domingo, 31 de julho de 2016

"Não há político que tenha coragem para falar a verdade e contar tudo aos portugueses"


"Não há político que tenha coragem para falar a verdade e contar tudo aos portugueses"

Aparece todas as semanas na televisão e escreveu o romance português que mais vendeu neste século. Numa entrevista tensa sobre a realidade do país, critica a banca e os políticos que não cumprem as promessas

01 DE AGOSTO DE 2016
João Céu e Silva

"Estou a caminho das férias..." Foi a primeira resposta de Miguel Sousa Tavares ao pedido de entrevista. Depois, talvez por sentir vontade de atirar umas boas achas para a fogueira de vaidades que vai por este país, aceitou falar ao fim de uma tarde, lá para o Sul do país.

Pousa os pés sobre a mesa em frente e procura a melhor posição para se encaixar. Fica assim durante uma hora e só altera a posição para tirar um cigarro do maço algumas vezes. De resto, só a boca mexe. Por onde esvazia a irritação que tem perante um Portugal que se anda a (deixar) enganar e as situações que não perdoa a uma sociedade adormecida. Ainda conta duas anedotas para suavizar o ambiente, afinal o país está fechado para férias e o jornalista, comentador e escritor quer acreditar que há cura para o mal português.

Estamos a viver um tempo em que somos campeões de tudo. Como é que convive com esta realidade?

Os melhores em tudo... Acha? Não subscrevo a afirmação. Se falarmos a nível de desporto, ainda vá lá, mesmo que de todos os que foram campeões a que tem mais valor para mim é a Patrícia Mamona. Porque ganhou uma disciplina muito técnica como é a do triplo salto e isso não é costume no atletismo português. Nesta modalidade ainda somos como os etíopes e os quenianos - como os países subdesenvolvidos -, bons para corridas de fundo. No entanto, não adiro a esta onda patrioteira, como lhe chamo, porque sermos campeões do défice e o país da Europa que menos cresce há anos é muito mais preocupante.

Até o Presidente se tornou campeão de dar medalhas. Nunca se deram tantas em tão poucos dias.

Nem o Marcelo esperava dá-las, o problema é que começou por dar à seleção e não podia parar. Alguém disse que isto faz todo sentido porque os heróis do nosso tempo são os cantores de rock, os atores de novelas ou os desportistas. Como é preciso que haja heróis, são estes.

No caso do Cristiano Ronaldo, por exemplo, não é herói merecido?

Sim, é um grande profissional e com muito esforço individual.

Que não é hábito nos portugueses!

Nem nos portugueses nem na maioria dos jogadores de futebol.

Destacou-se tanto como o treinador Fernando Santos...

Ele também já foi treinador do meu clube, o Futebol Clube do Porto, e gostava dele embora o criticasse muito. Continuo na mesma, porque como quase todos os treinadores modernos está a dar cabo do futebol com tantas táticas defensivas e quase ninguém para atacar.

Mas a receita resultou...

Claro, é uma receita aplicada em todo lado praticamente. É como no meu clube, onde não gosto de ver mau futebol nem quando a minha equipa está a ganhar.

Aí temos o eterno Pinto da Costa que não permite evoluções?

Bem, evoluções há sempre. Esse tema não me interessa nada.

Acredito, mas não é estranho estar lá há tantos anos e continuar?

Está quase a bater o recorde do João Jardim e do Salazar... As pessoas devem sair quando estão por cima, a deixar saudades e não cansaço.

Estamos a viver uma situação política terrível. Após as férias, teremos o nosso futuro esclarecido ou continua a confusão governativa?

Não vejo António Costa senão a governar a uma semana à vista. Não tem nenhuma projeção de médio prazo, menos ainda de longo prazo. E falta a reflexão que ninguém faz em Portugal: de que vamos viver daqui a cinco, dez, vinte, cinquenta anos? Creio que ele vive nesta corda bamba eterna e, como não há milagres, estando em cima de gelo estaladiço, basta o sol aquecer já neste verão para o gelo rebentar.

No caso das sanções, não fez um bom braço-de-ferro com a União Europeia?

