segunda-feira, 25 de julho de 2016

De volta à incubadora


De volta à incubadora

João Miguel Tavares
26/07/2016 – PÚBLICO

Que se decida depressa se há ou não sanções – já não se suporta nem a lamechice, nem a pedinchice.
Marcelo Rebelo de Sousa, presidente da República, 24 de Julho de 2016, a propósito das sanções: “Pune-se o quê? É punir por punir? Faz lembrar aquele pai que entra no quarto, os filhos estão calmos, chega ao pé de um dos filhos e dá-lhe um par de bofetadas. Ele pergunta: mas porque é que foi isto? [Diz o pai:] Não sei porquê, estava a parecer-me que te preparavas para fazer asneira.” Pedro Santana Lopes, primeiro-ministro, 28 de Novembro de 2004, a propósito das críticas ao seu governo: “Este é um Governo a quem ninguém deu quase o direito de existir antes de ele nascer, e que depois de nascer através de um parto difícil, teve que ir para uma incubadora, e vinham alguns irmãos mais velhos e davam-lhe uns estalos e uns pontapés. Tem sido difícil para quem está na incubadora ver passar a família e, em vez de acarinhar, haver membros que dão uns estalos no bebé.”

Em 2004, o famoso discurso da incubadora foi a gota de água que levou Jorge Sampaio a deitar abaixo o governo de Santana Lopes e a convocar eleições antecipadas. Era um tempo com péssimos governantes, mas em que os habitantes do país ainda apreciavam ser tratados como adultos. Foram muito poucos os que não compreenderam o gesto de Sampaio. Em 2016, regredimos. Temos um déjà vu, mas com outro protagonista: é o próprio Marcelo quem assume o papel que há 12 anos foi de Santana e pede encarecidamente que não se dê estaladas à criança. Bem-vindos ao novo discurso da incubadora, desta vez com o alto patrocínio da Presidência da República: há um pobre, desprotegido e carente governo, todo ele gugu-dá-dá (especialmente dá-dá), que não está a ter o mimo que merece. Há gente terrivelmente má que distribui bofetões à criança sem qualquer justificação, tomada pelo desejo sádico de a agredir – que ela, pobrezinha, coitadinha, fofinha, é pura e imaculada, uma desditosa inocente que nunca na vida cometeu pecado.

É certo que a pequena anedota, vistas as imagens na televisão, parece ter saído da boca para fora a Marcelo. Mas o improviso não deixa de ser sintomático. Esta tendência irreprimível da política portuguesa para as alegorias obstetrícias e pediátricas não é um acaso – é um sintoma da menoridade mental em que mergulhámos e à qual parecemos absolutamente conformados. A declaração de Marcelo passou em todas as televisões mas não levantou um sobrolho. A razão só pode ser esta: nós próprios nos colocamos, com a maior das facilidades, e sem sequer nos darmos conta disso, no papel de semi-inimputáveis. Tanto o cábula como o bom aluno, figuras que nos acompanharam ao longo de todo o processo de adesão à União Europeia, têm algo importante em comum: ambos estão sentados ainda nos bancos da escola. O arsenal alegórico à nossa disposição, e que domina o espaço público, é devedor da mais triste infantilidade e subserviência. Seja o filho que leva estaladas do pai, seja o bebé que leva pancada da família, colocamo-nos invariavelmente numa posição subalterna perante o professor, o pai, o homem crescido.

Que se decida depressa se há ou não sanções – já não se suporta nem a lamechice, nem a pedinchice. Mesmo quando António Costa levanta a voz, para ameaçar a Comissão Europeia com os tribunais, nunca recolhe a mão. A nova política oficial do governo na Europa é esta: voz grossa e mão estendida. Neste país para menores de 18 anos, vivemos em posição fetal e resistimos a qualquer forma de crescimento. Cábula ou bom aluno – mas nunca, simplesmente, adulto.

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