ao Islão em geral e as comunidades muçulmanas, vistas como não problemáticas, em si mesmas. Não defende restrições a migrações de populações muçulmanas, nem políticas de assimilação cultural. A segunda toma como objectivo da resposta os indivíduos e grupos islamistas-jihadistas que praticaram os actos de terror. Ao mesmo tempo, sustenta uma atitude bem mais dura face ao Islão em geral e às comunidades muçulmanas. Vê-as como potencialmente problemáticas por ser no meio destes que normalmente surgem os que recorrem à violência e ao terror. Nesta óptica, isso ocorrerá pelo tipo valores e práticas culturais seguidas, bem como pela (auto)exclusão destas do resto da sociedade. Para além da restrição a novas migrações, especialmente de muçulmanos, a integração implica políticas de assimilação cultural. No extremo, propõe-se “cortar o mal pela raiz”, mesmo que à custa de valores democráticos e pluralistas.

7. A resposta francesa tem sido fundamentalmente de acordo com a primeira visão. É a forma mais consentânea com uma sociedade democrática, aberta e pluralista. Mas uma sociedade aberta tem os seus inimigos e o terrorismo é um dos maiores. O facto, em si mesmo, de os atentados terroristas continuarem e provocarem grande número de vítimas indiscriminadas, tem consequências políticas sobre as próprias sociedades abertas. Levam a uma crescente sensação de insegurança. Alimentam a percepção, ainda que esta possa ser incorrecta, de falta de resultados no combate ao terrorismo. Mas há uma circunstância ainda mais delicada para as sociedades abertas. Usualmente, os atentados são perpetrados por indivíduos que não se (auto)identificam com o país do qual têm a cidadania, ou que nele residem como migrantes, sejam quais forem as razões. A reivindicação desses actos hediondos de terror em nome de uma religião / ideologia não europeia amplifica o problema. Quanto mais atentados ocorreram com este perfil, mais a opinião pública estará propensa a medidas securitárias mais duras e restrições ao Islão. Naturalmente que esta radicalização da opinião publica agrada à (extrema-)direita e à direita populista.

8. O equilíbrio entre liberdade e segurança sempre foi delicado. As sociedades democráticas e abertas são uma criação frágil e resultado de longas lutas do passado. Precisam de um comprometimento permanente do cidadão com estas. Os islamistas-jihadistas querem destruí-las, a partir do exterior e interior. Mas um excesso de reacção pode levar também à sua (auto)destruição. O problema é que o espaço político para respostas que não põem em causa os princípios das sociedades abertas — incluindo o delicado equilíbrio entre liberdade e segurança —, está a estreitar-se, cada vez mais. O tempo político é desfavorável a uma luta de longa duração contra o terrorismo. Pior: o terror está a tornar-se o novo normal. Tudo isto abre a porta a um quadro mental onde uma abordagem securitária, mesmo que comprometendo os princípios de uma sociedade aberta, é vista como a única capaz de resolver o problema. As acções terroristas estão a fazer com que uma parte substancial da população se torne predisposta a políticas de “cortar o mal pela raiz”. As eleições presidenciais francesas de 2017 vão ser críticas, especialmente se houver mais atentados de envergadura.

Investigador

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