A questão principal não é bem essa. Não havia justificação política para as sanções, mas jurídica há toda. Reconheço que existem precedentes com a Alemanha e a França, a quem não foram aplicadas sanções, mas o principal é que não precisamos de cumprir o défice para ficarmos de bem com Bruxelas mas sim para termos futuro. Percebo perfeitamente aquela frase do Sócrates, que foi tão criticada, mas não podemos continuar a empurrar isto com a barriga. Nós perdemos 300 e tal mil miúdos que foram lá para fora - dos meus três filhos, tenho dois assim - e que fazem parte da tal geração que se ajudou a formar e que é brilhante. Será que algum dia vão querer voltar para pagar a dívida que os pais deixaram? Não virão para ganhar menos dinheiro e tapar o buraco que os pais deixaram. É isso a que chamo pensar Portugal a médio prazo, que é já depois de amanhã.

Até porque pela primeira vez temos uma poupança negativa...

Porque ninguém confia no sistema bancário. Vamos pôr dinheiro no banco, e se ele rebenta? Então, mais vale gastá-lo.

Vamos à política. Este governo aguentará mais seis meses?

A lógica diz-me que não porque este governo vai ter de mudar de vida. Porque está a empurrar a dívida para baixo do tapete, a adiar compromissos, a cativar verbas dos ministérios e não tem um tostão de investimento público. Ou seja, a fazer coisas que não são sustentáveis no tempo a menos que quebre os compromissos que tem com o Bloco de Esquerda e o PCP.
"O governo não aguenta mais seis meses, está a empurrar a dívida para debaixo do tapete"

E fica sem base de sustentação?

É o problema. Portanto, pela lógica o governo rebenta em seis meses.

E a solução será Marcelo Rebelo de Sousa impor aquilo que Cavaco Silva tentou, um bloco central com o PS e o PSD?

Não com Costa nem com Passos Coelho. Vai ser parecido com a situação política em Espanha, onde, se substituíssem Rajoy no PP e Pedro Sánchez no PSOE, já teriam governo. Passos Coelho e António Costa têm uma incompatibilidade absoluta e com problemas pessoais envolvidos. Não sei se a solução será convocar novas eleições, pois o resultado pode ser semelhante ao que temos e então, sim, não haveria outra solução senão juntarem-se num bloco central ou num bloco central alargado a quem mais quiser à esquerda ou à direita.

Antes justificou-se isso com o interesse nacional. Agora como é?

A expressão mudou, foi substituída pela patriotismo. Caso haja novas eleições, duvido que o cenário eleitoral mude muito. Não vai haver maioria num lado ou noutro.

Antevê um resultado eleitoral?

Se e quando o governo de Costa cair a situação económica for pior, o PS vai pagar uma grande fatura eleitoral. Afinal de contas, não vou ao ponto de dizer, como Passos Coelho, que Costa lhe roubou a legislatura, mas inventou um truque que não estava na cabeça do eleitores quando votaram. Ou seja, tem de provar que tinha um novo plano económico baseado no crescimento. Se no fim disto tudo falhar, o PS vai pagar uma fatura imensa e virar-se para Francisco Assis.

Aí o PS não terá futuro governativo, só como parceiro de coligação.

Sim, só como parceiro.

Passos Coelho já disse que não estará num governo que vá ter um segundo resgate e o que Schäuble disse disso não foi inocente. A dívida dos bancos leva a novo resgate?

A questão bancária é tramada. Não percebo como é que Maria Luís Albuquerque ainda abre a boca. Ela, que deixou o Banif, a CGD e o Novo banco! Para onde é que foi o dinheiro? E a senhora assistiu a tudo e ainda diz que com ela estava tudo melhor. A crise bancária não é culpa deste governo, embora esteja a gastar as botas claramente. É que as pessoas andam a esmifrar-se, a pagar impostos, a perder postos de trabalho e a emigrar por causa de um sistema financeiro que leva as poupanças de toda gente.

Há solução para a crise bancária?

Não faço ideia, ultrapassa-me. E eu, que gosto muito de economia, que sigo e leio tudo. Achava na minha santa ingenuidade que ter um banco era um negócio extraordinário, mas se até o Deutsche Bank está aflito...

O relatório do FMI colocou o grave problema bancário de Itália, mas não se esqueceu do de Portugal. Não é um exagero compará-los?

É um absurdo dizer que o nosso sistema bancário ameaça o sistema global. A Itália sim, pois são 360 mil milhões de malparado na quarta economia da União Europeia.

