sábado, 23 de julho de 2016

Amarga irrisão, a da nossa Lusitânia


Amarga irrisão, a da nossa Lusitânia

Maria de Fátima Bonifácio

A propósito da polémica sobre os brasões das ex-colónias na Praça do Império e os 20 anos da CPLP, Fátima Bonifácio escreve sobre a "selectividade histórica que resulta na amputação da memória"

Há 20 anos, segundo informou o vereador José Sá Fernandes no Público de 27 de Agosto de 2014, Portugal – nós todos, suponho que através da Câmara Municipal de Lisboa – votou ao abandono os Brasões da Praça do Império, de que hoje sobram apenas uns murchos “restos” melancólicos que ninguém rega, que ninguém poda, de que ninguém cuida; alguns definharam ao ponto de desaparecerem, soterrados por baixo das ervas daninhas e da vegetação selvagem que espontânea e exuberantemente se foram instalando no terreno.

Em 2014, Sá Fernandes, vereador responsável pela Verdura e Energia da capital, alegou que aqueles símbolos do Império “estavam ultrapassados” e que não fazia nenhuma espécie de sentido conservar composições florais alusivas aos vastos territórios de um Portugal pluricontinental que cessara de existir a partir de 1974. Porém e misteriosamente, até mesmo paradoxalmente, ao passo que estes abomináveis “símbolos do colonialismo” – não obstante constituírem um conjunto único de mosaico-cultura – eram sumariamente condenados a uma morte deliberada e anunciada, já os “brasões em pedra do lago central” são para manter, segundo o relatório aprovado pelo júri chamado a pronunciar-se sobre o projecto vencedor para a requalificação, recuperação ou restauro da Praça do Império (Público, 20.7.2016).

Só os anos, só a idade não chegam para conferir carácter histórico a uma construção. Para lhe acharmos um tal carácter é necessária a Beleza, e é certamente devido a esta transcendência do funcional (e do actual) que os brasões por lá foram ficando.
Em suma, há brasões e brasões, vá-se lá saber porquê. E se certos brasões ofendem a nossa consciência desembaraçadamente progressista e decididamente anticolonialista, cabe perguntar por que motivo se não arrasa o Padrão dos Descobrimentos, ali mesmo ao lado, com a assinatura do mesmíssimo arquitecto, Cottinelli Telmo, e igualmente ensombrado pela sua ligação umbilical à Exposição do Mundo Português de 1940. E, já agora, cabe ainda perguntar por que motivo se não arrasam tantas construções manuelinas, já que todas elas ostentam ornamentações inspiradas nos elementos náuticos que estão na origem do nosso Império multicontinental, designação de fachada inventada pelos fascistas para encobrir o descarnado colonialismo que mancha indelevelmente a gesta lusitana através dos séculos.


Simoneta Luz Afonso, presidente do júri referido, tem o bom senso de não ir por aqui. Argumenta que o conjunto de composições florais em que se integram os brasões não constava do projecto original de Cottinelli Telmo, e que por isso não podiam tais conjuntos (e tais brasões) ser considerados “um elemento histórico”; além disso, “foram criados para uma exposição de floricultura, que era uma coisa absolutamente efémera.” (Público, 20.7.16).

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