Voltemos à ameaça do segundo resgate de Schäuble. Ele virá?

Nunca poderá ser imposto, teremos de ser nós a pedi-lo. O grande problema vai-se dar no final do ano se o Banco Central Europeu atingir o limite de dívida publica portuguesa que pode comprar. Aí ficamos outra vez desamparados. E se as taxas de juro forem por aí acima, a certa altura repete-se o tempo do ex-ministro Teixeira dos Santos: "O meu limite é 7,5%." Se tivermos de pedir um segundo resgate, será por causa da banca.

Mário Centeno repetirá o papel de Teixeira dos Santos, que fez cair Sócrates, a António Costa?

O que se tem visto é o contrário, António Costa a empurrar para baixo sistematicamente Centeno e a dizer que está tudo bem.

Sócrates também fazia isso.

Também fazia, mas não estou a ver Centeno fazer cair Costa como Teixeira dos Santos fez a Sócrates.

E será imaginável que Passos Coelho aceite ser de novo primeiro-ministro em circunstâncias financeiras complicadas?

Imaginável é, acho até que está à espera disso. Não o vejo a querer um futuro de deputado nos próximos seis ou sete anos.

Está à espera que o governo caia?

Com certeza, isso é o que faz a oposição em Portugal. Não há nenhum político português que tenha a coragem de falar a verdade e de contar tudo aos portugueses. Se o fizer, perde as eleições. A grande crítica que faço ao governo de Passos Coelho é a de não ter feito nenhuma das reformas que o país precisava e, em vez de mudar o Estado, pôs toda a economia a pagar as contas do Estado e tirou dinheiro às pessoas. Uma receita trágica.

É dessa ausência de governação que vem o seu ódio de estimação a certos políticos?

O meu ódio de estimação a Cavaco vem desde que era primeiro-ministro, porque foi sempre o menor denominador comum das qualidades portuguesas - se é que temos algumas. Existem duas pessoas na política portuguesa por quem não tenho nenhuma consideração: Cavaco Silva e Durão Barroso. Portugal não lhes deve rigorosamente nada e, pior, eles foram elementos de estagnação para este país.

A Goldman Sachs não pensa isso!

Dizem que vão contar com os conselhos de Durão Barroso, mas sobre o quê? Nunca acertou em nada. Presidiu à decomposição da Europa, enganou-se na Guerra do Iraque... Na idade em que ele era maoista estalinista já eu era pai de filhos! Acredito que não soubesse o que era o maoismo e o estalinismo nessa altura, estava, sim, a preparar-se para uma carreira política. Os americanos adoram arrependidos e a Europa adora convertidos. Não é necessariamente obrigatório que se seja estúpido ou ignorante aos 22 anos, portanto, era um papel o que representava.

O PCP começa a fraquejar no apoio parlamentar ao governo. Acha que isto vai cair pelo PCP?

O PCP conseguiu tudo o que queria com o acordo, o problema é que já não manda na CGTP. É ao contrário. Queria era defender o seu bastião, o dos funcionários públicos, o dos trabalhadores das empresas públicas e os reformados, e Costa deu-lhe isso. Quando o PCP obtiver aquilo que queria, acabou.

O PCP não teve de engolir um grande sapo para apoiar o PS?

Só o fez porque o seu eleitorado o exigiu. Na campanha eleitoral via--se as pessoas a interpelar Jerónimo de Sousa e este a dizer que nunca se juntaria a Costa ou ao PS. Foi o próprio eleitorado que obrigou Jerónimo a sentar-se à mesa com Costa. E sabe, se eu for jantar com António Costa e me apetecer comer peixe e ele quiser comer carne, eu acabarei por comer carne, porque quem se senta à mesa com o Costa é comido pelo Costa. O Costa dá tudo, mas sai de lá com um acordo. Quando diz que o PCP tem comido muitos sapos, eu acho que o governo de Costa tem comido muito mais. Foi assim que conseguiu comprar a paz social.

António Costa não se vai fartar de engolir sapos da esquerda?

Essa é a grande questão que António Costa vai ter ou não de desmentir, se só quis chegar ao poder e não tem outro objetivo ou se não tem nenhuma ideia para os três anos e meio de mandato que ainda tem para fazer. Uma coisa é evidente: quando começaram as negociações com os partidos, Costa nunca quis chegar a acordo com o PSD.

Aí, o papel principal foi de Catarina Martins?

Sim.

É a grande política desta fornada?

Sim.

Não é produto da conjuntura?

Não, tem valor indiscutivelmente, comete poucos erros e deslizes e é capaz de os reconhecer. Marcou toda a agenda parlamentar com o fungagá dos temas fraturantes e nunca ameaçou bater com a porta como o Jerónimo passa a vida a fazer.

Ela é o garante deste governo?

De certa forma é, mas também é preciso que o PCP permaneça.

O PCP vai ter um congresso. Será que Jerónimo vai ter sucessor?

Ele tem uma qualidade: é um comunista simpático, simples e humano, e as pessoas simpatizam com ele. Não vale a pena renovar o PCP se não for pelas ideias, e isso não é possível. É uma excrescência portuguesa, que não existe em lado nenhum do mundo. É o último partido comunista com expressão eleitoral.

Há duas semanas, uma sondagem revelava que 67,8% dos portugueses admitiam uma união ibérica. É a reação ao desgoverno sucessivo?

E depois como é que festejaríamos os Europeus? Como é que o patrioteirismo se coaduna com isso? Custa-me a acreditar nessa sondagem. O meu pai dizia uma frase engraçada: Portugal tinha morrido todo em Alcácer-Quibir.

E não é verdade?

Não sei. Há uma anedota em que dois tipos estão à conversa e um diz para o outro: "Como é que nós somos descendentes daqueles tipos que partiram mundo fora sem saberem o que é que havia do lado de lá. Que tipos extraordinários!" E o outro responde: "Nós não somos descendentes desses, mas dos que ficaram aqui."

E a sentença de Alcácer-Quibir...

Na altura deve ter representado a morte do Estado. Como é que o Brasil se impôs? Porque D. João VI leva para lá a corte, leva o Estado, e dá origem ao nascimento do Brasil moderno. Com Alcácer-Quibir terá acontecido o contrário. O meu pai tinha essa tese e eu alertava-o: "Pai, mas isso foi há 400 anos." Respondia: "Ainda não recuperámos."

Em 2009, esteve tentado a emigrar para o Brasil. Arrependeu-se de não ter ido?

De certa forma, arrependi-me de não ter ido viver para o Brasil. Até cheguei a ter casa já alugada! A intenção era viver lá seis meses e outros seis meses cá. Arrependi-me de não ter ido, mas também aconteceram muitas coisas no Brasil que me dececionaram bastante. Nada que não antevisse num Brasil que é um país eternamente adiado. Nos últimos dois anos conheci tantos amigos brasileiros que se mudaram para Portugal que alguma coisa deve estar mal.

Se tivesse ido para o Brasil ter-se--ia dedicado mais à literatura?

Com certeza, porque lá não podia fazer outra coisa. Essa era a ideia.

E arrepende-se de não se ter dedicado 100% à literatura?

Já chegava 15%... De qualquer modo, nunca me arrependo muito das coisas que deixei de fazer, talvez lamente mais aquilo que não fiz. Todas as coisas têm o seu tempo, tanto assim que comecei a escrever um romance há dois anos e escrevi três capítulos. Depois parei. Se valer a pena ser escrito, hei de voltar lá; senão, para quê estar a esforçar-me? Também não quer dizer que me ponha à sombra da bananeira, à espera que chegue a inspiração. No entanto, como faço outras coisas, não preciso de ter um livro a seguir às férias ou para o Natal. Não sinto esse desespero nem essa necessidade de publicar.

Equador foi um livro que marcou e já lá vão 13 anos. Os leitores não quererão mais?

Pois, também eu queria mais, só que o bom romance é fruto de uma grande ideia. Se houvesse aí uma loja que vendesse ideias a escritores, ia já lá comprar uma. Porque com uma grande ideia consigo escrever um livro bom. Sem ela, por melhor que escreva e por mais cuidado que se tenha com a história, é difícil escrever um grande livro.
"Existem muitos escritores novos em Portugal, mas nunca escreveram um grande livro"

A nova geração de escritores portugueses vai buscar muita inspiração à história de Portugal. Não há um acontecimento que sirva de gatilho a um novo Equador?

Até agora, os factos dizem que não.

Quando olha para um exemplar do Equador na estante não sente que tem de fazer alguma coisa?

Não.

O primeiro livro que publicou foi em 1983, o Sara, a República da Areia...

Não era bem um livro, era uma reportagem escrita sobre uma reportagem de televisão. Era tão mau que saiu do mercado e nunca mais quis ouvir falar dele.

Houve um gatilho para o fazer, tal como os livros posteriores...

Houve, sim senhor.

Então, é um bloqueio de escritor?

São várias coisas. Há um bloqueio pessoal, um bloqueio criativo e um bloqueio de escrita. Digamos que é uma calmaria, que é o contrário de uma tempestade perfeita. Nada mexe no meu horizonte e não há vento a empurrar-me, nem de través nem de bolina. Mas tudo muda um dia.

A nossa literatura tem vindo a melhorar nos últimos anos?

Sabe o que é que ando a ler desde há meses para cá?

Anna Karenina.

Como é que sabe?

Vi o livro por aí...

Certo. Ando a ler os livros que gostei muito: a biografia do Estaline, de Simon Sebag Montefiore; o Anna Karenina, que está quase no fim, e a seguir vou para A Margarita e o Mestre, de Bulgakov (ler texto final).

Quanto a outras leituras também vou ser sincero: não tenho lido tudo, longe disso, porque houve uma época até há uns cinco, seis anos em que lia tudo por curiosidade. Ultimamente, não é assim.

Portanto, não há um autor eleito?

Há muitos autores. Continuo a gostar mais dos antigos, como a Luísa Costa Gomes, do que dos novos. Embora ache que existem muitos escritores novos que escrevem bem, só que, na minha opinião, nunca escreveram um grande livro. Utilizando uma imagem futebolística, é como os grandes jogadores: têm de aparecer nos grandes jogos. Podem jogar bem contra o Farense, mas se não jogam bem contra o Real de Madrid não servem.

Fazerem como o Éder na final!

Sim. Sou capaz de enumerar vários livros de novos autores portugueses que achei bons, mas não consigo referir um grande livro, que é aquele do qual me lembro várias vezes da história e das suas personagens.

Não é normal que num país com tanta gente dedicada à literatura não haja uma grande obra que se destaque das outras?

Não, não é normal, mas também se facilitou ao afirmar-se que eles são escritores e, rapidamente, definidos como consagrados. Têm umas críticas muito entusiásticas e acham que não dá assim tanto trabalho ser-se escritor. Pode ser que esteja a ser injusto...

No entanto, os escritores "clássicos" estão a ser completamente erradicados da crítica?

Não concordo, mas falar de clássicos é um exagero... Há quanto tempo não se escreve um livro como o Delfim, do José Cardoso Pires, ou Os Sinais de Fogo, do Jorge de Sena? Não temos referência nas novas gerações de livros tão fortes como aqueles.

Nem teve curiosidade no primeiro romance de Clara Ferreira Alves?

O Pai Nosso está na minha lista. Tenho curiosidade e vou lê-lo.

Entre os livros recentes está a coletânea de crónicas de Vasco Pulido Valente. Não despertou interesse?

Não, leio-as quase sempre. Já as conheço.

Em tempos disse que escrever um romance era serviço público. Acha o mesmo em relação ao jornalismo?

Se ambas forem bem feitas é um serviço público. São duas atividades que se faz para o público, enquanto houver público para elas. Em relação à literatura e ao jornalismo escrito, creio ser cada vez mais é um serviço público, porque é uma atitude de resistência e também de sobrevivência. Se não houver quem queira editar jornais e quem os queira escrever, ou quem queira escrever livros, o que acontecerá é que dentro de uma geração não haverá palavras. Escreve-se num iPhone ou no computador e pouco mais.

E tem reflexos na vida prática?

Há dias estava a ler um artigo sobre os exames de Português do 12.º ano, que referia a incapacidade generalizada dos alunos de pensar a língua portuguesa. São capazes de escrever frases sem perceber o contexto em que estão a fazê-lo. Não são capazes de ir à etimologia da palavra nem de se exprimirem por palavras. Estamos a chegar a esse ponto. Hoje dominam as abreviaturas, palavras meio em inglês e meio em português, o que representa um retrocesso na forma de comunicação. Até ao momento em que será quase simiesca - falaremos por grunhidos e gestos uns com os outros.

Até que ponto o jornalismo está a ser vítima da simplificação das redes sociais e das novas tecnologias?

Está a ser vítima de muitas coisas. Leio nos jornais erros ortográficos que me deixam de cabelos em pé. Outra situação problemática é a pobreza do discurso político, que é constrangedor não só na substância como na forma. Os responsáveis políticos dizem sistematicamente "tá". Será que não têm consciência de que falam para milhões de pessoas e que estas os imitam? Custará muito dizer a palavra toda?

Em tempos disse que, quando começou a profissão, gostava de ser um fotojornalista como os do Paris-Match. Foi um projeto que ficou pelo caminho?

Não, porque fui o equivalente enquanto repórter. Não fui fotojornalista, mas fui jornalista, que foi dos sonhos mais cumpridos da minha vida. No primeiro dia que me enviaram ao estrangeiro em reportagem, na RTP, para as primeiras eleições espanholas em democracia, lembro-me perfeitamente de estar a levantar voo de Lisboa e a pensar: "Cumpri o sonho da minha vida: ser enviado especial." Eram duas palavras mágicas para mim, portanto acho que trabalhei para coisas melhores do que o Paris-Match.

Estamos a viver um período com constantes ameaças de terrorismo e a Interpol já alertou para a hipóteses de atentados na Península Ibérica. Deve-se dar-lhe crédito?

Não sei, acho que o terrorismo islâmico tem servido de muleta para muita coisa. Por exemplo, estou perfeitamente convicto de que este franco-tunisino do atentado de Nice nada tinha de muçulmano, qualquer ligação ao Daesh, nem nenhuma motivação islâmica. Era simplesmente um louco, desequilibrado e de mal com a vida e consigo mesmo. Quem tenta encontrar uma causa de autojustificação quando vai fazer uma coisa daquelas e a causa é o Estado Islâmico, não é uma pessoa normal.

Não haverá outras causas?

Quem me ouve há muito tempo sabe que eu penso que nada disto existiria sem as redes sociais. Onde essa gente se exibe, mostra as armas e faz as suas ameaças. Esse confessionário aberto e o imediatismo das reações de quem por lá anda, que os empurra a ir em frente, é altamente perigoso. Nas redes sociais, quando têm seguidores, até o maior anormal do mundo se considera a pessoa mais importante. Pode dizer os maiores disparates, que não deixará de ter seguidores daqui até ao Nepal. Acredita que vai passar à história quando matar 80 pessoas. Esses tipos, os lobos solitários como lhes chamam as forças de segurança, são uma ameaça para a qual não sei se existe solução. Bernard Cazeneuve, o ministro do Interior francês, fez uma declaração muito lúcida: "Temos de nos habituar a viver com isto." De facto, o que é que há para contrariar esta situação?

Se as redes sociais têm culpa na situação, também não deixa de existir um papel por parte dos políticos que abriram caminho à instabilidade no Médio Oriente, na Síria, na Líbia...

... E no Iraque, que foi uma coisa fatal. Aliás, não sei como é que os responsáveis pelo Iraque dormem em paz com a sua consciência. Nem era preciso ter-se conhecimento do recente relatório inglês, porque já se sabia que tudo fora forjado e falsificado. Um milhão e muitos milhares de iraquianos morreram depois da invasão em guerras civis, bombas e conflitos entre eles. Foi em nome de quê aquilo que se fez? Como é que Tony Blair tem lata para dizer "não estou arrependido porque, apesar de tudo, derrubámos o Saddam Hussein"? Foi um preço muito alto.

Qual a perceção que tem do golpe na Turquia. Foi real ou artificial?

Aquilo foi claramente preparado por Erdogan. Ele não é flor que se cheire, é um tipo perigosíssimo porque não tem uma estratégia linear. A única estratégia linear que se lhe conhece é a de ser um homem de uma imensa vaidade, como mostra o palácio que fez para si próprio em Istambul. Politicamente não é linear e está sempre a aldrabar. À conta de combater o Estado Islâmico, o que fez foi dizimar os curdos. Obviamente, não há nenhum golpe no mundo que três horas depois de ter fracassado já tem 6500 pessoas presas. Tinha as listas todas preparadas. Não passa de uma limpeza total e o que vamos ter é uma ditadura pura, dura e feia.

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